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O movimento comunista no século XX
Doménico Losurdo* - 27.02.09
Como resumir o balanço histórico do movimento comunista no século que passou? Hoje em dia, o
discurso acerca da sua “falência” é tão pouco discutido que não chega a suscitar objecções, nem
mesmo na esquerda. A ideologia e a historiografia actualmente dominantes parecem querer
compendiar o balanço de um século dramático numa historieta edificante, que pode resumir-se
deste modo: no princípio do século XX, uma rapariga fascinante e virtuosa, a menina Democracia,
foi agredida, primeiro por um bruto, o senhor Comunismo, a seguir por outro, o senhor Nazi-
Fascismo; aproveitando as contradições entre eles e através de peripécias complexas, a jovem
consegue por fim libertar-se da terrível ameaça; tornando-se entretanto mais madura mas sem
nada perder do seu fascínio, a menina Democracia consegue coroar o seu sonho de amor pelo
casamento com o senhor Capitalismo; rodeado pelo respeito e a admiração gerais, o feliz e
inseparável cas al gosta de levar a vida principalmente entre Washington e Nova Iorque, entre a
Casa Branca e Wall Street. Assim sendo, não há mais lugar a dúvidas: é evidente e inglória a
falência do comunismo.
Os comunistas e a luta contra a discriminação racial.
Acontece porém que esta historieta edificante nada tem a ver com a história real. A democracia
contemporânea baseia-se no princípio segundo o qual cada indivíduo deve ser considerado titular
de direitos inalienáveis, independentemente da raça, do nível de rendimentos e do género, e
pressupõe portanto a superação das três grandes discriminações (racial, censitária e sexual) que
subsistiam ainda nas vésperas de Outubro de 1917.
Atentemos na primeira grande discriminação. Apresenta-se numa dupla forma. Por um lado, a
nível planetário, vemos a “servidão de centenas de milhões de trabalhadores da Ásia, das colónias
em geral e dos pequenos países” p or obra de “poucas nações eleitas”, as quais – prossegue
Lenin – se atribuem “o privilégio exclusivo de formação do Estado”, negando-o aos bárbaros das
colónias ou semi-colónias [1].
Por outro lado, a discriminação racial faz-se sentir também no interior dos Estados Unidos,
negando aos negros os direitos políticos e submetendo-os a um regime terrorista de white
supremacy, de supremacia branca. Os negros considerados rebeldes ou delinquentes eram postos
a cozer em fogo lento, no quadro de um espectáculo de massa que durava muitas horas, com a
participação até de mulheres e crianças e se concluía com o momento feliz da distribuição ou
venda de lembranças aos espectadores: dentes e ossos da cabeça e de outras partes do corpo da
vítima.
Estas práticas continuavam a subsistir ainda nos anos da presidência de Franklin Dellano
Roosevelt. O terror atingia não só os negros condenados ao linchamento mas ai nda as suas
família, cuja casa era por vezes entregue às chamas. As crónicas da imprensa da época
testemunham o valor escasso ou nulo que tinha a vida dos afro-americanos. Veja-se por exemplo
um jornal onde se refere que tinha sido linchado o “negro errado”. Tencionavam assassinar um
outro, mas acabara torturado e enforcado ou queimado vivo um pobre homem apressadamente
confundido com o “culpado”.
É altura de colocar uma primeira pergunta: quais foram as forças políticas que lutaram contra o
regime da white supremacy ? Em 1924, um jovem indochinês (Nguyen Sinh Cung), chegado à
república norte-americana em busca de trabalho, assistia horrorizado a um linchamento.
Passemos sobre os detalhes que já conhecemos ou podemos imaginar e vejamos a conclusão:
“Por terra, envolta em fumo e cheiro de gordura, uma cabeça negra, mutilada, torrada, deformada,
com um esgar de horror, parece perguntar ao sol que se põe: “É esta a civilização?ı€ O jovem
indochinês denunciava a infâmia do regime de supremacia branca e do Ku Klux Klan na
«Correspondance Internationale» (a versão francesa do órgão da Internacional Comunista). Dez
anos mais tarde regressava à pátria e assumia o nome pelo qual mais tarde se tornará conhecido
em todo o mundo, o nome Ho Chi Minh.
Não se trata de uma personalidade isolada. Empenhados como se achavam em combater o
racismo branco, os comunistas eram qualificados pela ideologia dominante como “estrangeiros” e
“amantes dos negros” (nigger lovers). E naqueles anos – para citar um historiador norte-americano
– ser comunistas e desafiar o regime da white supremacy significava “defrontar a eventualidade do
cárcere, da sova violenta, do sequestro e até da morte.” É por isto que os afro-americanos mais
combativos olhavam com admiração e reconhecimento para o movimento comunista e a União
Soviética: olhavam Stalin como o “novo Lincolnâ ı , aquele que os ajudaria a pôr fim, desta vez de
modo concreto e definitivo, à escravidão dos negros, à opressão, à degradação, à humilhação, à
violência e aos linchamentos que continuavam a sofrer.
Demos agora um salto de cerca de duas décadas. Em Dezembro de 1952, o Secretário da Justiça
dos EUA escrevia ao Supremo Tribunal, empenhado em discutir a questão da integração nas
escolas públicas: “A discriminação racial leva água ao moinho da propaganda comunista e levanta
dúvidas, inclusivamente entre as nações amigas, acerca da intensidade da nossa devoção à fé
democrática.” Washigton corria o risco – observa o historiador americano que relata estas
declarações – de se alienar as “raças de cor”, não só no Oriente e no Terceiro Mundo mas no
próprio coração dos Estados Unidos: também aqui a propaganda comunista obtinha um
considerável sucesso na sua tentativa de ganhar os negros para a “causa revolucionária” , fazendo
soçobrar neles a “fé nas instituições americanas”.
Impõe-se uma conclusão. O desafio objectivamente representado pelo movimento comunista
internacional contribuiu de modo decisivo para fazer cair nos EUA o regime da supremacia branca.
O capítulo da história iniciado com a revolução de Outubro promoveu a luta contra a discriminação
racial, não apenas promovendo à escala mundial a emancipação dos povos coloniais, mas dando
impulso à causa da igualdade racial no próprio coração do Ocidente.
O Estado racial do Sul dos Estados Unidos e o Terceiro Reich.
O regime que suscitava o horror de Ho Chi Minh e dos comunistas gozava porém na Europa do
favor de importantes forças políticas. Em 1937, Alfred Rosenberg, o principal teórico do Terceiro
Reich, celebrava os Estados Unidos como um “esplêndido país do futuro”: ao limitar a cidadania
política exclusivamente aos brancos e sancionar a todos os níveis e por todos os meios a
supremacia branca, os EUA tinham o mérito de formular a feliz “nova ideia de um Estado racial”,
ideia que se tratava agora de pôr em prática “com força juvenil”, mediante a expulsão e a
deportação de “negros e amarelos” [2]. Basta uma vista de olhos à legislação adoptada por Hitler
logo após a tomada do poder, para nos darmos conta das analogias com a situação vigente nos
EUA e em particular no Sul: da cidadania política, reservada aos arianos, são excluídos os judeus,
os ciganos e os poucos mulatos que viviam na Alemanha (no final da I Guerra mundial soldados
de cor ao serviço do Exército francês haviam participado na ocupação do país). E, tal como nos
Estados Unidos, também no Terceiro Reich a miscegenenation, ou seja, a contaminação do
sangue derivada das relações sexuais e matrimonais entre membros da raça superior e membros
das raças inferiores, é proibida pela norma legal. “A questã o negra” – continua a escrever
Rosenberg – encontra-se nos Estados Unidos no vértice de todas as questões decisivas”; e, uma
vez anulado para os negros o princípio absurdo da igualdade, não se vê por que não se hão de
tirar “as consequências necessárias também para os judeus e os amarelos.” [3]
É evidente o peso exercido pelo modelo americano na construção do Estado racial na Alemanha.
Interroguemo-nos sobre qual a palavra-chave susceptível de exprimir de modo claro e concentrado
a carga de desumanização e de violência genocida ínsita na ideologia nazi. Neste caso não são
necessárias pesquisas particularmente tormentosas: é Untermensch, sub-homem, o termo-chave,
que antecipadamente priva de toda a dignidade humana todos quantos se destinam a ser
escravizados ao serviço da raça dos senhores ou aniquilados como agentes patogénicos,
culpados de fomentarem a revolta contra a raça dos senhores e contra a civilização como tal. Pois
bem, o termo Untermensch, que desempenhou um papel tão central e tão nefasto na teoria e na
prática do Terceiro Reich, não é mais do que a tradução do americano Under Man ! O próprio
Rosenberg o reconhece, ao exprimir a sua admiração pelo autor norte-americano Lothrop
Stoddard: cabe-lhe o mérito de ter sido o primeiro a cunhar o termo em questão, que figura como
subtítulo (The Menace of the Under Man) de um livro publicado em Nova Iorque em 1922 e da sua
versão alemã (Die Drohung des Untermenschen), surgida três anos mais tarde. No que concerne
ao seu significado, Stoddard esclarece que indica a massa de “selvagens e bárbaros”,
“essencialmente incapazes de civilização e seus inimigos incorrigíveis”, com os quais há que
proceder a um radical ajuste de contas, se se quer evitar o risco de colapso da civilização [4].
Elogiado, ainda antes de o ter sido por Alfred Rosenberg, já por dois Pre sidentes dos EUA
(Harding e Hoover), Stoddard foi seguidamente recebido com todas as honras em Berlim, onde se
encontra com os mais altos hierarcas do regime nazi, incluindo Adolf Hitler [5], então lançado na
sua campanha de dizimação e escravização dos “indígenas”, ou seja, dos Untermenschen da
Europa de leste, e empenhado nos preparativos para a aniquilação dos Untermenschen judeus,
considerados como os loucos inspiradores da revolução bolchevista e da revolta dos escravos e
dos povos das colónias.
Não faz sentido querer colocar o comunismo no mesmo plano do nazismo, quer dizer, da força que
com mais consequência e brutalidade se opôs à superação da discriminação racial e portanto ao
advento da democracia. Se por um lado o Terceiro Reich se apresenta como a tentativa, levada a
cabo em condições de guerra total, de realizar um regime de white supremacy à escala planetária
e sob hegemonia alemã, por outro l ado o movimento comunista forneceu uma contribuição
decisiva para a superação da discriminação racial e do colonialismo, cuja herança o nazismo
procura assumir e radicalizar.
O movimento comunista, a superação das três grandes discriminações e o advento do
Estado social.
Deixemos agora para trás as colónias e a sorte das “raças inferiores”, para concentrar a análise
sobre a metrópole capitalista, e mesmo exclusivamente sobre a sua população “civilizada”.
Também a este nível, na véspera da revolução de Outubro continuavam a ser operantes
significativas cláusulas de exclusão da cidadania e da democracia.
Em Inglaterra – observa Lenin – o direito eleitoral “é ainda bastante limitado para excluir o estrato
inferior propriamente proletário” [6]; além do mais, podemos acrescentar, alguns privilegiados
continuavam a gozar do “voto plural”, que só será completamente supri mido em 1948.
Particularmente tortuoso foi, no país clássico da tradição liberal, o processo que conduziu à
realização do princípio “uma cabeça, um voto”, e tal processo não pode ser pensado sem o desafio
constituído pela revolução na Rússia e o desenvolvimento do movimento comunista.
Mesmo nos países onde o sufrágio masculino se tornara universal ou quase universal, ele era
neutralizado pela presença de uma Câmara Alta que era apanágio da nobreza e das classes
privilegiadas. No Senado italiano sentavam-se, na qualidade de membros de direito, os príncipes
da Casa Sabóia: todos os outros eram nomeados vitaliciamente pelo rei, sob proposta do
Presidente do Conselho. Considerações análogas valem para as outras Câmaras Altas europeias
que, à excepção da francesa, não eram electivas mas sim caracterizadas por uma combinação de
hereditariedade e nomeação régia. Mesmo nos Estados Unidos continuavam a subsistir resíduos
de discrimina ção censitária, a qual porém se manifestava sobretudo, como vimos, sob a forma de
discriminação racial, que atinge nos negros, simultaneamente, os estratos mais pobres da
população.
Se tomarmos o Ocidente no seu conjunto, a cláusula de exclusão mais macroscópica era a que
feria as mulheres. Em Inglaterra, as senhoras Pankhurst (mãe e filha), que dirigem o movimento
das sufragistas, viam-se forçadas a visitar periodicamente as prisões do país. Na Rússia, a
“exclusão das mulheres” dos direitos políticos, denunciada por Lenin e pelo partido bolchevique, foi
anulada logo depois da revolução de Fevereiro, saudada como “revolução proletária” (dado o peso
exercido pelos sovietes e as massas populares) por Antonio Gramsci, o qual sublinhava
calorosamente o facto de que a revolução “destruiu o autoritarismo e substituiu-o pelo sufrágio
universal, alargando-o também às mulheres.”
Este mesmo caminho foi depois o tomado pela república de Weimar (nascida da revolução que
eclodiu na Alemanha a um ano de distância da revolução de Outubro), e só em seguida pelos EUA
[7].
Em síntese. A superação das três grandes discriminações foi tornada possível por um duplo
movimento: com as numerosas e grandes revoluções a partir de baixo, que se desenvolveram
quer nas metrópoles capitalistas quer nas colónias e muitas vezes inspiradas pela revolução de
Outubro e pelo movimento comunista, combinaram-se revoluções pela cúpula, promovidas com o
fim de impedir novas revoluções a partir de baixo e de defrontar o desafio do movimento
comunista.
Fazem parte da democracia, como hoje é geralmente entendida, também os direitos económicos e
sociais (direitos ao trabalho, à saúde, à instrução, etc.) E é justamente o grande patriarca do neoliberalismo,
Hayek, quem denuncia o facto de a sua teorização e a sua presença no Ocidente
remeterem para a influência, conside rada por ele funesta, da “revolução marxista russa”. Por
conseguinte, o Estado social que se realizou no Ocidente, quer dizer, a tentativa de pôr limites ao
pleno desdobramento do poder económico-social da riqueza, não pode ser pensado sem o
impulso e o desafio provenientes da revolução de Outubro.
Restauração e revolução nos nossos dias.
É inegável, por outro lado, a derrota estratégica sofrida pelo “campo socialista” entre 1989 e 1991
e está perante os olhos de todos a restauração do capitalismo na Europa de leste! Teremos de
fazer valer para o movimento comunista no seu conjunto a observação que Marx faz em relação
ao jacobinismo? “Todo o terrorismo francês [jacobino] não foi senão um modo plebeu de
desembaraçar-se dos inimigos da burguesia, o absolutismo, o feudalismo e o carácter filisteu”; “o
proletariado e as fracções burguesas não pertencentes à burguesia”, ao mesmo tempo que se
opus eram à burguesia, como por exemplo na França de 1793 a 1794, lutaram apenas pela
realização dos interesses da burguesia, ainda que não à maneira da burguesia.” (MEW, VI, 107).
Isto é, segundo a interpretação de Marx, apesar do seu radicalismo, os jacobinos teriam acabado
apenas por aplanar o caminho à sociedade burguesa. Ter-se-ia também passado algo semelhante
com o comunismo do século XX ? Teria o comunismo liquidado as três grandes discriminações
somente para aplanar o caminho a uma democracia burguesa mais completa?
Esta tese não convence. Desde logo deve notar-se que ao colapso do socialismo na Europa de
leste corresponde no Ocidente o desmantelamento do Estado social e mesmo a exclusão dos
direitos económicos e sociais do catálogo dos direitos. É a operação explicitamente posta em
prática por Hayek, o qual não por acaso conseguiu a seu tempo o prémio Nobel da economia e se
tornou um ponto de referência essencial da ideologia hoje dominante.
Não se trata apenas do Estado social. Nos Estados Unidos – sublinha entre outros um autorizado
historiador liberal [no sentido americano da palavra, NdT] como Schlesinger Jr. –, o peso do
dinheiro nas competições eleitorais é tão forte que os organismos representativos correm o risco
de se tornar monopólio das classes proprietárias (como nos anos de ouro da restrição censitária
do sufrágio). Há tempos, podia ler-se no «International Herald Tribune» uma análise que dá que
pensar:
«Os Estados Unidos tornaram-se uma plutocracia […] Quem tenha dinheiro pode exercer um peso
para influenciar o governo. Deixado de fora fica o restante povo, e agora parecem existir escassas
esperanças de poder alterar o modo como o país é governado.» (Pfaff, 2000).
Mas é sobretudo a nível internacional que a tendência para a restauração se torna particularmente
evidente, ao repropor-se em novas formas a grande discr iminação que tradicionalmente atingiu os
povos coloniais e semi-coloniais. É explícita a reabilitação do colonialismo no ideólogo mais ou
menos oficial da “sociedade aberta” e do Ocidente. Popper exprime-se deste modo a propósito das
ex-colónias: “Libertámos estes Estados de forma demasiado apressada e demasiado simplista; é
como abandonar a si próprio um asilo de crianças”. E o historiador inglês Paul Johnson, de grande
sucesso mediático, fala de um “revival” do colonialismo, numa intervenção com tanto mais
autoridade quanto foi publicada no «New York Times», com destaque e com um título que soa
como o enunciado de um programa: “Finalmente regressa o colonialismo, era tempo”. Não existem
alternativas ao “revival altruísta do colonialismo” em “muitíssimos países do Terceiro Mundo”: “é
uma questão moral; o mundo civilizado tem a missão de ir governar estes lugares desesperados.”
Não se trata apenas de i ntervir em países incapazes de se governarem sozinhos, mas também
naqueles que, ao governar-se, revelam uma tendência “extremista” [8].
Até mesmo a categoria de imperialismo conhece uma nova juventude ou reapresenta-se com uma
nova cosmética.
Naturalmente, o processo de recolonização do Terceiro Mundo, e das zonas periféricas em relação
ao Ocidente, avança com palavras de ordem universalistas, que proclamam a absoluta
transcendência das normas éticas relativamente aos limites estatais e nacionais. Mas isto, longe
de constituir uma novidade, é uma constante da tradição colonial. Por outro lado, é evidente que,
arrogando-se o direito de declarar superada a soberania de outros Estados, as grandes potências
atribuem-se uma soberania dilatada, a exercer muito para além do próprio território nacional.
Reproduz-se de uma forma pouco modificada a dicotomia que ritmou a expansão colonial, no
decurso da qual os protagonistas constanteme nte recusaram reconhecer como Estados
soberanos os países que subjugavam ou transformavam em protectorado.
Quer dizer, ao enfraquecimento do movimento comunista corresponde o desfazer-se das
conquistas democráticas realizadas no século XX, a partir da revolução de Outubro. Dito por
outras palavras, a eliminação das grandes discriminações que durante séculos caracterizaram o
mundo liberal-burguês nunca será definitivamente consolidada sem profundas transformações, a
nível nacional e internacional, das relações económicas e sociais capitalistas. Disso mesmo se dão
conta, por exemplo, os países e os povos que na América latina lutam para sacudir das costas o
peso do domínio do saque imperialista. A partir desta exigência elementar de conquista ou
reconquista da independência e da dignidade nacional, eles percebem a necessidade de avançar
na direcção do “socialismo do século XXI”. E ao fazê-lo redescobrem a grande herança do
comunismo do século XX: olham com admiração, com simpatia e com respeito Cuba, a China, o
Vietnam.
O processo verificado entre 1989 e 1991 não significou a liquidação dos países que se reclamam
do socialismo. A partir de Outubro de 1917 desenvolveu-se uma dialéctica complexa e
contraditória. O sistema capitalista, reforçado pela absorpção de elementos derivados da bagagem
ideal e política do movimento comunista e da própria realidade do socialismo real, soube depois
exercitar por sua vez uma atracção irresistível sobre a população dos países caracterizados por
um socialismo que, desde o início, traz impressos na face os sinais da guerra desencadeada e
imposta pelo Ocidente, e que depois se torna cada vez mais ossificado e esclerótico até se tornar
a caricatura de si próprio. Quer dizer, os regimes nascidos na onda da revolução bolchevique não
souberam confrontar-se concretamente com o Ocidente que eles próprios tinham contribuído para
modificar em profundidade. Em última análise venceu o sistema político-social que melhor soube
responder ao desafio lançado ou objectivamente constituído pelo sistema oposto e concorrente. E
foi assim que, também neste caso, a inicial vitória parcial conseguida pelo movimento operário e
comunista, com a capacidade demonstrada de desenvolver a sua eficácia histórica concreta
também no campo adversário, se transformou numa derrota de alcance estratégico.
Porém, a própria gravidade de tal derrota, repondo em discussão as conquistas democráticas
conseguidas no século XX, dá novo fôlego, sobretudo no Terceiro Mundo, ao projecto de
transformação socialista. Este, no entanto, perdeu a clareza e a evidência que parecia ter no
século XX. Convém reflectir sobre uma celebérrima tese de Lenin: “sem teoria revolucionária não
há revolução”. O partido bolchevique possuía sem dúvida uma teoria para a conquista do poder;
mas se por revolução se entend e, para lá do derrube da velha ordem, a construção da nova, os
bolcheviques e o movimento comunista encontravam-se substancialmente privados de uma teoria
revolucionária.
Não pode certamente considerar-se como teoria da sociedade post-capitalista a construir a
expectativa escatológica de uma sociedade perfeitamente conciliada e sem contradições e
conflitos de algum tipo. A resistência e a vitalidade dos países de inspiração socialista que
conseguiram superar a crise de 1989/1991 derivam da capacidade demonstrada de levar avante
concretamente, no meio de limitações, erros e experiências mais ou menos felizes, o necessário
processo de aprendizagem, depurando o projecto socialista das suas componentes
abstractamente utópicas e redescobrindo o mercado socialista, o governo da lei em versão
socialista, a persistência das diferenças e identidades nacionais, etc. Abre-se uma fase nova e rica
de incógnitas: o processo de aprendizagem não está e nã o pode ter um sucesso garantido, não é
imune nem ao surgimento de contradições e conflitos nem ao perigo da derrota. É um processo
que se acha bem longe de ter chegado ao seu termo.
Notas:
[1] Lenin, 1955 c, p. 403 e Lenin, 1955 a, p. 417.
[2] Rosenberg 1937, p. 673.
[3] Rosenberg 1937, pp. 668-9.
[4] Cfr. Losurdo 2002, cap. 27, § 7.
[5] Sobre o eugenismo nos EUA e na Alemanha, cfr. Kühl 1994, p. 61; o juízo lisongeiro do
presidente Harding é referido na abertura do livro de Stoddard 1925.
[6] Lenin, 1955 b, p. 282.
[7] Sobre isto, cfr. Losurdo, 1998, cap. II, 3.
[8] Johnson, 1993, pp. 22 e 43-44.
* Domenico Losurdo, filósofo e historiador, é Professor da Universidade de Urbino, Itália
Tradução de J.A. Nunes
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