terça-feira, 16 de março de 2010

"Caim"

Postado por Attman e Kamadon

Eduardo Hoonaert

Esplendidamente escrito e demonstrando um domínio insuperável da língua portuguesa, o novo romance de José Saramago, prêmio nobel de literatura, intitulado Caim e recentemente editado pela Companhia das Letras (São Paulo, 2009), vem nos surpreender. Pois Caim é apresentado como uma pessoa corajosa, que critica os feitos do ‘senhor deus’ e é valorizado por isso.
À primeira vista, parece que Saramago tem a intenção de nos escandalizar com disparates levianos e incongruentes contra os textos bíblicos. Mas não é bem assim. O autor demonstra que a história de Adão e Eva, Caim e Abel, Noé e a torre de Babel, Abraão e Isaac, José e seus irmãos, Moisés e o povo no deserto, Josué, a tomada de Jericó e tantas outras são conhecidas pela maioria das pessoas de forma banalizada, sem a profundidade do próprio texto bíblico.


Saramago não comenta a bíblia, ele se refere o tempo todo ao que se pode chamar de apresentação vulgarizada da bíblia, ou seja, à ‘história sagrada’. Seu romance é uma crítica ácida e corrosiva da ‘história sagrada’ tal qual é intensamente difundida e universalmente conhecida, pois ela retira o conteúdo vivo das narrativas bíblicas e joga ao povo um amontoado de histórias incompreensíveis e estranhas, como a história de um deus que resolve destruir a humanidade de vez (o dilúvio), manda fogo e enxofre sobre uma cidade onde, ao que parece, se pratica a homossexualidade (Sodoma e Gomorra), manda a um pai matar seu próprio filho (Abraão e Isaac), consente na matança de três mil pessoas que praticaram um rito religioso que não é de seu agrado (os israelitas no deserto) e se deleita nas crueldades cometidas pelos exércitos de Israel (tomada de Jericó por Josué).

Saramago declara-se ateísta desse deus, ele desmascara a maneira em que a bíblia costuma ser interpretada nos dias de hoje. O autor combate a ingenuidade com que as pessoas identificam a imagem de deus com a imagem de um senhor que manda, governa e faz o que quer, sem respeitar o interesse da pessoa humana que parece um joguete em suas mãos.

O romance de Saramago pode criar desconforto em leitores(as) acostumados(as) à apresentação superficial da bíblia, pois ele critica a fé ingênua de pessoas que se recusam a pensar criticamente e com liberdade. Saramago gostaria que o ser humano fosse mais consciente de suas potencialidades e libertasse sua mente do domínio de organizações religiosas que secularmente explicam as sagradas escrituras como lhes convém. Por isso penso que vale a pena ler o romance Caim. É um livro que, além de proporcionar o prazer causado pelo um domínio perfeito da língua portuguesa, ajuda a pensar.

"A miséria moral de ex-esquerdistas"

Postado por Attman e Kamadon

Emir Sader *

Adital -
Alguns sentem satisfação quando alguém que foi de esquerda salta o muro, muda de campo e se torna de direita - como se dissessem: "Eu sabia, você nunca me enganou", etc., etc. Outros sentem tristeza, pelo triste espetáculo de quem joga fora, com os valores, sua própria dignidade - em troca de um emprego, de um reconhecimento, de um espaçozinho na televisão.
O certo é que nos acostumamos a que grande parte dos direitistas de hoje tenham sido de esquerda ontem. O caminho inverso é muito menos comum. A direita sabe recompensar os que aderem a seus ideais - e salários. A adesão à esquerda costuma ser pelo convencimento dos seus ideais.

O ex-esquerdista ataca com especial fúria a esquerda, como quem ataca a si mesmo, a seu próprio passado. Não apenas renega as idéias que nortearam - às vezes o melhor período da sua vida -, mas precisa mostrar, o tempo todo, à direita e a todos os seus poderes, que odeia de tal maneira a esquerda, que já nunca mais recairá naquele "veneno" que o tinha viciado. Que agora podem contar com ele, na primeira fila, para combater o que ele foi, com um empenho de quem "conheceu o monstro por dentro", sabe seu efeito corrosivo e se mostra combatente extremista contra a esquerda.


Não discute as idéias que teve ou as que outros têm. Não basta. Senão seria tratar interpretações possíveis, às quais aderiu e já não adere. Não. Precisa chamar a atenção dos incautos sobre a dependência que geram a "dialética", a "luta de classes", a promessa de uma "sociedade de igualdade, sem classes e sem Estado". Denunciar, denunciar qualquer indicio de que o vício pode voltar, que qualquer vacilação em relação a temas aparentemente ingênuos, banais, corriqueiros, como as políticas de cotas nas universidades, uma política habitacional, o apoio a um presidente legalmente eleito de um país, podem esconder o veneno da víbora do "socialismo", do "totalitarismo", do "stalinismo".

Viraram pobres diabos, que vagam pelos espaços que os Marinhos, os Civitas, os Frias, os Mesquitas lhes emprestam, para exibir seu passado de pecado, de devassidão moral, agora superado pela conduta de vigilantes escoteiros da direita. A redação de jornais, revistas, rádios e televisões está cheia de ex-trotskistas, de ex-comunistas, de ex-socialistas, de ex-esquerdistas arrependidos, usufruindo de espaços e salários, mostrando reiteradamente seu arrependimento, em um espetáculo moral deprimente.

Aderem à direita com a fúria dos desesperados, dos que defendem teses mais que nunca superadas, derrotadas, e daí o desespero. Atacam o governo Lula, o PT, como se fossem a reencarnação do bolchevismo, descobrem em cada ação estatal o "totalitarismo", em cada política social a "mão corruptora do Estado", do "chavismo", do "populismo".

Vagam, de entrevista a artigo, de blog à mesa redonda, expiando seu passado, aderidos com o mesmo ímpeto que um dia tiveram para atacar o capitalismo, agora para defender a "democracia" contra os seus detratores. Escrevem livros de denúncia, com suposto tempero acadêmico, em editoras de direita, gritam aos quatro ventos que o "perigo comunista" - sem o qual não seriam nada - está vivo, escondido detrás do PAC, do ‘Minha casa, minha vida’, da Conferência Nacional de Comunicação, da Dilma - "uma vez terrorista, sempre terrorista".

Merecem nosso desprezo, nem sequer nossa comiseração, porque sabem o que fazem - e os salários no fim do mês não nos deixam mentir, alimentam suas mentiras - e ganham com isso. Saíram das bibliotecas, das salas de aula, das manifestações e panfletagens, para espaços na mídia, para abraços da direita, de empresários, de próceres da ditadura.

Vagam como almas penadas em órgãos de imprensa que se esfarelam, que vivem seus últimos sopros de vida, com os quais serão enterrados, sem pena, nem glória, esquecidos como serviçais do poder, a que foram reduzidos por sua subserviência aos que crêem que ainda mandam e seguirão mandado no mundo contra o qual, um dia, se rebelaram e pelo que agora pagam rastejando junto ao que de pior possui uma elite decadente e em vésperas de ser derrotada por muito tempo. Morrerão com ela, destino que escolheram em troca de pequenas glórias efêmeras e de uns tostões furados pela sua miséria moral. O povo nem sabe que existiram, embora participe ativamente do seu enterro.


* Filósofo, cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas