Postado por Kamadon
A vida é como uma espiral e não como uma linha reta. Passado e futuro se encontram em um infinito presente".
A espiral é a essência do mistério da vida. Assim como se centra, ela também pára, se encontra, se retorce e, então, desce e sobe novamente em graciosas curvas. O tempo se retorce em torno de si mesmo, trazendo os ecos e vibrações enquanto que os caminhos vivos da espiral passam próximos um do outro. A vida corre por estradas sinuosas, os seres se encontram em determinados pontos de suas caminhadas, se entrelaçam, se afastam, partem, retornam às origens. O ponto de partida também é o ponto de chegada trazendo-nos a questão do retornar sempre, reencontrar- se e se renovar.
As espirais também circulam dentro de nós, a energia circula em espiral, é onde a matéria e o espírito mais perfeitamente se encontram, e o tempo, por ele mesmo, não existe. Os nativos lembram as diversidades da vida e dos caminhos, e não compreendem o mundo de forma linear, o seguir em frente em uma única direção como se a vida fosse uma linha reta traçada entre um ponto de início e um de término.
O destino é sempre ir além. O grande desafio de todo ser, por natureza um guerreiro trilhando as estradas das espirais da vida, é essa busca, é o retorno, é a partida, é caminhar em círculos/ciclos assim como caminha a natureza, pois somos parte dela. É fazer girar a roda do tempo, não nos prendendo em nenhum ponto em específico porque, assim, podemos vislumbrar os mais diversos pontos que compõem a espiral.
Sobre as formas espiraladas e circulares, Alce Negro, dos Oglala Sioux coloca o seguinte: "Tudo que o poder do mundo faz é feito em círculo. O ceú é redondo e tenho ouvido que a terra é redonda como uma bola, e assim também o são as estrelas. O vento, em sua força máxima, rodopia. Os pássaros fazem seus ninhos em círculos, pois a religião deles é a mesma que a nossa. O sol nasce e desaparece em círculo em sua sucessão, e sempre retornam outra vez ao ponto de partida. A vida do homem é um círculo, que vai da infância até a infância, e assim acontece com tudo que é movido pela força. Nossas tendas eram redondas como os ninhos das aves, e sempre eram dispostas em círculo, o aro da nação, o ninho de muitos ninhos, onde o Grande Espírito quis que nós chocássemos nossos filhos".
Para os antigos celtas essa é toda a essência do mistério da vida. O circular, o espiralado. O tempo, uma das triplas linhas tão importantes para o imaginário celta, se retorce em torno de si mesmo. Os astecas achavam que certas flores que tinham em seu centro espirais, eram a alegria do mundo, mostrando o ciclo do sol, quando nasce e se põe, as estações, solstícios, ciclos assim como a vida dos homens. Os orientais falam da kundalini, do fluxo de uma energia em espiral, dos redemoinhos energéticos que perambulam nossos corpos.
Como vórtex de energia, as espirais encontradas em vestígios antigos expressavam um entendimento do cosmos, da energia vibrante, da vida, ou o seu contrário. Tradicionalmente, os ancestrais compreenderam que espirais no sentido horário representavam o nascer, o sol, a vida, o mundo de cima, a transformação pelas experiências exteriores. Para o sentido anti-horário, representavam a lua, a morte, o outro mundo, o mundo de baixo, o mundo dos sonhos e alucinações, intuição, as experiências transformadoras vindas do nosso interior.
Para os hindus, o que no nosso mundo terrestre era no sentido anti-horário, para a esquerda, no mundo de baixo, no outro mundo, correspondia ao sentido horário. Hoje sabe-se que esses simbolismos expressam as funções cerebrais, o lado esquerdo do cérebro regula o lado direito de nosso corpo, o lado direito regula o lado esquerdo do corpo. Nem bom, nem mal, apenas diversidades que compõe o universo, uma perfeita simbiose, uma perfeita composição de energias.
Se vermos vários locais sagrados dos antepassados, desde o paleolítico, em qualquer parte do mundo, notaremos sempre a compreensão circular e espiralada. A espiral é a energia vital, é a energia em movimento, é a própria jornada.
http://www.saindoda matrix.com. br/archives/ espirais. htm
terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
Economia e Vida (II): Deus e ídolos na economia
Postado por Attman e Kamadon
Jung Mo Sung *
No artigo anterior , eu tratei da "materialidade da vida", que é um dos aspectos fundamentais do tema da CF deste ano: "Economia e vida". Neste artigo, eu quero continuar a reflexão abordando um segundo aspecto, "o aspecto teológico-espiritual da economiaÀ primeira vista, falar em aspecto teológico-espiritual da economia soa estranho para a maioria da população. Pois a economia trataria das questões materiais e a teologia e a espiritualidade, das questões imateriais. Esta visão que separa e opõe a economia da teologia e espiritualidade é uma característica do mundo moderno, que separou os campos da vida social (por ex, o campo econômico e o religioso) de uma forma que os vê como independentes e autônomos. E, estranhamente, muitos dos grupos religiosos que se opõem ao mundo moderno assumem essa separação moderna como algo "natural" ou "divino".
A afirmação de Jesus, "Ninguém pode servir a dois senhores. ... Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro." (Mt 6,24), mostra que na tradição cristã, e nas sociedades antigas, há uma relação entre a economia e teologia. E aqui é preciso prestar atenção: não é relação entre economia e ética ou entre a economia e a doutrina social da Igreja, mas sim entre economia e teologia! Jesus coloca uma disjuntiva: servir a Deus ou a Dinheiro. Isto é, Jesus mostra que dinheiro pode ser e foi colocado no mesmo nível de Deus. Por isso, há relações de seres humanos com o dinheiro que se tornam uma questão teológica, uma questão de discernimento entre o Deus verdadeiro e o deus falso, ou ídolo.
O que as Igrejas cristãs fazem normalmente, quando tratam das questões econômicas, é propor uma doutrina social, que costuma não ter o mesmo status de teologia. É como se fosse uma aplicação derivada da teologia aos problemas do mundo social, uma aplicação que não faria parte da essência da reflexão teológica e da evangelização. Entretanto, Jesus, ao colocar a oposição entre o "servir ao Dinheiro" e o "servir a Deus", eleva a questão econômica ao coração da teologia e da evangelização.
Porém, é preciso tomar outro cuidado. Jesus não condena dinheiro ou economia de uma forma geral. O que ele condena é a transformação do dinheiro no sentido último da vida, no critério máximo para decidir o que é bom ou mal, quem deve viver ou morrer. Na Teologia da Libertação, essa discussão foi desenvolvida especialmente pela "escola do DEI" (Departamento Ecuménico de Investigaciones, em Costa Rica, com nomes como Franz Hinkelammert e Hugo Assmann), que cunhou a expressão "a idolatria do mercado". A economia de hoje é muito diferente do tempo de Jesus, por isso, a melhor forma de criticar a idolatria que ocorre na ou via economia é a do mercado, e não mais a do dinheiro. Porém, é preciso lembrar que Assmann e Hinkelammert também criticam o fazer do mercado algo absoluto, o último critério para as decisões sobre a vida e a morte na sociedade (idolatria); mas não o mercado como tal. Pois, não é possível organizar a economia e a sociedade hoje sem mercado.
Servir a um "deus falso", ídolo, deus que exige sacrifícios de vidas humanas, é um tema da teologia, mas também da espiritualidade. Pois "servir" a Deus ou ídolo implica em dedicar uma vida, em encontrar o sentido da vida e a motivação para viver nesse serviço. A questão central hoje, em termos de evangelização, não é anunciar a Deus a um mundo não-crente. Mas a de discernir entre uma espiritualidade e teologia que nos leva a Deus que se revelou na vida, morte e ressurreição de Jesus; e a outra que nos leva ao ídolo, que sempre se mostra como um deus poderoso, radiante e glorioso no mundo.
Esta breve reflexão nos mostra que há, pelo menos, dois níveis na discussão da economia. A tarefa teológica da crítica da idolatria - que pertence ao coração da tradição bíblica - que ocorre na economia e da proposição de uma nova noção de Deus como fundamento de uma nova economia. (Max Weber chega a dizer que as ciências sociais devem desvelar os deuses impessoais que estão por detrás das ações na economia e na sociedade, mas não propõe uma crítica a esses deuses.) Outro nível é o do campo técnico-operacional da economia. A discussão sobre a melhor forma de combater a inflação, de aumentar o nível de emprego ou melhorar a distribuição de renda, não é do campo da teologia, mas sim das ciências econômicas. Isto é, não podemos tirar da Bíblia, da teologia, ou até mesmo da doutrina social da Igreja, críticas ou propostas no campo operacional da economia.
É preciso fazer uso das "mediações", como sempre insistiu a Teologia da Libertação. Da análise da economia, desvelar os seus fundamentos teológicos e econômicos; da reflexão teológico-bíblica, dialogar com as ciências econômicas, sociais, políticas e antropológicas para ver quais as diretrizes que melhor expressam os valores da fé. Diretrizes essas que não podem ser confundidas com "receitas" ou práticas econômicas concretas, pois esse é o campo da discussão e de resultados sempre provisórios. Devemos evitar a tentação de absolutizar as "nossas" propostas econômicas, negando diálogo e debate com grupos que, mesmo tendo valores convergentes, pensam de modo diferente os caminhos concretos da economia.
Por tudo isso, para uma boa reflexão teológica socialmente relevante hoje, é fundamental estudarmos as interfaces entre a teologia e economia.
(No próximo artigo, espiritualidade nas experiências econômicas do cotidiano).
[Autor de "Cristianismo de Libertação: espiritualidade e luta social"].
* Professor de pós-graduação em Ciências da Religião
Jung Mo Sung *
No artigo anterior , eu tratei da "materialidade da vida", que é um dos aspectos fundamentais do tema da CF deste ano: "Economia e vida". Neste artigo, eu quero continuar a reflexão abordando um segundo aspecto, "o aspecto teológico-espiritual da economiaÀ primeira vista, falar em aspecto teológico-espiritual da economia soa estranho para a maioria da população. Pois a economia trataria das questões materiais e a teologia e a espiritualidade, das questões imateriais. Esta visão que separa e opõe a economia da teologia e espiritualidade é uma característica do mundo moderno, que separou os campos da vida social (por ex, o campo econômico e o religioso) de uma forma que os vê como independentes e autônomos. E, estranhamente, muitos dos grupos religiosos que se opõem ao mundo moderno assumem essa separação moderna como algo "natural" ou "divino".
A afirmação de Jesus, "Ninguém pode servir a dois senhores. ... Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro." (Mt 6,24), mostra que na tradição cristã, e nas sociedades antigas, há uma relação entre a economia e teologia. E aqui é preciso prestar atenção: não é relação entre economia e ética ou entre a economia e a doutrina social da Igreja, mas sim entre economia e teologia! Jesus coloca uma disjuntiva: servir a Deus ou a Dinheiro. Isto é, Jesus mostra que dinheiro pode ser e foi colocado no mesmo nível de Deus. Por isso, há relações de seres humanos com o dinheiro que se tornam uma questão teológica, uma questão de discernimento entre o Deus verdadeiro e o deus falso, ou ídolo.
O que as Igrejas cristãs fazem normalmente, quando tratam das questões econômicas, é propor uma doutrina social, que costuma não ter o mesmo status de teologia. É como se fosse uma aplicação derivada da teologia aos problemas do mundo social, uma aplicação que não faria parte da essência da reflexão teológica e da evangelização. Entretanto, Jesus, ao colocar a oposição entre o "servir ao Dinheiro" e o "servir a Deus", eleva a questão econômica ao coração da teologia e da evangelização.
Porém, é preciso tomar outro cuidado. Jesus não condena dinheiro ou economia de uma forma geral. O que ele condena é a transformação do dinheiro no sentido último da vida, no critério máximo para decidir o que é bom ou mal, quem deve viver ou morrer. Na Teologia da Libertação, essa discussão foi desenvolvida especialmente pela "escola do DEI" (Departamento Ecuménico de Investigaciones, em Costa Rica, com nomes como Franz Hinkelammert e Hugo Assmann), que cunhou a expressão "a idolatria do mercado". A economia de hoje é muito diferente do tempo de Jesus, por isso, a melhor forma de criticar a idolatria que ocorre na ou via economia é a do mercado, e não mais a do dinheiro. Porém, é preciso lembrar que Assmann e Hinkelammert também criticam o fazer do mercado algo absoluto, o último critério para as decisões sobre a vida e a morte na sociedade (idolatria); mas não o mercado como tal. Pois, não é possível organizar a economia e a sociedade hoje sem mercado.
Servir a um "deus falso", ídolo, deus que exige sacrifícios de vidas humanas, é um tema da teologia, mas também da espiritualidade. Pois "servir" a Deus ou ídolo implica em dedicar uma vida, em encontrar o sentido da vida e a motivação para viver nesse serviço. A questão central hoje, em termos de evangelização, não é anunciar a Deus a um mundo não-crente. Mas a de discernir entre uma espiritualidade e teologia que nos leva a Deus que se revelou na vida, morte e ressurreição de Jesus; e a outra que nos leva ao ídolo, que sempre se mostra como um deus poderoso, radiante e glorioso no mundo.
Esta breve reflexão nos mostra que há, pelo menos, dois níveis na discussão da economia. A tarefa teológica da crítica da idolatria - que pertence ao coração da tradição bíblica - que ocorre na economia e da proposição de uma nova noção de Deus como fundamento de uma nova economia. (Max Weber chega a dizer que as ciências sociais devem desvelar os deuses impessoais que estão por detrás das ações na economia e na sociedade, mas não propõe uma crítica a esses deuses.) Outro nível é o do campo técnico-operacional da economia. A discussão sobre a melhor forma de combater a inflação, de aumentar o nível de emprego ou melhorar a distribuição de renda, não é do campo da teologia, mas sim das ciências econômicas. Isto é, não podemos tirar da Bíblia, da teologia, ou até mesmo da doutrina social da Igreja, críticas ou propostas no campo operacional da economia.
É preciso fazer uso das "mediações", como sempre insistiu a Teologia da Libertação. Da análise da economia, desvelar os seus fundamentos teológicos e econômicos; da reflexão teológico-bíblica, dialogar com as ciências econômicas, sociais, políticas e antropológicas para ver quais as diretrizes que melhor expressam os valores da fé. Diretrizes essas que não podem ser confundidas com "receitas" ou práticas econômicas concretas, pois esse é o campo da discussão e de resultados sempre provisórios. Devemos evitar a tentação de absolutizar as "nossas" propostas econômicas, negando diálogo e debate com grupos que, mesmo tendo valores convergentes, pensam de modo diferente os caminhos concretos da economia.
Por tudo isso, para uma boa reflexão teológica socialmente relevante hoje, é fundamental estudarmos as interfaces entre a teologia e economia.
(No próximo artigo, espiritualidade nas experiências econômicas do cotidiano).
[Autor de "Cristianismo de Libertação: espiritualidade e luta social"].
* Professor de pós-graduação em Ciências da Religião
O Crescimento Islã na periferia das cidades do Brasil
Postado por Attman e Kamadon
Jovens negros tornam-se ativistas islâmicos como resposta à desigualdade racial. O que pensam e o que querem os muçulmanos do gueto
Eliane Brum (texto), Marcelo Min (fotos) Revista Época
O ISLÃ NA LAJE
Carlos Soares Correia virou Honerê Al-Amin Oadq. Ele é um dos principais divulgadores muçulmanos do ABC paulista. Na foto, na periferia de São Bernardo do Campo, onde vive, reza e faz política
Cinco vezes ao dia, os olhos ultrapassam o concreto de ruas irregulares, carentes de esgoto e de cidadania, e buscam Meca, no outro lado do mundo. É longe e, para a maioria dos brasileiros, exótico. Para homens como Honerê, Malik e Sharif, é o mais perto que conseguiram chegar de si mesmos. Eles já foram Carlos, Paulo e Ridson. Converteram-se ao islã e forjaram uma nova identidade. São pobres, são negros e, agora, são muçulmanos. Quando buscam o coração islâmico do mundo com a mente, acreditam que o Alcorão é a resposta para o que definem como um projeto de extermínio da juventude afro-brasileira: nas mãos da polícia, na guerra do tráfico, na falta de acesso à educação e à saúde. Homens como eles têm divulgado o islã nas periferias do país, especialmente em São Paulo, como instrumento de transformação política. E preparam-se para levar a mensagem do profeta Maomé aos presos nas cadeias. Ao cravar a bandeira do islã no alto da laje, vislumbram um estado muçulmano no horizonte do Brasil. E, ao explicar sua escolha, repetem uma frase com o queixo contraído e o orgulho no olhar: “Um muçulmano só baixa a cabeça para Alá – e para mais ninguém”.
Honerê, da periferia de São Bernardo do Campo, converteu Malik, da periferia de Francisco Morato, que converteu Sharif, da periferia de Taboão, que vem convertendo outros tantos. É assim que o islã cresce no anel periférico da Grande São Paulo. Os novos muçulmanos não são numerosos, mas sua presença é forte e cada vez mais constante. Nos eventos culturais ou políticos dos guetos, há sempre algumas takiahs cobrindo a cabeça de filhos do islã cheios de atitude. Há brancos, mas a maioria é negra. “O islã não cresce de baciada, mas com qualidade e com pessoas que sabem o que estão fazendo”, diz o rapper Honerê Al-Amin Oadq, na carteira de identidade Carlos Soares Correia, de 31 anos. “Em cada quebrada, alguém me aborda: ‘Já ouvi falar de você e quero conhecer o islã’. É nossa postura que divulga a religião. O islã cresce pela consciência e pelo exemplo.”
Em São Paulo, estima-se em centenas o número de brasileiros convertidos nas periferias nos últimos anos. No país, chegariam aos milhares. O número total de muçulmanos no Brasil é confuso. Pelo censo de 2000, haveria pouco mais de 27 mil adeptos. Pelas entidades islâmicas, o número varia entre 700 mil e 3 milhões. A diferença é um abismo que torna a presença do islã no Brasil uma incógnita. A verdade é que, até esta década, não havia interesse em estender uma lupa sobre uma religião que despertava mais atenção em novelas como O clone que no noticiário.
O muçulmano Feres Fares, divulgador fervoroso do islamismo, tem viajado pelo Brasil para fazer um levantamento das mesquitas e mussalas (espécie de capela). Ele apresenta dados impressionantes. Nos últimos oito anos, o número de locais de oração teria quase quadruplicado no país: de 32, em 2000, para 127, em 2008. Surgiram mesquitas até mesmo em Estados do Norte, como Amapá, Amazonas e Roraima.
Autor do livro Os muçulmanos no Brasil, o xeque iraquiano Ishan Mohammad Ali Kalandar afirma que, depois do 11 de setembro, aumentou muito o número de conversões. “Os brasileiros tomaram conhecimento da religião”, diz. “E o islã sempre foi acolhido primeiro pelos mais pobres.”
Na interpretação de Ali Hussein El Zoghbi, diretor da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil e conselheiro da União Nacional das Entidades Islâmicas, três fatores são fundamentais para entender o fenômeno: o cruzamento de ícones do islamismo com personalidades importantes da história do movimento negro, o acesso a informações instantâneas garantido pela internet e a melhoria na estrutura das entidades brasileiras. “Os filhos dos árabes que chegaram ao Brasil no pós-guerra reuniram mais condições e conhecimento. Isso permitiu nos últimos anos o aumento do proselitismo e uma aproximação maior com a cultura brasileira”, afirma.
Eles trazem ao islã a atitude hip-hop e a formação política do movimento negro
A presença do islã na mídia desde a derrubada das torres gêmeas, reforçada pela invasão americana do Afeganistão e do Iraque, teria causado um duplo efeito. Por um lado, fortalecer a identidade muçulmana de descendentes de árabes afastados da religião, ao se sentir perseguidos e difamados. Por outro, atrair brasileiros sem ligações com o islamismo, mas com forte sentimento de marginalidade. Esse último fenômeno despertou a atenção da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, que citou no Relatório de Liberdade Religiosa de 2008: “As conversões ao islamismo aumentaram recentemente entre os cidadãos não-árabes”.
Os jovens convertidos trazem ao islã a atitude do hip-hop e uma formação política forjada no movimento negro. Ao prostrar-se diante de Alá, acreditam voltar para casa depois de um longo exílio, pois as raízes do islã negro estão fincadas no Brasil escravocrata. E para aflorar no Brasil contemporâneo, percorreram um caminho intrincado. O novo islã negro foi influenciado pela luta dos direitos civis dos afro-americanos, nos anos 60 e, curiosamente, por Hollywood. Cruzou então com o hip-hop do metrô São Bento, em São Paulo, nos anos 80 e 90. E ganhou impulso no 11 de setembro de 2001.
ATIVISTAS
O grupo de Malik (à esq.) e Sharif sonha com um estado islâmico no Brasil, quer construir uma comunidade muçulmana na periferia e levar a religião aos presos nas cadeias
Para contar essa história é preciso voltar a 1835, em Salvador, na Bahia, onde a revolta dos malês, liderada por negros muçulmanos, foi a rebelião de escravos urbanos mais importante da história do país. Pouco citada nos livros escolares, depois de um largo hiato ela chegou às periferias pela rima do rap. Lá, uniu-se ao legado do ativista americano Malcolm X, assimilado pela versão do filme de Spike Lee, de 1992. E ao 11 de setembro, que irrompeu na TV, mas foi colado às teorias conspiratórias que se alastram na internet.
É esse o islã que chega para os mais novos convertidos. E com maior força em São Paulo, porque a capital paulista foi o berço duro do hip-hop no Brasil – movimento histórico de afirmação de identidade da juventude negra e pobre. A tentacular periferia paulista é, como dizem os poetas marginais, a “senzala moderna”. E cada novo convertido acredita ter dentro de si um pouco de malê. Não é à toa que Mano Brown, o mais importante rapper brasileiro, mesmo não sendo muçulmano, diz no rap “Mente de vilão”: No princípio eram trevas, Malcolm foi Lampião/Lâmpada para os pés/Negros de 2010/Fãs de Mumia Abu-Jamal, Osama, Saddam, Al-Qaeda, Talibã, Iraque, Vietnã/Contra os boys, contra o GOE, contra a Ku-Klux-Klan.
“Fico assustado com a linguagem desses rappers, mas não tem mais jeito. Alastrou. Depois que o fogo pega no mato, vai embora. O islã caiu na boca da periferia. E não sabemos o que vai acontecer. É tudo por conta de Alá”, diz Valter Gomes, de 62 anos. Ele parece mais encantado que temeroso. Nos anos 90, “advogou” diante das organizações do movimento negro do ABC paulista e dos guetos de São Paulo com grande veemência. Defendeu que a salvação para os afro-brasileiros era a religião anunciada por Maomé quase 15 séculos atrás: “Irmãos, vocês estão querendo lutar, mas não têm objetivo. Trago para vocês um objetivo e uma bandeira. O objetivo é o paraíso, a bandeira é o islã”.
Essas palavras encontraram material inflamável no coração de alguns rappers, que há muito procuravam um caminho que unisse Deus e ideologia. Enquanto o islamismo soou como religião étnica, trazida ao Brasil pelos imigrantes árabes a partir da segunda metade do século XIX, não houve identificação. Mas, quando o movimento negro, e depois o rap, difundiu a revolta dos malês como uma inflexão de altivez numa história marcada pela submissão, a religião passou a ser vista como raiz a ser resgatada. Os jovens muçulmanos dizem que não se convertem, mas se “revertem” – ou voltam a ser. Para eles, a palavra tem duplo significado: recuperar uma identidade sequestrada pela escravidão e pertencer a uma tradição da qual é possível ter orgulho.
As igrejas evangélicas neopentecostais, que surgiram e se multiplicaram a partir dos anos 80, com grande penetração nas periferias e cadeias, não tinham apelo para jovens negros em busca de identidade e sem vocação para rebanho. “Na igreja evangélica da minha mãe, me incomodava aquela história de Cristo perdoar tudo. Eu já tinha apanhado de polícia pra cacete. E sempre pensava em polícia, porque o tapa na cara é literal. Então, o dia em que tiver uma necessidade de conflito, vou ter de virar o outro lado da cara?”, diz Ridson Mariano da Paixão, de 25 anos. “Eu não estava nesse espírito passivo. Pelo Malcolm X, descobri que, no islã, temos o direito de nos defender. Deus repudia a violência e não permite o ataque, mas dá direito de defesa. Foi esse ponto fundamental que me pegou também quando eu vi pela TV o 11 de setembro e achei que o mundo ia acabar.”
Eles se inspiram em Malcolm X e acreditam que o 11 de setembro divulgou o islã entre os oprimidos
Ridson tornou-se Dugueto Sharif Al Shabazz em 2005. Seu nome é uma síntese histórica da trajetória do islã na periferia brasileira. Ridson, o nome que deixou, foi escolhido pelo pai, um negro que gostava de piadas racistas. Dugueto é o nome do rap, para marcar a origem do gueto. Sharif é o nome do personagem de um filme de gângsteres. Shabazz foi tirado do nome islâmico de Malcolm X.
Essa geração também não perdoa ao catolicismo sua omissão no período da escravidão africana. “Minha família é católica, mas comecei a investigar a história e descobri que a Igreja deu sustentação à escravidão. Diziam que os negros não tinham alma”, afirma Honerê. “Sem contar que Jesus era branco, os anjos eram brancos. E tudo o que era ruim era negro. Aí eu pensava: ‘Então tudo o que é ruim vem de mim?’. Isso parece pequeno, mas na cabeça de um adolescente maltrata, faz com que a gente se torne ruim, viva uma vida ruim. Então conheci o islã.”
Honerê tornou-se um dos principais divulgadores da religião no ABC paulista. Ele é dirigente do Movimento Negro Unificado (MNU) e funcionário do Centro de Divulgação do Islam para a América Latina (CDIAL). Para ele, como para a maioria dos muçulmanos negros, não faz a menor diferença que raça não exista como conceito biológico. Raça é um conceito cultural, que determinou todas as assimetrias socioeconômicas que determinaram sua vida e hoje representa um elemento fundamental na construção de sua identidade, inclusive a religiosa. Ele narra com clareza como Carlos Soares Correia transformou-se em Honerê Al Amin Oadq, em meados dos anos 90:
– Minha mãe era doméstica em casa de branco, muitas vezes foi chamada de “negra infeliz”. Eu percebia que, no sistema de saúde e a todo lugar que eu ia, só gente da minha cor passava por dificuldades. Eu mesmo já levei coronhada da polícia sem justificativa, já defendi mulher negra no metrô, porque branco bêbado achava que era prostituta. Não tem um negro neste país que não tenha uma história de discriminação para contar. Então fui em busca da minha história. Era o tempo em que o rap era música de preto para preto. E o rap me apresentou Malcolm X. Aos 14, 15 anos, ele se tornou a minha grande referência político-racial. Depois descobri a história dos malês. Eles estavam num nível diferente se comparar com os outros negros da senzala. Não bebiam, não fumavam, sabiam escrever, eram instruídos. Se tivessem conseguido tomar a Bahia naquele 25 de janeiro de 1835, teriam o país em suas mãos, e o Brasil seria um estado islâmico.
QUILOMBO
Em São Paulo, a Mesquita Bilal Al Habashi reúne 150 africanos e brasileiros nas orações da sexta-feira, principal dia islâmico
A revolta dos malês (muçulmanos, na língua iorubá) abalou não apenas o Brasil, mas repercutiu na comunidade internacional. Jornais de Londres, Boston e Nova York publicaram notícias sobre o levante. Aumentou o tom da crítica à escravidão.Setenta rebelados morreram. Mais de 500 foram punidos com prisão, pena de morte e deportação para a África. Segundo o historiador João José Reis, em seu livro Rebelião escrava no Brasil (Companhia das Letras), numa comparação com a população atual de Salvador, isso equivaleria hoje a cerca de 24 mil negros castigados.
A força do levante dos malês inspira os novos muçulmanos do gueto. Muitos sonham com um estado islâmico no Brasil – “ainda que seja um estado dentro do Estado”. “Acredito que daqui a dez, 15 anos, isso será possível. Há uma geração tentando fazer isso de forma organizada. O povo brasileiro é religioso. Quando percebeu erros na Igreja Católica, tornou-se evangélico. O islã hoje ainda é pequeno, mas isso pode mudar”, afirma o ex-católico Paulo Sérgio dos Santos, de 33 anos, assessor parlamentar da Câmara de Vereadores de Francisco Morato. Desde a virada do milênio, ele se tornou Abdullah Malik Shabbazz. “É óbvio que não vamos para um confronto armado. Esse caminho terá de vir pela consciência.”
No processo de construção da identidade, os novos convertidos trocaram perguntas e lacunas por certezas. A história é resgatada naquilo que serve a uma afirmação positiva – e as contradições, quando existem, pertencem ao outro. Esses jovens não querem tataravós como Pai Tomás, o escravo humilde do romance de Harriet Beecher Stowe, um marco na abolição da escravatura nos Estados Unidos. Preferem um antepassado como Ahuna, homem-chave na rebelião dos malês. E, sensíveis aos ecos da América negra, desejam eles mesmos ser não o pacifista Martin Luther King, mas o controvertido, belicoso e muçulmano Malcolm X, cuja trajetória de desamparo, violência, prisão e, finalmente, superação é semelhante à de muitos deles. E cujo X – símbolo da identidade arrancada pela escravidão – foi preenchido com um nome islâmico. Embora afirmem que a conversão seja um resgate da tradição, não deixam de exercer o ideal moderno de criar a própria identidade, até com a liberdade de inventar um novo nome que dê conta apenas de seus desejos – e não mais do de seus pais. Agora, eles são filhos do islã. E não mais – ou não apenas – de pais humilhados.
Antes de adotar um nome muçulmano, Honerê foi um dos fundadores de uma das mais antigas posses de hip-hop em atividade, a Haussa, hoje com 15 anos de existência. As posses são grupos que reúnem pessoas com afinidades culturais e políticas para realizar metas comuns. Na história, os africanos haussás lideraram rebeliões escravas na Bahia no início do século XIX. Muçulmanos, eles vinham do que hoje é o norte da Nigéria e de uma guerra santa que forneceu muitos cativos para o tráfico negreiro. No Brasil, é provável que haussás de ambos os lados do conflito tenham se unido contra os brancos. Dois séculos depois, Haussa é uma frente só de negros, com 40 integrantes, no ABC paulista. O nome foi escolhido “porque os haussás não se deixavam domar, tinham convicções e só eram submissos a Deus”.
Os haussás de hoje estavam entre os grupos que escutaram a preleção de Valter Gomes. Alguns, como Honerê, se converteram ao islã. “Descobrir minha história foi como ter passado a vida olhando para baixo, com a sensação de que todo mundo está te julgando e, de repente, passar a andar olhando as pessoas no olho, sem medo”, diz ele.
Os muçulmanos compartilham a certeza de que, quanto mais difamam o islã, mais ele se fortalece. O anúncio do Vaticano, em 2008, de que o islamismo superou pela primeira vez o catolicismo no mundo em número de adeptos para eles é uma prova de que, ao forjar a ligação da religião, como um todo, ao terrorismo fundamentalista, as conversões se multiplicaram, em vez de encolher. Essa face perseguida, vilipendiada e dura tornou-se um ponto de identificação.
Nas telas de TV, o 11 de setembro tornou o islã popular nas periferias do planeta, que vê nos Estados Unidos o símbolo de todas as opressões. No Brasil, o fenômeno se repetiu. “Para nós, aquilo foi coisa do próprio governo americano, para ter desculpa de invadir países muçulmanos. Mas o 11 de setembro ajudou pra caramba na divulgação”, diz o rapper Leandro Arruda, de 33 anos. “Todo mundo queria saber o que era o islã. Não que o Bin Laden seja um herói , mas a gente que vem do gueto tem certa rebeldia contra o governo opressor.”
Rapper e ex-presidiário, Leandro está entre os que se interessaram pela religião ao ver a realidade imitar o cinema-catástrofe de Hollywood. “Percebi que existe um povo com uma postura diferente na Palestina, no Iraque, no Afeganistão. Comecei a procurar informação, encontrei o Malik e acabei me revertendo”, diz. “Eu e minha esposa queremos estudar para divulgar o islã. Porque ninguém melhor do que a gente, que sobe o morro, tem acesso à periferia e conhece a massa, para falar a eles. Porque, se chegar um cara lá vestido de árabe, os ‘negos’ vão dar risada.” Leandro desenvolve há um ano, numa favela da Zona Leste de São Paulo, o projeto Istambul Futebol e Educação, com 25 garotos em situação de risco. Os recursos vêm de um ativista islâmico da periferia paulista que hoje estuda na Síria.
A atuação social responde ao projeto político, que vê no islã uma reação às estatísticas da violência. “Não temos problemas com outras cores e raças. Não nos organizamos por racismo. Só queremos que os afro-descendentes parem de morrer aos 20 anos. Quem morre jovem no Brasil são os que não conhecem suas origens nem tiveram acesso ao conhecimento. É um genocídio da população periférica que vem desde a senzala”, diz Malik. “Desde que me tornei muçulmano, não bebo, não fumo, meus filhos têm pai e mãe, educação e uma vida regrada. O islã nos dá instrumentos para combater problemas sociais que fazem com que sejamos a maioria e tenhamos menos que todos os outros.”
ARAUTO
Valter Gomes foi um dos principais divulgadores do islã no movimento negro. Na foto, ele ora num abatedouro halal, que segue os preceitos islâmicos
Malik é o presidente do Núcleo de Desenvolvimento Islâmico Brasileiro (NDIB), a organização mais combativa do novo islã negro. O vice-presidente faz formação no Paquistão desde o ano passado. Pequeno, o NDIB tem apenas oito integrantes, entre eles Sharif e Leandro. Mas foi capaz de promover, no fim de 2007, um encontro entre o americano Fred Hampton Jr., o rapper Mano Brown e lideranças do movimento negro e de jovens muçulmanos, em São Paulo. Fred Hampton Jr. é o filho do líder dos Panteras Negras – organização criada nos anos 60, nos Estados Unidos, que defendia teses como o pagamento de compensação aos negros pela escravidão e o armamento daqueles que se sentissem ameaçados pela força policial.
Ativista como o pai, Hampton Jr. passou quase nove anos preso e fundou na cadeia o Prisoners of Conscience Committee (POCC), em português Comitê dos Prisioneiros de Consciência. Nem o POCC nem Hampton Jr. se apresentam como muçulmanos. Mas a organização tem islâmicos na coordenação, com quem o NDIB mantém boas relações. O POCC defende que todos os detentos são prisioneiros políticos, porque a desigualdade racial não lhes deu escolha. As prisões seriam, para eles, um dos passos do extermínio planejado da população negra.
Numa parceria com o Conselho Nacional de Negros e Negras Cristãos, o NDIB levou Hampton Jr. a um encontro com a comunidade afro-brasileira em Salvador, na Bahia. Suas teses têm pontos de conexão com a campanha “Reaja ou será morto, reaja ou será morta”, concebida por organizações sociais baianas, que denuncia aquilo que consideram ser o “genocídio da juventude negra brasileira pela violência do aparato repressivo do Estado” e prega “a defesa por todos os meios necessários”.
Hampton Jr., que também conheceu os morros do Rio de Janeiro, anunciou uma conexão entre o Brasil e os Estados Unidos. “O manifesto antiterrorista não deve observar nenhuma fronteira colonial. Precisamos combater todas as formas de terrorismo que nos são impostas: o crack, a falta de políticas públicas, a aids e o ataque policial. O povo negro é a vítima preferencial”, diz. Em Salvador, ele concluiu com uma analogia: “Para nós, do POCC, cada dia é como se fosse 11 de setembro. O que os brancos sofreram com o ataque terrorista, nós, negros, sofremos todo dia”. Em São Paulo, Hampton Jr. e Mano Brown cerraram os punhos. E foram aclamados.
O principal articulador da vinda de Hampton Jr. foi Sharif, que mantém contatos com muçulmanos dos guetos da França, do Canadá e dos Estados Unidos. Rapper, ele trabalha com a educação de crianças e faz parte do movimento de literatura periférica. Aos 25 anos, tem um texto contundente, com forte denúncia da desigualdade racial. Descendente de africanos e italianos, tem olhos verdes e pele clara, mas não tem dúvidas de que é negro. “Dizem que não existe raça e somos todos brasileiros, mas qual é a cor que predomina nas cadeias, na Febem e nas favelas? Negros”, afirma. “Não queremos vingança, só nosso lugar numa sociedade que ajudamos a construir. O islã não tem cor, é para todos. Mas somos negros numa sociedade racista. Então temos problemas à parte para resolver e nos posicionamos.”
Os ativistas do NDIB acreditam que o islamismo pode ser uma alternativa à conversão evangélica, maciça nas prisões brasileiras. Para seu projeto político-religioso, entrar nas cadeias é estratégico, e o POCC, de Hampton Jr., é um parceiro importante. “Os presos têm virado crentes por falta de opção, porque a última escolha do presidiário é virar evangélico”, afirma Leandro. “O islã é construção de conhecimento. Queremos trabalhar levando essa consciência, construindo a história de cada um e mostrando que, independentemente do crime que cometeram, eles são presos políticos”, diz Sharif.
Em 2009, o núcleo islâmico quer iniciar a construção de Nova Medina, uma comunidade muçulmana capaz de acolher os convertidos de vários pontos da periferia paulista. “Hoje estamos espalhados, e isso dificulta a organização”, diz Malik. “Sonhamos com um bairro muçulmano onde não existam bares com bebidas alcoólicas nas esquinas, os açougues não vendam carne de porco, nossas crianças possam estudar em escolas islâmicas e nossas mulheres não sejam chamadas de mulher-bomba.” Para isso, pensam em adquirir um pedaço de terra e fazer um loteamento. Alguns já se mudaram para a periferia de Francisco Morato, um dos municípios mais pobres da Grande São Paulo. Medina, até agora o nome mais provável, está na origem do islamismo: é a cidade da Arábia Saudita para onde o profeta Maomé migrou para escapar das perseguições que sofria em Meca. A migração marca o início do calendário islâmico.
Eles planejam converter os presos e construir uma comunidade muçulmana na periferia paulista
Diante de expressões de incredulidade, eles dão um sorriso malicioso: “Se, há dez anos, eu dissesse a você que um negro seria o presidente dos Estados Unidos, você acreditaria?”. Ou, como diz Valter Gomes: “Eu vi Martin Luther King morrer. E posso dizer que é uma revolução muito rápida. Um torneiro mecânico é presidente do Brasil, um índio é presidente da Bolívia e um negão com nome muçulmano é presidente do país mais poderoso do mundo. Ou é o fim do mundo ou é o começo de alguma coisa…”.
No islã dos manos, o rap é o instrumento e a linguagem de divulgação da religião. “Muita gente ainda vai vir para o islã pelo rap. Nós ganhamos consciência pelo hip-hop, então não podemos negar nossa história. As pessoas na periferia veem aquela negrada fazendo rima e poesia, percebem sua atitude diferenciada, sua postura na vida, e querem se aproximar. Isso é o começo da reversão”, diz Honerê. “É um passo depois do outro.”
Com uma takiah verde-amarela na cabeça – símbolo de sua condição de muçulmano brasileiro que não aceita mudar de nome –, Valter Gomes entrega tudo nas mãos de Alá. Tem os olhos úmidos quando afirma: “Alá diz no Alcorão que para cada povo há um profeta que fala a sua língua. Então, quem sabe não aparece um negrinho cheio de ginga e de rima na periferia?”.
A mesquita dos negros
No centro de São Paulo, uma África islâmica
VELHA-GUARDA
Seu Malma é um dos pioneiros do islã afro-brasileiro
A Mesquita Bilal Al Habashi é um daqueles lugares que fazem de São Paulo uma cidade fascinante, apesar do trânsito e da poluição. No 9o andar do Edifício Esther, exemplar modernista do centro, estudado nas escolas de arquitetura, a mesquita acolhe imigrantes da África e brasileiros de origem africana para as cinco orações do dia. Instalada no apartamento que foi do pintor Di Cavalcanti, ela evoca uma intrigante algaravia: inglês, francês, português e dialetos tribais. As vozes só silenciam para ouvir o xeque recitar o Alcorão – em árabe. Enquanto os muçulmanos rezam, o edifício repete uma rotina caleidoscópica. Na cobertura, vive o padeiro com sotaque francês Olivier Anquier. No subsolo, um cabaré exercita outras línguas. No histórico Edifício Esther, a Bilal al Habashi tem essa sina. Cultiva o espírito, espremida entre o pão e a carne.Inaugurada em 2005, a mesquita tem um nome simbólico. Bilal foi um escravo abissínio torturado pelo dono para renunciar à religião. Resistiu e tornou-se o primeiro muezim do islã, encarregado de chamar os fiéis para as orações. Bilal era também o nome de um dos líderes da revolta dos malês. Assim, é um símbolo de resistência tanto para africanos no Brasil como para brasileiros com raízes na África.
O presidente da mesquita é também uma instituição. Muhammad Ali, como o famoso boxeador, foi um dos primeiros muçulmanos sem ascendência árabe em São Paulo. Aos 17 anos, chamava-se Jair Maceió quando ouviu pela primeira vez o nome do islã junto ao Viaduto do Chá, ponto de encontro dos negros paulistanos. Jair vivia a orfandade com os pais vivos. Sem recursos para criá-lo, eles entregaram-no ao Estado. O sobrenome, Maceió, como é comum entre descendentes de escravos, indicava a terra onde o avô fora cativo. Desenraizado, a luta pelos direitos civis dos negros americanos, nos anos 60, retumbou dentro dele. Quando o boxeador Muhammad Ali se recusou a lutar no Vietnã, dizendo que aquela não era uma guerra dele, Jair acreditou ter agarrado a ponta de uma raiz comum. Parou de dançar, seu “único vício”, e tornou-se Muhammad Ali Numairi. Com esse nome, fundou a Mesquita Muçulmana Afro-Brasileira, em 1974, ao lado de Joel Azor da Silva e Abdullah Menelik Omar. O objetivo “era arrumar a sociedade negra e impedir a dissolução da família afro-brasileira pela bebida e pela droga”.
Aos 58 anos, Seu Malma, como é conhecido, diz que o islã é para todos. Sua mesquita virou bússola para os perdidos africanos, a maioria clandestinos no Brasil. Eles dividem o espaço com “o pessoal do rap”, que tem dado dor de cabeça a Seu Malma. “Música é proibido no islã. E gueto só serve à classe dominante, que quer mantê-los lá”, diz. “Mas eles acham que o rap é importante para divulgar o islã na periferia e que eu sou da velha-guarda.” Com a “jovem guarda do islã”, Seu Malma compartilha a utopia: “Quero fazer do Brasil um país muçulmano”.
Muhammad foi ao cinema e se converteu
Hoje, ele prepara “a base de um levante cultural”, com migrantes nordestinos e gaúchos sem-terra, em Passo Fundo
Nivaldo Florentino de Lucena recebeu a dica de um amigo: “Tem um filme com a história de um negão que é da hora!”. O “negão” era Malcolm X. O filme era a biografia do ativista americano, dirigida por Spike Lee. Numa sessão lotada de rappers, Nivaldo, da Zona Leste de São Paulo, concluiu que o negão era da hora mesmo. Filho de uma mãe que, no censo do IBGE, se declarava “branca” e de um pai que se anunciava “pardo”, ele pertencia à geração que tinha certeza de que eram todos “negros”. Saiu do cinema decidido a encontrar uma mesquita. Era 1992. Muhammad trocou a bebida, as drogas e os pequenos crimes pelo Alcorão. Anos mais tarde, se formou em teologia islâmica na Líbia. Em 2002, desembarcou na gaúcha Passo Fundo, cidade de colonização europeia, onde loiras naturais são tão corriqueiras como o chimarrão. Tinha duas metas sob a takiah muçulmana: assumir um posto numa multinacional de frangos halal (abatidos segundo a prescrição islâmica) e divulgar o islã.
Quando Muhammad Lucena chegou, havia três famílias muçulmanas de origem árabe. Hoje, ele conta mais de 40, a maioria composta de trabalhadores da empresa. Muhammad se tornou o imã, líder religioso, de uma comunidade com um perfil inédito: migrantes nordestinos que chegaram ao sul como mascates e gaúchos que trocaram a zona rural pela periferia da cidade. No caso de Passo Fundo, o islã disputa, no campo religioso, com a Igreja Católica e com as neopentecostais evangélicas. No campo político, com o MST. “Sempre fui peão e, como negro, fui vítima de muito preconceito aqui no Rio Grande”, diz Valdivino Bueno da Silva. “Tinha intenção de virar sem-terra, como o meu irmão, mas acabei ficando por aqui e me convertendo.” Em 2005, aos 24 anos, ele conseguiu vencer o alcoolismo e virou Abdallah.
Tornou-se “irmão” no islã de João Paulo Silva, que deixou o sertão do Ceará para vender artigos de cama e mesa pelas ruas de Passo Fundo. “Gaúcho chama todos os nordestinos de baiano”, diz. “Era uma vida sofrida.” Aos 20 anos, mudou de sina, adotou o nome de Jaber e virou um obstinado divulgador do islã. Converteu a mulher, irmã de um pastor da cidade. E também os sogros, que abandonaram a crença evangélica e vieram do interior do Paraná para ficar perto da comunidade islâmica de Passo Fundo, em franca expansão. Ela já tem um cemitério e o terreno da futura mesquita, doado pelo governo do Kuwait.
Muhammad, de 33 anos, casado com uma branca e pai de cinco filhos, defende um islã para todas as cores e raças. Na Líbia, conheceu Louis Farrakhan, mas não simpatiza com as “ideias radicais” do líder da Nação do Islã. Ele crê, porém, que o Brasil vive “uma nova revolução islâmica”. “Há focos do islã borbulhando em toda parte. Existem hoje brasileiros estudando na África, na Ásia e no Brasil para fazer a inserção de muçulmanos em órgãos-chave”, diz. “Já temos a base pronta, com os mais pobres. Só nos falta um líder para ter um levante. Não armado, mas cultural.”
Por trás do véu, um novo perfil de mulher islâmica
Chamadas de “mulher-bomba” nos ônibus metropolitanos, elas começam a alterar o cenário urbano
CAMINHOS DO ISLÃ
Brasileiras sem ascendência árabe, Latifa, Samira e Andréia vivem na comunidade muçulmana da gaúcha Passo Fundo… e Luana, Elisângela e Dona Ilma, que cruzam o Viaduto Santa Ifigênia, no centro da capital paulista, são militantes da religião na Grande São Paulo
Ela é “Dona” Ilma. E tão dona que o dela merece maiúscula e já se integrou ao nome. Não por acaso, é a que lidera a fila na foto. Como ela mesma diz, abriu seu espaço com “punhos e conhecimento”. Ilma Maria Vieira Kanauna é uma das pioneiras no movimento islâmico afro-brasileiro, em São Paulo. Aos 53 anos, convertida há mais de duas décadas, é tratada com um temor respeitoso, porque Dona Ilma é mulher braba. Nada mais distante dela que o estereótipo da mulher árabe submissa, sempre dentro de casa, que resiste no imaginário ocidental como a realidade única da mulher no islã. Sua cartilha é a das malês, mulheres ativas no levante escravo de 1835. “A América foi edificada sobre os ombros dos homens negros e o ventre das mulheres negras”, diz com solenidade. “E o islã é o espelho em que eu me vi refletida.”
Dona Ilma é filha de uma “tradicional família negra”, de origem matriarcal. Até os 6 anos, se criou numa área de quilombo, em Minas Gerais. Lembra a avó e a mãe sempre vestidas de preto, rezando com a janela aberta e mandando nos homens e no curso da vida. Quando a mãe morreu de parto, o pai se mudou, e ela ainda hoje diverte-se com a memória dos primeiros brancos que surgiram no seu campo de visão. “Eu e meu irmão achávamos que eram lobisomens”, diz. “Nos chamavam pra brincar, e a gente se escondia achando que iam nos comer.”
Algumas aventuras mais tarde, porque a vida de Dona Ilma dá mesmo um romance, acabou filha adotiva de uma família de descendentes de alemães, com quem ainda hoje vive e se entende bem. Primeiro tornou-se comunista, depois muçulmana. É educadora por vocação e, por convicção, só trabalha em escolas de periferia. Compara o 11 de setembro a “uma mulher que passa a vida apanhando e um dia dá 11 tiros no marido”. E acredita que a violência no Brasil, da qual já foi vítima, é a forma de as minorias sem identidade e futuro pedirem socorro. “Nossas crianças estão perdidas, escrevendo Joaquim com ‘n’ e não se reconhecendo em espelho algum”, diz.
A testa lisa de Dona Ilma só é contraída por uma ruga quando fala sobre a nova geração de muçulmanos. “O islã sempre trouxe cidadania para as minorias. E as periferias são as senzalas de hoje. Mas as novas gerações têm muito punho ainda, tenho medo que acabem sendo segregacionistas”, afirma. “Não precisamos mais de um discurso de raça, precisamos de cidadania. Acredito, porém, que é um ritual de passagem. Quando me converti, também era muito radical. Vamos deixar eles gritarem um pouco.”
Na foto, ela é seguida por Elisângela Résio, de 31 anos, e Luana de Assis, de 28. Há quatro, Luana trocou a vida de “balada de segunda a segunda” e um figurino hip-hop para se tornar muçulmana. Elisângela se converteu em maio, no dia em que casou com o rapper Leandro Arruda, que conheceu num show dos Racionais MC’s. Até pouco tempo, um início de romance inusitado para uma muçulmana. “O que você acha de Jesus?”, ele perguntou. Tudo começou a dar certo quando ela disse que Jesus era um profeta – e não o filho de Deus.
Como qualquer trabalhadora, elas pegam ônibus e trens lotados de segunda a sexta- -feira, da Grande São Paulo para a capital, e vice-versa. Nas ruas, já se habituaram a ser chamadas de “mulher-bomba” ou “prima do Bin Laden”. “O povo não está acostumado a ver muçulmanas sacolejando em ônibus e trens como qualquer mulher que precisa trabalhar”, diz Luana. “Confundem religião com cultura, acham que todo muçulmano é árabe e toda muçulmana só fica em casa.”
Fiel às rimas de sua geração, Elisângela dá um conteúdo político próprio à indumentária islâmica. “A mídia impõe que brasileira tem de andar de minissaia ou shortinho, meio pelada. É a imposição de um estereótipo que as mulheres seguem desde criança sem nem se dar conta”, diz. “Por que minha roupa de muçulmana chama a atenção dentro do trem e a menina seminua não?” A própria Elisângela responde: “ Porque estou fora dos padrões que a mídia impõe, tenho identidade própria, fiz minha escolha”.
Elisângela afirma que conseguiu até parar de fumar. Só demorou a aceitar que o marido possa ter outras mulheres – “direito” pouco exercido no Brasil, que pune a bigamia no Código Penal. Depois de embates internos, ela capitulou. “É um direito dele. Quem sou eu para discordar do Alcorão? ”, diz. “Prefiro que tenha uma segunda mulher do que me traia. O homem tem necessidades.”
Essa mesma mulher traz na cabeceira O capital, de Karl Marx, e diz admirar Che Guevara com fervor revolucionário.
Jan 30, 2009
Jovens negros tornam-se ativistas islâmicos como resposta à desigualdade racial. O que pensam e o que querem os muçulmanos do gueto
Eliane Brum (texto), Marcelo Min (fotos) Revista Época
O ISLÃ NA LAJE
Carlos Soares Correia virou Honerê Al-Amin Oadq. Ele é um dos principais divulgadores muçulmanos do ABC paulista. Na foto, na periferia de São Bernardo do Campo, onde vive, reza e faz política
Cinco vezes ao dia, os olhos ultrapassam o concreto de ruas irregulares, carentes de esgoto e de cidadania, e buscam Meca, no outro lado do mundo. É longe e, para a maioria dos brasileiros, exótico. Para homens como Honerê, Malik e Sharif, é o mais perto que conseguiram chegar de si mesmos. Eles já foram Carlos, Paulo e Ridson. Converteram-se ao islã e forjaram uma nova identidade. São pobres, são negros e, agora, são muçulmanos. Quando buscam o coração islâmico do mundo com a mente, acreditam que o Alcorão é a resposta para o que definem como um projeto de extermínio da juventude afro-brasileira: nas mãos da polícia, na guerra do tráfico, na falta de acesso à educação e à saúde. Homens como eles têm divulgado o islã nas periferias do país, especialmente em São Paulo, como instrumento de transformação política. E preparam-se para levar a mensagem do profeta Maomé aos presos nas cadeias. Ao cravar a bandeira do islã no alto da laje, vislumbram um estado muçulmano no horizonte do Brasil. E, ao explicar sua escolha, repetem uma frase com o queixo contraído e o orgulho no olhar: “Um muçulmano só baixa a cabeça para Alá – e para mais ninguém”.
Honerê, da periferia de São Bernardo do Campo, converteu Malik, da periferia de Francisco Morato, que converteu Sharif, da periferia de Taboão, que vem convertendo outros tantos. É assim que o islã cresce no anel periférico da Grande São Paulo. Os novos muçulmanos não são numerosos, mas sua presença é forte e cada vez mais constante. Nos eventos culturais ou políticos dos guetos, há sempre algumas takiahs cobrindo a cabeça de filhos do islã cheios de atitude. Há brancos, mas a maioria é negra. “O islã não cresce de baciada, mas com qualidade e com pessoas que sabem o que estão fazendo”, diz o rapper Honerê Al-Amin Oadq, na carteira de identidade Carlos Soares Correia, de 31 anos. “Em cada quebrada, alguém me aborda: ‘Já ouvi falar de você e quero conhecer o islã’. É nossa postura que divulga a religião. O islã cresce pela consciência e pelo exemplo.”
Em São Paulo, estima-se em centenas o número de brasileiros convertidos nas periferias nos últimos anos. No país, chegariam aos milhares. O número total de muçulmanos no Brasil é confuso. Pelo censo de 2000, haveria pouco mais de 27 mil adeptos. Pelas entidades islâmicas, o número varia entre 700 mil e 3 milhões. A diferença é um abismo que torna a presença do islã no Brasil uma incógnita. A verdade é que, até esta década, não havia interesse em estender uma lupa sobre uma religião que despertava mais atenção em novelas como O clone que no noticiário.
O muçulmano Feres Fares, divulgador fervoroso do islamismo, tem viajado pelo Brasil para fazer um levantamento das mesquitas e mussalas (espécie de capela). Ele apresenta dados impressionantes. Nos últimos oito anos, o número de locais de oração teria quase quadruplicado no país: de 32, em 2000, para 127, em 2008. Surgiram mesquitas até mesmo em Estados do Norte, como Amapá, Amazonas e Roraima.
Autor do livro Os muçulmanos no Brasil, o xeque iraquiano Ishan Mohammad Ali Kalandar afirma que, depois do 11 de setembro, aumentou muito o número de conversões. “Os brasileiros tomaram conhecimento da religião”, diz. “E o islã sempre foi acolhido primeiro pelos mais pobres.”
Na interpretação de Ali Hussein El Zoghbi, diretor da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil e conselheiro da União Nacional das Entidades Islâmicas, três fatores são fundamentais para entender o fenômeno: o cruzamento de ícones do islamismo com personalidades importantes da história do movimento negro, o acesso a informações instantâneas garantido pela internet e a melhoria na estrutura das entidades brasileiras. “Os filhos dos árabes que chegaram ao Brasil no pós-guerra reuniram mais condições e conhecimento. Isso permitiu nos últimos anos o aumento do proselitismo e uma aproximação maior com a cultura brasileira”, afirma.
Eles trazem ao islã a atitude hip-hop e a formação política do movimento negro
A presença do islã na mídia desde a derrubada das torres gêmeas, reforçada pela invasão americana do Afeganistão e do Iraque, teria causado um duplo efeito. Por um lado, fortalecer a identidade muçulmana de descendentes de árabes afastados da religião, ao se sentir perseguidos e difamados. Por outro, atrair brasileiros sem ligações com o islamismo, mas com forte sentimento de marginalidade. Esse último fenômeno despertou a atenção da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, que citou no Relatório de Liberdade Religiosa de 2008: “As conversões ao islamismo aumentaram recentemente entre os cidadãos não-árabes”.
Os jovens convertidos trazem ao islã a atitude do hip-hop e uma formação política forjada no movimento negro. Ao prostrar-se diante de Alá, acreditam voltar para casa depois de um longo exílio, pois as raízes do islã negro estão fincadas no Brasil escravocrata. E para aflorar no Brasil contemporâneo, percorreram um caminho intrincado. O novo islã negro foi influenciado pela luta dos direitos civis dos afro-americanos, nos anos 60 e, curiosamente, por Hollywood. Cruzou então com o hip-hop do metrô São Bento, em São Paulo, nos anos 80 e 90. E ganhou impulso no 11 de setembro de 2001.
ATIVISTAS
O grupo de Malik (à esq.) e Sharif sonha com um estado islâmico no Brasil, quer construir uma comunidade muçulmana na periferia e levar a religião aos presos nas cadeias
Para contar essa história é preciso voltar a 1835, em Salvador, na Bahia, onde a revolta dos malês, liderada por negros muçulmanos, foi a rebelião de escravos urbanos mais importante da história do país. Pouco citada nos livros escolares, depois de um largo hiato ela chegou às periferias pela rima do rap. Lá, uniu-se ao legado do ativista americano Malcolm X, assimilado pela versão do filme de Spike Lee, de 1992. E ao 11 de setembro, que irrompeu na TV, mas foi colado às teorias conspiratórias que se alastram na internet.
É esse o islã que chega para os mais novos convertidos. E com maior força em São Paulo, porque a capital paulista foi o berço duro do hip-hop no Brasil – movimento histórico de afirmação de identidade da juventude negra e pobre. A tentacular periferia paulista é, como dizem os poetas marginais, a “senzala moderna”. E cada novo convertido acredita ter dentro de si um pouco de malê. Não é à toa que Mano Brown, o mais importante rapper brasileiro, mesmo não sendo muçulmano, diz no rap “Mente de vilão”: No princípio eram trevas, Malcolm foi Lampião/Lâmpada para os pés/Negros de 2010/Fãs de Mumia Abu-Jamal, Osama, Saddam, Al-Qaeda, Talibã, Iraque, Vietnã/Contra os boys, contra o GOE, contra a Ku-Klux-Klan.
“Fico assustado com a linguagem desses rappers, mas não tem mais jeito. Alastrou. Depois que o fogo pega no mato, vai embora. O islã caiu na boca da periferia. E não sabemos o que vai acontecer. É tudo por conta de Alá”, diz Valter Gomes, de 62 anos. Ele parece mais encantado que temeroso. Nos anos 90, “advogou” diante das organizações do movimento negro do ABC paulista e dos guetos de São Paulo com grande veemência. Defendeu que a salvação para os afro-brasileiros era a religião anunciada por Maomé quase 15 séculos atrás: “Irmãos, vocês estão querendo lutar, mas não têm objetivo. Trago para vocês um objetivo e uma bandeira. O objetivo é o paraíso, a bandeira é o islã”.
Essas palavras encontraram material inflamável no coração de alguns rappers, que há muito procuravam um caminho que unisse Deus e ideologia. Enquanto o islamismo soou como religião étnica, trazida ao Brasil pelos imigrantes árabes a partir da segunda metade do século XIX, não houve identificação. Mas, quando o movimento negro, e depois o rap, difundiu a revolta dos malês como uma inflexão de altivez numa história marcada pela submissão, a religião passou a ser vista como raiz a ser resgatada. Os jovens muçulmanos dizem que não se convertem, mas se “revertem” – ou voltam a ser. Para eles, a palavra tem duplo significado: recuperar uma identidade sequestrada pela escravidão e pertencer a uma tradição da qual é possível ter orgulho.
As igrejas evangélicas neopentecostais, que surgiram e se multiplicaram a partir dos anos 80, com grande penetração nas periferias e cadeias, não tinham apelo para jovens negros em busca de identidade e sem vocação para rebanho. “Na igreja evangélica da minha mãe, me incomodava aquela história de Cristo perdoar tudo. Eu já tinha apanhado de polícia pra cacete. E sempre pensava em polícia, porque o tapa na cara é literal. Então, o dia em que tiver uma necessidade de conflito, vou ter de virar o outro lado da cara?”, diz Ridson Mariano da Paixão, de 25 anos. “Eu não estava nesse espírito passivo. Pelo Malcolm X, descobri que, no islã, temos o direito de nos defender. Deus repudia a violência e não permite o ataque, mas dá direito de defesa. Foi esse ponto fundamental que me pegou também quando eu vi pela TV o 11 de setembro e achei que o mundo ia acabar.”
Eles se inspiram em Malcolm X e acreditam que o 11 de setembro divulgou o islã entre os oprimidos
Ridson tornou-se Dugueto Sharif Al Shabazz em 2005. Seu nome é uma síntese histórica da trajetória do islã na periferia brasileira. Ridson, o nome que deixou, foi escolhido pelo pai, um negro que gostava de piadas racistas. Dugueto é o nome do rap, para marcar a origem do gueto. Sharif é o nome do personagem de um filme de gângsteres. Shabazz foi tirado do nome islâmico de Malcolm X.
Essa geração também não perdoa ao catolicismo sua omissão no período da escravidão africana. “Minha família é católica, mas comecei a investigar a história e descobri que a Igreja deu sustentação à escravidão. Diziam que os negros não tinham alma”, afirma Honerê. “Sem contar que Jesus era branco, os anjos eram brancos. E tudo o que era ruim era negro. Aí eu pensava: ‘Então tudo o que é ruim vem de mim?’. Isso parece pequeno, mas na cabeça de um adolescente maltrata, faz com que a gente se torne ruim, viva uma vida ruim. Então conheci o islã.”
Honerê tornou-se um dos principais divulgadores da religião no ABC paulista. Ele é dirigente do Movimento Negro Unificado (MNU) e funcionário do Centro de Divulgação do Islam para a América Latina (CDIAL). Para ele, como para a maioria dos muçulmanos negros, não faz a menor diferença que raça não exista como conceito biológico. Raça é um conceito cultural, que determinou todas as assimetrias socioeconômicas que determinaram sua vida e hoje representa um elemento fundamental na construção de sua identidade, inclusive a religiosa. Ele narra com clareza como Carlos Soares Correia transformou-se em Honerê Al Amin Oadq, em meados dos anos 90:
– Minha mãe era doméstica em casa de branco, muitas vezes foi chamada de “negra infeliz”. Eu percebia que, no sistema de saúde e a todo lugar que eu ia, só gente da minha cor passava por dificuldades. Eu mesmo já levei coronhada da polícia sem justificativa, já defendi mulher negra no metrô, porque branco bêbado achava que era prostituta. Não tem um negro neste país que não tenha uma história de discriminação para contar. Então fui em busca da minha história. Era o tempo em que o rap era música de preto para preto. E o rap me apresentou Malcolm X. Aos 14, 15 anos, ele se tornou a minha grande referência político-racial. Depois descobri a história dos malês. Eles estavam num nível diferente se comparar com os outros negros da senzala. Não bebiam, não fumavam, sabiam escrever, eram instruídos. Se tivessem conseguido tomar a Bahia naquele 25 de janeiro de 1835, teriam o país em suas mãos, e o Brasil seria um estado islâmico.
QUILOMBO
Em São Paulo, a Mesquita Bilal Al Habashi reúne 150 africanos e brasileiros nas orações da sexta-feira, principal dia islâmico
A revolta dos malês (muçulmanos, na língua iorubá) abalou não apenas o Brasil, mas repercutiu na comunidade internacional. Jornais de Londres, Boston e Nova York publicaram notícias sobre o levante. Aumentou o tom da crítica à escravidão.Setenta rebelados morreram. Mais de 500 foram punidos com prisão, pena de morte e deportação para a África. Segundo o historiador João José Reis, em seu livro Rebelião escrava no Brasil (Companhia das Letras), numa comparação com a população atual de Salvador, isso equivaleria hoje a cerca de 24 mil negros castigados.
A força do levante dos malês inspira os novos muçulmanos do gueto. Muitos sonham com um estado islâmico no Brasil – “ainda que seja um estado dentro do Estado”. “Acredito que daqui a dez, 15 anos, isso será possível. Há uma geração tentando fazer isso de forma organizada. O povo brasileiro é religioso. Quando percebeu erros na Igreja Católica, tornou-se evangélico. O islã hoje ainda é pequeno, mas isso pode mudar”, afirma o ex-católico Paulo Sérgio dos Santos, de 33 anos, assessor parlamentar da Câmara de Vereadores de Francisco Morato. Desde a virada do milênio, ele se tornou Abdullah Malik Shabbazz. “É óbvio que não vamos para um confronto armado. Esse caminho terá de vir pela consciência.”
No processo de construção da identidade, os novos convertidos trocaram perguntas e lacunas por certezas. A história é resgatada naquilo que serve a uma afirmação positiva – e as contradições, quando existem, pertencem ao outro. Esses jovens não querem tataravós como Pai Tomás, o escravo humilde do romance de Harriet Beecher Stowe, um marco na abolição da escravatura nos Estados Unidos. Preferem um antepassado como Ahuna, homem-chave na rebelião dos malês. E, sensíveis aos ecos da América negra, desejam eles mesmos ser não o pacifista Martin Luther King, mas o controvertido, belicoso e muçulmano Malcolm X, cuja trajetória de desamparo, violência, prisão e, finalmente, superação é semelhante à de muitos deles. E cujo X – símbolo da identidade arrancada pela escravidão – foi preenchido com um nome islâmico. Embora afirmem que a conversão seja um resgate da tradição, não deixam de exercer o ideal moderno de criar a própria identidade, até com a liberdade de inventar um novo nome que dê conta apenas de seus desejos – e não mais do de seus pais. Agora, eles são filhos do islã. E não mais – ou não apenas – de pais humilhados.
Antes de adotar um nome muçulmano, Honerê foi um dos fundadores de uma das mais antigas posses de hip-hop em atividade, a Haussa, hoje com 15 anos de existência. As posses são grupos que reúnem pessoas com afinidades culturais e políticas para realizar metas comuns. Na história, os africanos haussás lideraram rebeliões escravas na Bahia no início do século XIX. Muçulmanos, eles vinham do que hoje é o norte da Nigéria e de uma guerra santa que forneceu muitos cativos para o tráfico negreiro. No Brasil, é provável que haussás de ambos os lados do conflito tenham se unido contra os brancos. Dois séculos depois, Haussa é uma frente só de negros, com 40 integrantes, no ABC paulista. O nome foi escolhido “porque os haussás não se deixavam domar, tinham convicções e só eram submissos a Deus”.
Os haussás de hoje estavam entre os grupos que escutaram a preleção de Valter Gomes. Alguns, como Honerê, se converteram ao islã. “Descobrir minha história foi como ter passado a vida olhando para baixo, com a sensação de que todo mundo está te julgando e, de repente, passar a andar olhando as pessoas no olho, sem medo”, diz ele.
Os muçulmanos compartilham a certeza de que, quanto mais difamam o islã, mais ele se fortalece. O anúncio do Vaticano, em 2008, de que o islamismo superou pela primeira vez o catolicismo no mundo em número de adeptos para eles é uma prova de que, ao forjar a ligação da religião, como um todo, ao terrorismo fundamentalista, as conversões se multiplicaram, em vez de encolher. Essa face perseguida, vilipendiada e dura tornou-se um ponto de identificação.
Nas telas de TV, o 11 de setembro tornou o islã popular nas periferias do planeta, que vê nos Estados Unidos o símbolo de todas as opressões. No Brasil, o fenômeno se repetiu. “Para nós, aquilo foi coisa do próprio governo americano, para ter desculpa de invadir países muçulmanos. Mas o 11 de setembro ajudou pra caramba na divulgação”, diz o rapper Leandro Arruda, de 33 anos. “Todo mundo queria saber o que era o islã. Não que o Bin Laden seja um herói , mas a gente que vem do gueto tem certa rebeldia contra o governo opressor.”
Rapper e ex-presidiário, Leandro está entre os que se interessaram pela religião ao ver a realidade imitar o cinema-catástrofe de Hollywood. “Percebi que existe um povo com uma postura diferente na Palestina, no Iraque, no Afeganistão. Comecei a procurar informação, encontrei o Malik e acabei me revertendo”, diz. “Eu e minha esposa queremos estudar para divulgar o islã. Porque ninguém melhor do que a gente, que sobe o morro, tem acesso à periferia e conhece a massa, para falar a eles. Porque, se chegar um cara lá vestido de árabe, os ‘negos’ vão dar risada.” Leandro desenvolve há um ano, numa favela da Zona Leste de São Paulo, o projeto Istambul Futebol e Educação, com 25 garotos em situação de risco. Os recursos vêm de um ativista islâmico da periferia paulista que hoje estuda na Síria.
A atuação social responde ao projeto político, que vê no islã uma reação às estatísticas da violência. “Não temos problemas com outras cores e raças. Não nos organizamos por racismo. Só queremos que os afro-descendentes parem de morrer aos 20 anos. Quem morre jovem no Brasil são os que não conhecem suas origens nem tiveram acesso ao conhecimento. É um genocídio da população periférica que vem desde a senzala”, diz Malik. “Desde que me tornei muçulmano, não bebo, não fumo, meus filhos têm pai e mãe, educação e uma vida regrada. O islã nos dá instrumentos para combater problemas sociais que fazem com que sejamos a maioria e tenhamos menos que todos os outros.”
ARAUTO
Valter Gomes foi um dos principais divulgadores do islã no movimento negro. Na foto, ele ora num abatedouro halal, que segue os preceitos islâmicos
Malik é o presidente do Núcleo de Desenvolvimento Islâmico Brasileiro (NDIB), a organização mais combativa do novo islã negro. O vice-presidente faz formação no Paquistão desde o ano passado. Pequeno, o NDIB tem apenas oito integrantes, entre eles Sharif e Leandro. Mas foi capaz de promover, no fim de 2007, um encontro entre o americano Fred Hampton Jr., o rapper Mano Brown e lideranças do movimento negro e de jovens muçulmanos, em São Paulo. Fred Hampton Jr. é o filho do líder dos Panteras Negras – organização criada nos anos 60, nos Estados Unidos, que defendia teses como o pagamento de compensação aos negros pela escravidão e o armamento daqueles que se sentissem ameaçados pela força policial.
Ativista como o pai, Hampton Jr. passou quase nove anos preso e fundou na cadeia o Prisoners of Conscience Committee (POCC), em português Comitê dos Prisioneiros de Consciência. Nem o POCC nem Hampton Jr. se apresentam como muçulmanos. Mas a organização tem islâmicos na coordenação, com quem o NDIB mantém boas relações. O POCC defende que todos os detentos são prisioneiros políticos, porque a desigualdade racial não lhes deu escolha. As prisões seriam, para eles, um dos passos do extermínio planejado da população negra.
Numa parceria com o Conselho Nacional de Negros e Negras Cristãos, o NDIB levou Hampton Jr. a um encontro com a comunidade afro-brasileira em Salvador, na Bahia. Suas teses têm pontos de conexão com a campanha “Reaja ou será morto, reaja ou será morta”, concebida por organizações sociais baianas, que denuncia aquilo que consideram ser o “genocídio da juventude negra brasileira pela violência do aparato repressivo do Estado” e prega “a defesa por todos os meios necessários”.
Hampton Jr., que também conheceu os morros do Rio de Janeiro, anunciou uma conexão entre o Brasil e os Estados Unidos. “O manifesto antiterrorista não deve observar nenhuma fronteira colonial. Precisamos combater todas as formas de terrorismo que nos são impostas: o crack, a falta de políticas públicas, a aids e o ataque policial. O povo negro é a vítima preferencial”, diz. Em Salvador, ele concluiu com uma analogia: “Para nós, do POCC, cada dia é como se fosse 11 de setembro. O que os brancos sofreram com o ataque terrorista, nós, negros, sofremos todo dia”. Em São Paulo, Hampton Jr. e Mano Brown cerraram os punhos. E foram aclamados.
O principal articulador da vinda de Hampton Jr. foi Sharif, que mantém contatos com muçulmanos dos guetos da França, do Canadá e dos Estados Unidos. Rapper, ele trabalha com a educação de crianças e faz parte do movimento de literatura periférica. Aos 25 anos, tem um texto contundente, com forte denúncia da desigualdade racial. Descendente de africanos e italianos, tem olhos verdes e pele clara, mas não tem dúvidas de que é negro. “Dizem que não existe raça e somos todos brasileiros, mas qual é a cor que predomina nas cadeias, na Febem e nas favelas? Negros”, afirma. “Não queremos vingança, só nosso lugar numa sociedade que ajudamos a construir. O islã não tem cor, é para todos. Mas somos negros numa sociedade racista. Então temos problemas à parte para resolver e nos posicionamos.”
Os ativistas do NDIB acreditam que o islamismo pode ser uma alternativa à conversão evangélica, maciça nas prisões brasileiras. Para seu projeto político-religioso, entrar nas cadeias é estratégico, e o POCC, de Hampton Jr., é um parceiro importante. “Os presos têm virado crentes por falta de opção, porque a última escolha do presidiário é virar evangélico”, afirma Leandro. “O islã é construção de conhecimento. Queremos trabalhar levando essa consciência, construindo a história de cada um e mostrando que, independentemente do crime que cometeram, eles são presos políticos”, diz Sharif.
Em 2009, o núcleo islâmico quer iniciar a construção de Nova Medina, uma comunidade muçulmana capaz de acolher os convertidos de vários pontos da periferia paulista. “Hoje estamos espalhados, e isso dificulta a organização”, diz Malik. “Sonhamos com um bairro muçulmano onde não existam bares com bebidas alcoólicas nas esquinas, os açougues não vendam carne de porco, nossas crianças possam estudar em escolas islâmicas e nossas mulheres não sejam chamadas de mulher-bomba.” Para isso, pensam em adquirir um pedaço de terra e fazer um loteamento. Alguns já se mudaram para a periferia de Francisco Morato, um dos municípios mais pobres da Grande São Paulo. Medina, até agora o nome mais provável, está na origem do islamismo: é a cidade da Arábia Saudita para onde o profeta Maomé migrou para escapar das perseguições que sofria em Meca. A migração marca o início do calendário islâmico.
Eles planejam converter os presos e construir uma comunidade muçulmana na periferia paulista
Diante de expressões de incredulidade, eles dão um sorriso malicioso: “Se, há dez anos, eu dissesse a você que um negro seria o presidente dos Estados Unidos, você acreditaria?”. Ou, como diz Valter Gomes: “Eu vi Martin Luther King morrer. E posso dizer que é uma revolução muito rápida. Um torneiro mecânico é presidente do Brasil, um índio é presidente da Bolívia e um negão com nome muçulmano é presidente do país mais poderoso do mundo. Ou é o fim do mundo ou é o começo de alguma coisa…”.
No islã dos manos, o rap é o instrumento e a linguagem de divulgação da religião. “Muita gente ainda vai vir para o islã pelo rap. Nós ganhamos consciência pelo hip-hop, então não podemos negar nossa história. As pessoas na periferia veem aquela negrada fazendo rima e poesia, percebem sua atitude diferenciada, sua postura na vida, e querem se aproximar. Isso é o começo da reversão”, diz Honerê. “É um passo depois do outro.”
Com uma takiah verde-amarela na cabeça – símbolo de sua condição de muçulmano brasileiro que não aceita mudar de nome –, Valter Gomes entrega tudo nas mãos de Alá. Tem os olhos úmidos quando afirma: “Alá diz no Alcorão que para cada povo há um profeta que fala a sua língua. Então, quem sabe não aparece um negrinho cheio de ginga e de rima na periferia?”.
A mesquita dos negros
No centro de São Paulo, uma África islâmica
VELHA-GUARDA
Seu Malma é um dos pioneiros do islã afro-brasileiro
A Mesquita Bilal Al Habashi é um daqueles lugares que fazem de São Paulo uma cidade fascinante, apesar do trânsito e da poluição. No 9o andar do Edifício Esther, exemplar modernista do centro, estudado nas escolas de arquitetura, a mesquita acolhe imigrantes da África e brasileiros de origem africana para as cinco orações do dia. Instalada no apartamento que foi do pintor Di Cavalcanti, ela evoca uma intrigante algaravia: inglês, francês, português e dialetos tribais. As vozes só silenciam para ouvir o xeque recitar o Alcorão – em árabe. Enquanto os muçulmanos rezam, o edifício repete uma rotina caleidoscópica. Na cobertura, vive o padeiro com sotaque francês Olivier Anquier. No subsolo, um cabaré exercita outras línguas. No histórico Edifício Esther, a Bilal al Habashi tem essa sina. Cultiva o espírito, espremida entre o pão e a carne.Inaugurada em 2005, a mesquita tem um nome simbólico. Bilal foi um escravo abissínio torturado pelo dono para renunciar à religião. Resistiu e tornou-se o primeiro muezim do islã, encarregado de chamar os fiéis para as orações. Bilal era também o nome de um dos líderes da revolta dos malês. Assim, é um símbolo de resistência tanto para africanos no Brasil como para brasileiros com raízes na África.
O presidente da mesquita é também uma instituição. Muhammad Ali, como o famoso boxeador, foi um dos primeiros muçulmanos sem ascendência árabe em São Paulo. Aos 17 anos, chamava-se Jair Maceió quando ouviu pela primeira vez o nome do islã junto ao Viaduto do Chá, ponto de encontro dos negros paulistanos. Jair vivia a orfandade com os pais vivos. Sem recursos para criá-lo, eles entregaram-no ao Estado. O sobrenome, Maceió, como é comum entre descendentes de escravos, indicava a terra onde o avô fora cativo. Desenraizado, a luta pelos direitos civis dos negros americanos, nos anos 60, retumbou dentro dele. Quando o boxeador Muhammad Ali se recusou a lutar no Vietnã, dizendo que aquela não era uma guerra dele, Jair acreditou ter agarrado a ponta de uma raiz comum. Parou de dançar, seu “único vício”, e tornou-se Muhammad Ali Numairi. Com esse nome, fundou a Mesquita Muçulmana Afro-Brasileira, em 1974, ao lado de Joel Azor da Silva e Abdullah Menelik Omar. O objetivo “era arrumar a sociedade negra e impedir a dissolução da família afro-brasileira pela bebida e pela droga”.
Aos 58 anos, Seu Malma, como é conhecido, diz que o islã é para todos. Sua mesquita virou bússola para os perdidos africanos, a maioria clandestinos no Brasil. Eles dividem o espaço com “o pessoal do rap”, que tem dado dor de cabeça a Seu Malma. “Música é proibido no islã. E gueto só serve à classe dominante, que quer mantê-los lá”, diz. “Mas eles acham que o rap é importante para divulgar o islã na periferia e que eu sou da velha-guarda.” Com a “jovem guarda do islã”, Seu Malma compartilha a utopia: “Quero fazer do Brasil um país muçulmano”.
Muhammad foi ao cinema e se converteu
Hoje, ele prepara “a base de um levante cultural”, com migrantes nordestinos e gaúchos sem-terra, em Passo Fundo
Nivaldo Florentino de Lucena recebeu a dica de um amigo: “Tem um filme com a história de um negão que é da hora!”. O “negão” era Malcolm X. O filme era a biografia do ativista americano, dirigida por Spike Lee. Numa sessão lotada de rappers, Nivaldo, da Zona Leste de São Paulo, concluiu que o negão era da hora mesmo. Filho de uma mãe que, no censo do IBGE, se declarava “branca” e de um pai que se anunciava “pardo”, ele pertencia à geração que tinha certeza de que eram todos “negros”. Saiu do cinema decidido a encontrar uma mesquita. Era 1992. Muhammad trocou a bebida, as drogas e os pequenos crimes pelo Alcorão. Anos mais tarde, se formou em teologia islâmica na Líbia. Em 2002, desembarcou na gaúcha Passo Fundo, cidade de colonização europeia, onde loiras naturais são tão corriqueiras como o chimarrão. Tinha duas metas sob a takiah muçulmana: assumir um posto numa multinacional de frangos halal (abatidos segundo a prescrição islâmica) e divulgar o islã.
Quando Muhammad Lucena chegou, havia três famílias muçulmanas de origem árabe. Hoje, ele conta mais de 40, a maioria composta de trabalhadores da empresa. Muhammad se tornou o imã, líder religioso, de uma comunidade com um perfil inédito: migrantes nordestinos que chegaram ao sul como mascates e gaúchos que trocaram a zona rural pela periferia da cidade. No caso de Passo Fundo, o islã disputa, no campo religioso, com a Igreja Católica e com as neopentecostais evangélicas. No campo político, com o MST. “Sempre fui peão e, como negro, fui vítima de muito preconceito aqui no Rio Grande”, diz Valdivino Bueno da Silva. “Tinha intenção de virar sem-terra, como o meu irmão, mas acabei ficando por aqui e me convertendo.” Em 2005, aos 24 anos, ele conseguiu vencer o alcoolismo e virou Abdallah.
Tornou-se “irmão” no islã de João Paulo Silva, que deixou o sertão do Ceará para vender artigos de cama e mesa pelas ruas de Passo Fundo. “Gaúcho chama todos os nordestinos de baiano”, diz. “Era uma vida sofrida.” Aos 20 anos, mudou de sina, adotou o nome de Jaber e virou um obstinado divulgador do islã. Converteu a mulher, irmã de um pastor da cidade. E também os sogros, que abandonaram a crença evangélica e vieram do interior do Paraná para ficar perto da comunidade islâmica de Passo Fundo, em franca expansão. Ela já tem um cemitério e o terreno da futura mesquita, doado pelo governo do Kuwait.
Muhammad, de 33 anos, casado com uma branca e pai de cinco filhos, defende um islã para todas as cores e raças. Na Líbia, conheceu Louis Farrakhan, mas não simpatiza com as “ideias radicais” do líder da Nação do Islã. Ele crê, porém, que o Brasil vive “uma nova revolução islâmica”. “Há focos do islã borbulhando em toda parte. Existem hoje brasileiros estudando na África, na Ásia e no Brasil para fazer a inserção de muçulmanos em órgãos-chave”, diz. “Já temos a base pronta, com os mais pobres. Só nos falta um líder para ter um levante. Não armado, mas cultural.”
Por trás do véu, um novo perfil de mulher islâmica
Chamadas de “mulher-bomba” nos ônibus metropolitanos, elas começam a alterar o cenário urbano
CAMINHOS DO ISLÃ
Brasileiras sem ascendência árabe, Latifa, Samira e Andréia vivem na comunidade muçulmana da gaúcha Passo Fundo… e Luana, Elisângela e Dona Ilma, que cruzam o Viaduto Santa Ifigênia, no centro da capital paulista, são militantes da religião na Grande São Paulo
Ela é “Dona” Ilma. E tão dona que o dela merece maiúscula e já se integrou ao nome. Não por acaso, é a que lidera a fila na foto. Como ela mesma diz, abriu seu espaço com “punhos e conhecimento”. Ilma Maria Vieira Kanauna é uma das pioneiras no movimento islâmico afro-brasileiro, em São Paulo. Aos 53 anos, convertida há mais de duas décadas, é tratada com um temor respeitoso, porque Dona Ilma é mulher braba. Nada mais distante dela que o estereótipo da mulher árabe submissa, sempre dentro de casa, que resiste no imaginário ocidental como a realidade única da mulher no islã. Sua cartilha é a das malês, mulheres ativas no levante escravo de 1835. “A América foi edificada sobre os ombros dos homens negros e o ventre das mulheres negras”, diz com solenidade. “E o islã é o espelho em que eu me vi refletida.”
Dona Ilma é filha de uma “tradicional família negra”, de origem matriarcal. Até os 6 anos, se criou numa área de quilombo, em Minas Gerais. Lembra a avó e a mãe sempre vestidas de preto, rezando com a janela aberta e mandando nos homens e no curso da vida. Quando a mãe morreu de parto, o pai se mudou, e ela ainda hoje diverte-se com a memória dos primeiros brancos que surgiram no seu campo de visão. “Eu e meu irmão achávamos que eram lobisomens”, diz. “Nos chamavam pra brincar, e a gente se escondia achando que iam nos comer.”
Algumas aventuras mais tarde, porque a vida de Dona Ilma dá mesmo um romance, acabou filha adotiva de uma família de descendentes de alemães, com quem ainda hoje vive e se entende bem. Primeiro tornou-se comunista, depois muçulmana. É educadora por vocação e, por convicção, só trabalha em escolas de periferia. Compara o 11 de setembro a “uma mulher que passa a vida apanhando e um dia dá 11 tiros no marido”. E acredita que a violência no Brasil, da qual já foi vítima, é a forma de as minorias sem identidade e futuro pedirem socorro. “Nossas crianças estão perdidas, escrevendo Joaquim com ‘n’ e não se reconhecendo em espelho algum”, diz.
A testa lisa de Dona Ilma só é contraída por uma ruga quando fala sobre a nova geração de muçulmanos. “O islã sempre trouxe cidadania para as minorias. E as periferias são as senzalas de hoje. Mas as novas gerações têm muito punho ainda, tenho medo que acabem sendo segregacionistas”, afirma. “Não precisamos mais de um discurso de raça, precisamos de cidadania. Acredito, porém, que é um ritual de passagem. Quando me converti, também era muito radical. Vamos deixar eles gritarem um pouco.”
Na foto, ela é seguida por Elisângela Résio, de 31 anos, e Luana de Assis, de 28. Há quatro, Luana trocou a vida de “balada de segunda a segunda” e um figurino hip-hop para se tornar muçulmana. Elisângela se converteu em maio, no dia em que casou com o rapper Leandro Arruda, que conheceu num show dos Racionais MC’s. Até pouco tempo, um início de romance inusitado para uma muçulmana. “O que você acha de Jesus?”, ele perguntou. Tudo começou a dar certo quando ela disse que Jesus era um profeta – e não o filho de Deus.
Como qualquer trabalhadora, elas pegam ônibus e trens lotados de segunda a sexta- -feira, da Grande São Paulo para a capital, e vice-versa. Nas ruas, já se habituaram a ser chamadas de “mulher-bomba” ou “prima do Bin Laden”. “O povo não está acostumado a ver muçulmanas sacolejando em ônibus e trens como qualquer mulher que precisa trabalhar”, diz Luana. “Confundem religião com cultura, acham que todo muçulmano é árabe e toda muçulmana só fica em casa.”
Fiel às rimas de sua geração, Elisângela dá um conteúdo político próprio à indumentária islâmica. “A mídia impõe que brasileira tem de andar de minissaia ou shortinho, meio pelada. É a imposição de um estereótipo que as mulheres seguem desde criança sem nem se dar conta”, diz. “Por que minha roupa de muçulmana chama a atenção dentro do trem e a menina seminua não?” A própria Elisângela responde: “ Porque estou fora dos padrões que a mídia impõe, tenho identidade própria, fiz minha escolha”.
Elisângela afirma que conseguiu até parar de fumar. Só demorou a aceitar que o marido possa ter outras mulheres – “direito” pouco exercido no Brasil, que pune a bigamia no Código Penal. Depois de embates internos, ela capitulou. “É um direito dele. Quem sou eu para discordar do Alcorão? ”, diz. “Prefiro que tenha uma segunda mulher do que me traia. O homem tem necessidades.”
Essa mesma mulher traz na cabeceira O capital, de Karl Marx, e diz admirar Che Guevara com fervor revolucionário.
Jan 30, 2009
Notas para uma reflexão sobre a inserção internacional do Brasil e da América do Sul na segunda década do século XXI
Postado por Attman e Kamadon
José Luis Fiori *
1. Brasil e América do Sul: história e conjuntura
i. As guerras e disputas políticas e territoriais, durante a formação dos estados sul-americanos, no século XIX, não produziram as mesmas consequências sistêmicas - políticas e econômicas - das guerras de centralização do poder e de formação dos estados e das economias nacionais européias. E mesmo no século XX, não se consolidou no continente sul-americano, um sistema integrado e competitivo, de estados e economias nacionais, como ocorreu na Ásia, depois da sua descolonização. Por isto, nunca existiu na América do Sul uma disputa hegemônica, entre os seus próprios estados e economias nacionais, e nenhum dos seus estados jamais disputou a hegemonia continental com as grandes potências. De fato, desde sua independência, o continente sul-americano viveu sob a tutela anglo-saxônica: primeiro, da Grã Bretanha, até o fim do século XIX, e depois, dos Estados Unidos, até o início do século XXI. Como consequência, os estados latino-americanos nunca ocuparam posição importante nas grandes disputas geopolíticas do sistema mundial, e funcionaram durante todo o século XIX, como zona de experimentação do "imperialismo de livre comércio" da Grã Bretanha. No século XX, e em particular depois da 2ª. Guerra Mundial, quase todos estados sul-americanos alinharam sua política externa, com os Estados Unidos, durante a Guerra Fria, e aderiram com graus diferentes de sucesso, às políticas econômicas desenvolvimentistas, apoiada pelos Estados Unidos, até a década de 1970. Depois do fim da Guerra Fria, durante a década de 1990, de novo, a maioria dos governos da região voltaram a se alinhar ao lado da política externa e da política econômica preconizada pelos EUA e seu projeto de "globalização liberal".
ii. No início do século XXI, entretanto, a situação política do continente mudou, com a vitória -em quase todos os países da América do Sul- de partidos e coalizões políticas nacionalistas, desenvolvimentistas e socialistas, que mudaram o rumo político-ideológico do continente, durante a primeira década do século. No início do período, quase todos os novos governos de esquerda mantiveram a política macroeconômica ortodoxa dos neoliberais da década de 90, e só aos poucos foram mudando, em alguns casos, o rumo mais amplo de sua política econômica, sem conseguir alterar a estrutura e o modelo tradicional de inserção internacional da economia continental. Assim mesmo, todos estes novos governos se posicionaram ideologicamente contra o neoliberalismo da década anterior, e mudaram sua política externa, apoiando a integração político-econômica da América do Sul, e criticando intervencionismo norte-americano no continente. Este giro político à esquerda ocorreu de forma simultânea, em quase todo o continente, e coincidiu com a mudança do governo e da política externa americana, com a nova administração republicana de George Bush, que engavetou, na prática, o globalismo econômico liberal, da Administração Clinton, e o seu projeto da ALCA, para as Américas. Este giro à esquerda coincidiu também com um novo ciclo de expansão da economia mundial, que se prolongou até 2008, e permitiu a retomada do crescimento, alto e generalizado, de todas as economias nacionais da região. A grande novidade foi a participação da China, que se transformou na grande compradora das exportações sul-americanas de minérios, energia e grãos. Neste período também, os altos preços das commodities fortaleceram a capacidade fiscal dos estados e ajudaram a financiar várias iniciativas do projeto de integração da infra-estrutura energética e de transportes do continente. Além disto, permitiram a acumulação de reservas e a diminuição da fragilidade externa do continente, aumentando o poder de resistência e negociação da região.
iii. Durante esta primeira década do século, destacou-se dentro do continente, a rápida mudança da posição política e econômica do Brasil, que retomou -aos poucos e de forma ainda irregular- a trilha do crescimento e aumentou sua participação no produto e no comercio dentro e fora da América do Sul. Ao mesmo tempo, o Brasil assumiu a liderança do processo de integração do continente e expandiu suas relações comerciais e financeiras com outras regiões do mundo, projetando sua presença diplomática em várias instancias e fóruns multinacionais de negociação, dentro e fora das Nações Unidas. E hoje o Brasil já tem praticamente assegurada, até o fim da próxima década, uma posição entre as cinco maiores economias do mundo, quando deverá ser provavelmente, o maior produtor mundial de alimentos, e um dos maiores produtores e exportadores mundiais de petróleo, além de seguir controlando a maior parte dos recursos hídricos e da biodiversidade da Amazônia. Neste movimento duplo, em direção à América do Sul e aos demais continentes, e zonas de expansão e conflito internacional, o Brasil tem se apoiado, aliado e competido, a um só tempo, com outros estados e economias nacionais que também estão se expandindo rapidamente e reivindicando uma maior participação nas decisões do núcleo central de poder do sistema mundial, entre as quais se destacam, sobretudo, a China e a Índia.
iv. Agora bem, depois de quase uma década convergente, a crise financeira de 2008 provocou uma queda abrupta do crescimento regional e uma desaceleração do projeto integração econômica do continente sul-americano. E quase ao mesmo tempo, ainda na Administração George Bush, os Estados Unidos abandonaram sua passividade no continente, e decidiram reativar sua IV º Frota Naval responsável pelo controle marítimo do Atlântico Sul. E logo em seguida, já na administração democrata do presidente Barak Obama, os Estados Unidos assinaram o acordo militar com a Colômbia que lhe deu acesso a sete bases militares dentro do território colombiano, e com isto fragilizou o processo de integração política, e os planos de defesa conjunta e autônoma do continente. Logo em seguida, os EUA tiveram uma participação ativa na crise política de Honduras, e unilateral no terremoto que destruiu o Haiti, demonstrando vontade e decisão de retomar ou reafirmar sua presença e sua supremacia dentro do "hemisfério ocidental". Por outro lado, no início de 2010, o Chile interrompeu a sucessão de vitórias eleitorais da esquerda, e elegeu um presidente de centro-direita, que reforçará a aliança estratégica com os Estados Unidos do "eixo antibolivariano", na Região Andina. E com isto, deverá aumentar as divisões que sempre facilitaram - através da história - a tutela externa do continente. De qualquer maneira, a configuração completa deste novo cenário político ainda dependerá das eleições presidenciais no Brasil e Colômbia, em 2010, e na Argentina e Peru, em 2011.
v. Neste momento de incerteza política, uma discussão sobre a inserção do Brasil e da América do Sul, no cenário internacional, na segunda década do século XXI, tem que partir de uma definição do que seja uma "inserção soberana". Com relação ao que seja uma política externa soberana, nosso ponto de partida é muito simples: um estado e um governo que se proponham expandir o seu poder internacional, inevitavelmente terão que questionar e lutar contra a distribuição prévia do poder, dentro do próprio sistema. Como condição preliminar, eles terão que ter sua própria teoria e sua própria leitura dos fatos, dos conflitos, e das assimetrias e disputas globais, e de cada um dos "tabuleiros" geopolíticos regionais ao redor do mundo. Para poder estabelecer de forma sustentada e autônoma, os seus próprios objetivos estratégicos, diferentes das potencias dominantes, e conseqüentes com sua intenção de mudar a distribuição do poder e da hierarquia mundial. Por isto, não é possível conceber uma política externa soberana e inovadora, que não questione e enfrente os consensos éticos e estratégicos das potencias que controlam o núcleo central do poder mundial. Neste campo, não estão excluídas as convergências e as alianças táticas, e temporárias, com uma ou várias das antigas potencias dominantes. Mas toda política externa soberana e inovadora, sabe que está e estará em permanente competição com estas potencias, e que terá que assumir as suas divergências, com a visão de mundo, com os diagnósticos e com as estratégias defendidas por elas, seja no espaço regional, seja a escala global. Isto não é uma veleidade irrelevante, nem é o fruto de uma animosidade ideológica, é uma conseqüência de uma "lei" essencial do sistema interestatal, e de uma determinação que é em grande medida geográfica, porque o objetivo do "estado questionador" é ampliar sempre e cada vez mais, a sua capacidade de decisão e iniciativa estratégica autônoma, no campo político, econômico e militar, para poder difundir melhor e aumentar a eficácia de suas idéias e propostas de mudança do sistema mundial.
vi. Do lado oposto, fica mais fácil de definir e identificar as características essenciais de uma política externa conservadora ou subalterna. Em primeiro lugar, os conservadores não se propõem mudar a distribuição do poder internacional, nem questionam a hierarquia do sistema mundial. Sua reação frente aos desafios colocados pela agenda internacional, é quase sempre empírica, isolada, e moralista. Os conservadores não têm uma teoria nem uma visão histórica própria do sistema internacional e dos seus acontecimentos conjunturais, e são partidários, em geral, de uma política externa de baixo teor, sem grandes iniciativas estratégicas nacionais, e com uma alta taxa de submissão aos valores, juízos, e decisões estratégicas das potencias dominantes. Por isto, consciente ou inconscientemente, os conservadores delegam a terceiros, uma parte da soberania decisória de sua política externa, e acabam assumindo, invariavelmente, uma posição subalterna dentro da política internacional.
2. Um balanço, no final da primeira década do século XXI
Ao terminar a primeira década do século XXI, entre crise e guerras, é possível fazer um balanço preliminar da estratégia imperial americana, que nasceu da crise dos 70 e se aprofundou depois do fim da Guerra Fria:
i. O poder militar americano cresceu de forma contínua e se projetou sobre todo o mundo, mas a própria dinâmica contraditória da sua expansão, fortaleceu politicamente e "ressuscitou" militarmente, a Alemanha, a Rússia e o Japão, e contribuiu para o fortalecimento da China, Índia, Irã, Turquia, Brasil, países que disputam zonas de influência com os EUA, e participam da "corrida imperialista" que se explicitou nesta primeira década, e que deve se intensificar nos próximos anos. Os revezes políticos e militares dos EUA, na primeira década do século XXI desaceleraram o projeto imperial americano, mas ele não foi abandonado. Mas apesar disto, estes revezes criaram novas fraturas e divisões dentro dos EUA. E depois da Guerra do Iraque, está em curso um realinhamento interno de forças e posições, como ocorreu também na década de 70, e não é improvável que surja daí uma nova estratégia internacional. Mas estes processos de realinhamento interno do establishment americano costumam ser lentos, e os seus resultados finais dependerão ainda da própria luta interna e da evolução dos conflitos dos EUA com os seus principais concorrentes nas várias regiões do mundo. Porque apesar dos seus revezes recentes, e de suas dificuldades econômicas, os EUA seguem sendo o único player global, que está presente e disputa posições em cada uma, e em todas as regiões do mundo. De qualquer forma, do nosso ponto de vista, não há possibilidade que os EUA abdiquem do seu poder, ou renunciem a expandi-lo permanentemente. Pelo contrário, deverão seguir aumentando sua capacidade militar em escala geométrica, numa velocidade que aumentará na medida em que se aproxime a sua ultrapassagem econômica pela China. Qualquer mudança mais substantiva, nesta correlação de forças, só ocorrerá com o aumento da capacidade e do poder regional e global das novas potências que estão se projetando neste início do século XXI.
ii. Por outro lado, do ponto de vista econômico, também se pode dizer que a resposta americana à crise de Bretton Woods acabou se transformando numa estratégia, que levou à recuperação e à expansão contínua da economia americana, cada vez mais associada ao crescimento da economia chinesa, sobretudo a partir de 1990. Este novo eixo dinâmico da economia mundial, por sua vez, provocou uma mudança estrutural da economia mundial, com o deslocamento para a Ásia, do seu principal centro de produção e acumulação de capital, e com o surgimento de uma economia nacional - a chinesa - com um poder gravitacional, sobre o conjunto da economia capitalista, equivalente ao dos Estados Unidos. Esta nova configuração estrutural, e sua expansão contínua, explica o aumento da "pressão competitiva", dentro da economia mundial, na primeira década do século XXI.
iii. Por isto, do nosso ponto de vista, esta pressão econômica, somada à competição geopolítica, e à corrida imperialista que está em curso, são manifestações essenciais, e são ao mesmo tempo o anuncio de que o "sistema interestatal capitalista" está atravessando uma grande "explosão expansiva". Nestes momentos, é impossível prever com precisão o futuro. O o único que se pode dizer, é que são transformações seculares dentro de um mesmo universo, que seguirá se expandindo, enquanto for constituído e liderado por "Estados-economias nacionais" capitalistas, complementares e competitivas.
iv. Assim mesmo, no horizonte de curto prazo, entretanto, o "núcleo duro" da competição geopolítica mundial deverá estar composto velos Estados Unidos, China e Rússia. Três "estados continentais", que detém um quarto da superfície da terra, e mais de um terço da população mundial. Nesta nova "geopolítica das nações", a União Européia terá um papel secundário, ao lado dos Estados Unidos, enquanto não dispuser de um poder unificado, com capacidade de iniciativa estratégica autônoma. E a Índia, Irã, Brasil, Turquia, África do Sul, e talvez a Indonésia, deverão aumentar o seu poder regional, em escalas diferentes, mas não serão poderes globais, ainda por muito tempo. Na segunda década do século XXI, a nova "corrida imperialista" provocará um aumento dos conflitos localizados, entre os principais estados e economias do sistema, mas ainda não está no horizonte uma nova "guerra hegemônica". Por outro lado, do ponto de vista econômico, as novas crises financeiras que seguirão não deverão interromper o processo em curso de deslocamento do centro da acumulação capitalista, para a Ásia, e para algumas outras economias nacionais, dispersas pelo mundo, entre as quais, o Brasil e a Rússia, e em menor escala, a África do Sul, a Turquia, a Indonésia e o próprio Irã. Ou seja, no médio prazo, deverá ocorrer uma convergência assintótica, envolvendo numa mesma competição geopolítica e econômica, quase os mesmos estados e economias que deverão alcançar as primeiras posições na hierarquia internacional do poder e da riqueza mundial, ao lado dos Estados Unidos e da velha Europa.
v. Por último, para avaliar a importância das próximas crises financeiras e políticas que deverão se manifestar e ocorrer na próxima década, é importante compreender que: em primeiro lugar, quase todas as grandes crises do sistema mundial foram provocadas até hoje, pela própria potência hegemônica; em segundo lugar, que estas crises são provocadas quase sempre, pela expansão vitoriosa ( e não pelo declínio) das potencias capazes de atropelar as regras e instituições que eles mesmos criaram, num momento anterior, e que depois se transformam num obstáculo no caminho da sua própria expansão; e em terceiro lugar, que o sucesso econômico e a expansão da potencia líder é sempre uma força e um impulso fundamental para o fortalecimento de todos os demais estados e economias que se proponham concorrer ou "substituir" a potencia hegemônica. Mas o que é mais esdrúxulo é que, as crises provocadas pela "exuberância expansiva" da potencia líder, quase sempre afetam, de forma mais perversa e destrutiva, aos "concorrentes" mais do que ao próprio líder ou hegemon, que costuma se recuperar de forma mais rápida e poderosa do que os demais.
Seja como for, é dentro deste contexto geopolítico e econômico, que se pode e deve pensar as alternativas de mais longo prazo, de inserção internacional soberana da América do Sul e do Brasil, na segunda década do Século XXI.
3. Brasil: possibilidades e escolhas
i. Brasil é - hoje - o segundo player mais importante, dentro do tabuleiro geopolítico da América do Sul ,e já tem tido uma importância maior nos desdobramentos político-ideológicos da América Central e do Caribe. Depois de assumir a liderança militar da missão de paz das Nações Unidas no Haiti, o Brasil tomou uma posição decidida a favor da reintegração de Cuba na comunidade americana e tem defendido, em todos os foros internacionais, o fim do bloqueio econômico norteamericano a Cuba. Ao mesmo tempo, tem assumido sua influencia político-ideológica sobre alguns novos governos de esquerda da América Central, e tomou uma posição rápida e dura frente ao golpe de estado militar de Honduras, em junho de 2009, e frente à crise provocada pelo terremoto do Haiti, no início de 2010. Mas, apesar do seu maior ativismo diplomático, o Brasil ainda não tem capacidade de projetar seu poder afirmativo ou de veto, à região centro-americana, nem tem nenhuma disposição de competir ou questionar o poder americano no seu "mar interior caribenho". Mais ao sul, entretanto, o Brasil tem exercido uma política cada vez mais ativa, mesmo quando conviva com uma desaceleração temporária do processo de integração econômica do continente.. Com a criação da UNASUAL, e do Conselho Sulamericano de Defesa, o Brasil se distanciou e esvaziou o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e a Junta Interamericana de Defesa que sempre contaram com o aval norte-americano. Além disto, nestes últimos dois anos, o Brasil teve uma participação ativa e pacificadora, nos conflitos entre Equador e Colômbia e entre Colômbia e Venezuela, no conflito interno da Bolívia, quando se transformou numa ameaça de guerra civil e de secessão territorial.
ii. De qualquer forma, uma coisa é certa: o futuro do projeto sul-americano dependerá cada vez mais das escolhas brasileiras, e da forma que o Brasil desenvolva suas relações com os Estados Unidos. Do ponto de vista econômico, a pressão dos mercados internacionais e as novas descobertas do petróleo da camada do pré-sal, também estão oferecendo para o Brasil a possibilidade de se transformar numa economia exportadora de alta intensidade, uma espécie de "periferia de luxo" dos grandes potencias compradoras do mundo, como foram no seu devido tempo, a Austrália e a Argentina, entre outros. Mas existe a possibilidade do Brasil escolher outro caminho que combine seu potencial exportador, como uma estrutura produtiva industrial associada e liderada por uma economia mais dinâmica, como é o caso contemporâneo do Canadá, por exemplo. Além disto, neste momento, o Brasil também dispõe de uma terceira alternativa, absolutamente nova para o país, e que aponta de certa maneira, para a reprodução da estrutura produtiva da economia norte-americana: com uma indústria de alto valor agregado, e uma enorme capacidade de produção e exportação de alimentos e outras commodities de alta produtividade, incluindo o petróleo, no caso brasileiro. Por outro lado, no campo político, depois da hegemonia das idéias neoliberais e privatistas, e de uma coalizão de poder partidária do "cosmopolitisimo subserviente", no campo internacional, está se consolidando no Brasil um novo consenso desenvolvimentista, democrático e popular que transcende cada vez mais as siglas partidárias. As perspectivas futuras desta nova coalizão, entretanto, dependerão da estratégia internacional dos próximos governos brasileiros. O Brasil pode se transformar num "aliado estratégico" dos Estados Unidos, da Grã Bretanha e da França, com direito de acesso a uma parte de sua tecnologia de ponta, como no caso do Japão ou mesmo de Israel, que construiu seu arsenal atômico com a ajuda da França. Mas o Brasil também pode escolher um caminho próprio de afirmação internacional. Mas, se o Brasil quiser mudar de posição e de estratégia, dentro das "regras" do sistema mundial, terá que desenvolver um trabalho extremamente complexo de administração contínua das relações de complementaridade e competição com os Estados Unidos, e com as outras grandes potências, a partir dos seus próprios interesses econômicos e geopolíticos. Numa disputa prolongada pela hegemonia da América do Sul, como se fosse uma "luta oriental" com os Estados Unidos. Caminhando através de uma trilha muito estreita e durante um tempo que pode se prolongar por várias décadas. Além isto, para liderar a integração sul-americana no mundo, o Brasil terá que inventar uma nova forma de expansão econômica e política continental e mundial, sem "destino manifesto" nem missão missionária, e sem o imperialismo bélico das duas grandes potências anglossaxônicas.
* Professor titular do Instituto de Economia da UFRJ
José Luis Fiori *
1. Brasil e América do Sul: história e conjuntura
i. As guerras e disputas políticas e territoriais, durante a formação dos estados sul-americanos, no século XIX, não produziram as mesmas consequências sistêmicas - políticas e econômicas - das guerras de centralização do poder e de formação dos estados e das economias nacionais européias. E mesmo no século XX, não se consolidou no continente sul-americano, um sistema integrado e competitivo, de estados e economias nacionais, como ocorreu na Ásia, depois da sua descolonização. Por isto, nunca existiu na América do Sul uma disputa hegemônica, entre os seus próprios estados e economias nacionais, e nenhum dos seus estados jamais disputou a hegemonia continental com as grandes potências. De fato, desde sua independência, o continente sul-americano viveu sob a tutela anglo-saxônica: primeiro, da Grã Bretanha, até o fim do século XIX, e depois, dos Estados Unidos, até o início do século XXI. Como consequência, os estados latino-americanos nunca ocuparam posição importante nas grandes disputas geopolíticas do sistema mundial, e funcionaram durante todo o século XIX, como zona de experimentação do "imperialismo de livre comércio" da Grã Bretanha. No século XX, e em particular depois da 2ª. Guerra Mundial, quase todos estados sul-americanos alinharam sua política externa, com os Estados Unidos, durante a Guerra Fria, e aderiram com graus diferentes de sucesso, às políticas econômicas desenvolvimentistas, apoiada pelos Estados Unidos, até a década de 1970. Depois do fim da Guerra Fria, durante a década de 1990, de novo, a maioria dos governos da região voltaram a se alinhar ao lado da política externa e da política econômica preconizada pelos EUA e seu projeto de "globalização liberal".
ii. No início do século XXI, entretanto, a situação política do continente mudou, com a vitória -em quase todos os países da América do Sul- de partidos e coalizões políticas nacionalistas, desenvolvimentistas e socialistas, que mudaram o rumo político-ideológico do continente, durante a primeira década do século. No início do período, quase todos os novos governos de esquerda mantiveram a política macroeconômica ortodoxa dos neoliberais da década de 90, e só aos poucos foram mudando, em alguns casos, o rumo mais amplo de sua política econômica, sem conseguir alterar a estrutura e o modelo tradicional de inserção internacional da economia continental. Assim mesmo, todos estes novos governos se posicionaram ideologicamente contra o neoliberalismo da década anterior, e mudaram sua política externa, apoiando a integração político-econômica da América do Sul, e criticando intervencionismo norte-americano no continente. Este giro político à esquerda ocorreu de forma simultânea, em quase todo o continente, e coincidiu com a mudança do governo e da política externa americana, com a nova administração republicana de George Bush, que engavetou, na prática, o globalismo econômico liberal, da Administração Clinton, e o seu projeto da ALCA, para as Américas. Este giro à esquerda coincidiu também com um novo ciclo de expansão da economia mundial, que se prolongou até 2008, e permitiu a retomada do crescimento, alto e generalizado, de todas as economias nacionais da região. A grande novidade foi a participação da China, que se transformou na grande compradora das exportações sul-americanas de minérios, energia e grãos. Neste período também, os altos preços das commodities fortaleceram a capacidade fiscal dos estados e ajudaram a financiar várias iniciativas do projeto de integração da infra-estrutura energética e de transportes do continente. Além disto, permitiram a acumulação de reservas e a diminuição da fragilidade externa do continente, aumentando o poder de resistência e negociação da região.
iii. Durante esta primeira década do século, destacou-se dentro do continente, a rápida mudança da posição política e econômica do Brasil, que retomou -aos poucos e de forma ainda irregular- a trilha do crescimento e aumentou sua participação no produto e no comercio dentro e fora da América do Sul. Ao mesmo tempo, o Brasil assumiu a liderança do processo de integração do continente e expandiu suas relações comerciais e financeiras com outras regiões do mundo, projetando sua presença diplomática em várias instancias e fóruns multinacionais de negociação, dentro e fora das Nações Unidas. E hoje o Brasil já tem praticamente assegurada, até o fim da próxima década, uma posição entre as cinco maiores economias do mundo, quando deverá ser provavelmente, o maior produtor mundial de alimentos, e um dos maiores produtores e exportadores mundiais de petróleo, além de seguir controlando a maior parte dos recursos hídricos e da biodiversidade da Amazônia. Neste movimento duplo, em direção à América do Sul e aos demais continentes, e zonas de expansão e conflito internacional, o Brasil tem se apoiado, aliado e competido, a um só tempo, com outros estados e economias nacionais que também estão se expandindo rapidamente e reivindicando uma maior participação nas decisões do núcleo central de poder do sistema mundial, entre as quais se destacam, sobretudo, a China e a Índia.
iv. Agora bem, depois de quase uma década convergente, a crise financeira de 2008 provocou uma queda abrupta do crescimento regional e uma desaceleração do projeto integração econômica do continente sul-americano. E quase ao mesmo tempo, ainda na Administração George Bush, os Estados Unidos abandonaram sua passividade no continente, e decidiram reativar sua IV º Frota Naval responsável pelo controle marítimo do Atlântico Sul. E logo em seguida, já na administração democrata do presidente Barak Obama, os Estados Unidos assinaram o acordo militar com a Colômbia que lhe deu acesso a sete bases militares dentro do território colombiano, e com isto fragilizou o processo de integração política, e os planos de defesa conjunta e autônoma do continente. Logo em seguida, os EUA tiveram uma participação ativa na crise política de Honduras, e unilateral no terremoto que destruiu o Haiti, demonstrando vontade e decisão de retomar ou reafirmar sua presença e sua supremacia dentro do "hemisfério ocidental". Por outro lado, no início de 2010, o Chile interrompeu a sucessão de vitórias eleitorais da esquerda, e elegeu um presidente de centro-direita, que reforçará a aliança estratégica com os Estados Unidos do "eixo antibolivariano", na Região Andina. E com isto, deverá aumentar as divisões que sempre facilitaram - através da história - a tutela externa do continente. De qualquer maneira, a configuração completa deste novo cenário político ainda dependerá das eleições presidenciais no Brasil e Colômbia, em 2010, e na Argentina e Peru, em 2011.
v. Neste momento de incerteza política, uma discussão sobre a inserção do Brasil e da América do Sul, no cenário internacional, na segunda década do século XXI, tem que partir de uma definição do que seja uma "inserção soberana". Com relação ao que seja uma política externa soberana, nosso ponto de partida é muito simples: um estado e um governo que se proponham expandir o seu poder internacional, inevitavelmente terão que questionar e lutar contra a distribuição prévia do poder, dentro do próprio sistema. Como condição preliminar, eles terão que ter sua própria teoria e sua própria leitura dos fatos, dos conflitos, e das assimetrias e disputas globais, e de cada um dos "tabuleiros" geopolíticos regionais ao redor do mundo. Para poder estabelecer de forma sustentada e autônoma, os seus próprios objetivos estratégicos, diferentes das potencias dominantes, e conseqüentes com sua intenção de mudar a distribuição do poder e da hierarquia mundial. Por isto, não é possível conceber uma política externa soberana e inovadora, que não questione e enfrente os consensos éticos e estratégicos das potencias que controlam o núcleo central do poder mundial. Neste campo, não estão excluídas as convergências e as alianças táticas, e temporárias, com uma ou várias das antigas potencias dominantes. Mas toda política externa soberana e inovadora, sabe que está e estará em permanente competição com estas potencias, e que terá que assumir as suas divergências, com a visão de mundo, com os diagnósticos e com as estratégias defendidas por elas, seja no espaço regional, seja a escala global. Isto não é uma veleidade irrelevante, nem é o fruto de uma animosidade ideológica, é uma conseqüência de uma "lei" essencial do sistema interestatal, e de uma determinação que é em grande medida geográfica, porque o objetivo do "estado questionador" é ampliar sempre e cada vez mais, a sua capacidade de decisão e iniciativa estratégica autônoma, no campo político, econômico e militar, para poder difundir melhor e aumentar a eficácia de suas idéias e propostas de mudança do sistema mundial.
vi. Do lado oposto, fica mais fácil de definir e identificar as características essenciais de uma política externa conservadora ou subalterna. Em primeiro lugar, os conservadores não se propõem mudar a distribuição do poder internacional, nem questionam a hierarquia do sistema mundial. Sua reação frente aos desafios colocados pela agenda internacional, é quase sempre empírica, isolada, e moralista. Os conservadores não têm uma teoria nem uma visão histórica própria do sistema internacional e dos seus acontecimentos conjunturais, e são partidários, em geral, de uma política externa de baixo teor, sem grandes iniciativas estratégicas nacionais, e com uma alta taxa de submissão aos valores, juízos, e decisões estratégicas das potencias dominantes. Por isto, consciente ou inconscientemente, os conservadores delegam a terceiros, uma parte da soberania decisória de sua política externa, e acabam assumindo, invariavelmente, uma posição subalterna dentro da política internacional.
2. Um balanço, no final da primeira década do século XXI
Ao terminar a primeira década do século XXI, entre crise e guerras, é possível fazer um balanço preliminar da estratégia imperial americana, que nasceu da crise dos 70 e se aprofundou depois do fim da Guerra Fria:
i. O poder militar americano cresceu de forma contínua e se projetou sobre todo o mundo, mas a própria dinâmica contraditória da sua expansão, fortaleceu politicamente e "ressuscitou" militarmente, a Alemanha, a Rússia e o Japão, e contribuiu para o fortalecimento da China, Índia, Irã, Turquia, Brasil, países que disputam zonas de influência com os EUA, e participam da "corrida imperialista" que se explicitou nesta primeira década, e que deve se intensificar nos próximos anos. Os revezes políticos e militares dos EUA, na primeira década do século XXI desaceleraram o projeto imperial americano, mas ele não foi abandonado. Mas apesar disto, estes revezes criaram novas fraturas e divisões dentro dos EUA. E depois da Guerra do Iraque, está em curso um realinhamento interno de forças e posições, como ocorreu também na década de 70, e não é improvável que surja daí uma nova estratégia internacional. Mas estes processos de realinhamento interno do establishment americano costumam ser lentos, e os seus resultados finais dependerão ainda da própria luta interna e da evolução dos conflitos dos EUA com os seus principais concorrentes nas várias regiões do mundo. Porque apesar dos seus revezes recentes, e de suas dificuldades econômicas, os EUA seguem sendo o único player global, que está presente e disputa posições em cada uma, e em todas as regiões do mundo. De qualquer forma, do nosso ponto de vista, não há possibilidade que os EUA abdiquem do seu poder, ou renunciem a expandi-lo permanentemente. Pelo contrário, deverão seguir aumentando sua capacidade militar em escala geométrica, numa velocidade que aumentará na medida em que se aproxime a sua ultrapassagem econômica pela China. Qualquer mudança mais substantiva, nesta correlação de forças, só ocorrerá com o aumento da capacidade e do poder regional e global das novas potências que estão se projetando neste início do século XXI.
ii. Por outro lado, do ponto de vista econômico, também se pode dizer que a resposta americana à crise de Bretton Woods acabou se transformando numa estratégia, que levou à recuperação e à expansão contínua da economia americana, cada vez mais associada ao crescimento da economia chinesa, sobretudo a partir de 1990. Este novo eixo dinâmico da economia mundial, por sua vez, provocou uma mudança estrutural da economia mundial, com o deslocamento para a Ásia, do seu principal centro de produção e acumulação de capital, e com o surgimento de uma economia nacional - a chinesa - com um poder gravitacional, sobre o conjunto da economia capitalista, equivalente ao dos Estados Unidos. Esta nova configuração estrutural, e sua expansão contínua, explica o aumento da "pressão competitiva", dentro da economia mundial, na primeira década do século XXI.
iii. Por isto, do nosso ponto de vista, esta pressão econômica, somada à competição geopolítica, e à corrida imperialista que está em curso, são manifestações essenciais, e são ao mesmo tempo o anuncio de que o "sistema interestatal capitalista" está atravessando uma grande "explosão expansiva". Nestes momentos, é impossível prever com precisão o futuro. O o único que se pode dizer, é que são transformações seculares dentro de um mesmo universo, que seguirá se expandindo, enquanto for constituído e liderado por "Estados-economias nacionais" capitalistas, complementares e competitivas.
iv. Assim mesmo, no horizonte de curto prazo, entretanto, o "núcleo duro" da competição geopolítica mundial deverá estar composto velos Estados Unidos, China e Rússia. Três "estados continentais", que detém um quarto da superfície da terra, e mais de um terço da população mundial. Nesta nova "geopolítica das nações", a União Européia terá um papel secundário, ao lado dos Estados Unidos, enquanto não dispuser de um poder unificado, com capacidade de iniciativa estratégica autônoma. E a Índia, Irã, Brasil, Turquia, África do Sul, e talvez a Indonésia, deverão aumentar o seu poder regional, em escalas diferentes, mas não serão poderes globais, ainda por muito tempo. Na segunda década do século XXI, a nova "corrida imperialista" provocará um aumento dos conflitos localizados, entre os principais estados e economias do sistema, mas ainda não está no horizonte uma nova "guerra hegemônica". Por outro lado, do ponto de vista econômico, as novas crises financeiras que seguirão não deverão interromper o processo em curso de deslocamento do centro da acumulação capitalista, para a Ásia, e para algumas outras economias nacionais, dispersas pelo mundo, entre as quais, o Brasil e a Rússia, e em menor escala, a África do Sul, a Turquia, a Indonésia e o próprio Irã. Ou seja, no médio prazo, deverá ocorrer uma convergência assintótica, envolvendo numa mesma competição geopolítica e econômica, quase os mesmos estados e economias que deverão alcançar as primeiras posições na hierarquia internacional do poder e da riqueza mundial, ao lado dos Estados Unidos e da velha Europa.
v. Por último, para avaliar a importância das próximas crises financeiras e políticas que deverão se manifestar e ocorrer na próxima década, é importante compreender que: em primeiro lugar, quase todas as grandes crises do sistema mundial foram provocadas até hoje, pela própria potência hegemônica; em segundo lugar, que estas crises são provocadas quase sempre, pela expansão vitoriosa ( e não pelo declínio) das potencias capazes de atropelar as regras e instituições que eles mesmos criaram, num momento anterior, e que depois se transformam num obstáculo no caminho da sua própria expansão; e em terceiro lugar, que o sucesso econômico e a expansão da potencia líder é sempre uma força e um impulso fundamental para o fortalecimento de todos os demais estados e economias que se proponham concorrer ou "substituir" a potencia hegemônica. Mas o que é mais esdrúxulo é que, as crises provocadas pela "exuberância expansiva" da potencia líder, quase sempre afetam, de forma mais perversa e destrutiva, aos "concorrentes" mais do que ao próprio líder ou hegemon, que costuma se recuperar de forma mais rápida e poderosa do que os demais.
Seja como for, é dentro deste contexto geopolítico e econômico, que se pode e deve pensar as alternativas de mais longo prazo, de inserção internacional soberana da América do Sul e do Brasil, na segunda década do Século XXI.
3. Brasil: possibilidades e escolhas
i. Brasil é - hoje - o segundo player mais importante, dentro do tabuleiro geopolítico da América do Sul ,e já tem tido uma importância maior nos desdobramentos político-ideológicos da América Central e do Caribe. Depois de assumir a liderança militar da missão de paz das Nações Unidas no Haiti, o Brasil tomou uma posição decidida a favor da reintegração de Cuba na comunidade americana e tem defendido, em todos os foros internacionais, o fim do bloqueio econômico norteamericano a Cuba. Ao mesmo tempo, tem assumido sua influencia político-ideológica sobre alguns novos governos de esquerda da América Central, e tomou uma posição rápida e dura frente ao golpe de estado militar de Honduras, em junho de 2009, e frente à crise provocada pelo terremoto do Haiti, no início de 2010. Mas, apesar do seu maior ativismo diplomático, o Brasil ainda não tem capacidade de projetar seu poder afirmativo ou de veto, à região centro-americana, nem tem nenhuma disposição de competir ou questionar o poder americano no seu "mar interior caribenho". Mais ao sul, entretanto, o Brasil tem exercido uma política cada vez mais ativa, mesmo quando conviva com uma desaceleração temporária do processo de integração econômica do continente.. Com a criação da UNASUAL, e do Conselho Sulamericano de Defesa, o Brasil se distanciou e esvaziou o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e a Junta Interamericana de Defesa que sempre contaram com o aval norte-americano. Além disto, nestes últimos dois anos, o Brasil teve uma participação ativa e pacificadora, nos conflitos entre Equador e Colômbia e entre Colômbia e Venezuela, no conflito interno da Bolívia, quando se transformou numa ameaça de guerra civil e de secessão territorial.
ii. De qualquer forma, uma coisa é certa: o futuro do projeto sul-americano dependerá cada vez mais das escolhas brasileiras, e da forma que o Brasil desenvolva suas relações com os Estados Unidos. Do ponto de vista econômico, a pressão dos mercados internacionais e as novas descobertas do petróleo da camada do pré-sal, também estão oferecendo para o Brasil a possibilidade de se transformar numa economia exportadora de alta intensidade, uma espécie de "periferia de luxo" dos grandes potencias compradoras do mundo, como foram no seu devido tempo, a Austrália e a Argentina, entre outros. Mas existe a possibilidade do Brasil escolher outro caminho que combine seu potencial exportador, como uma estrutura produtiva industrial associada e liderada por uma economia mais dinâmica, como é o caso contemporâneo do Canadá, por exemplo. Além disto, neste momento, o Brasil também dispõe de uma terceira alternativa, absolutamente nova para o país, e que aponta de certa maneira, para a reprodução da estrutura produtiva da economia norte-americana: com uma indústria de alto valor agregado, e uma enorme capacidade de produção e exportação de alimentos e outras commodities de alta produtividade, incluindo o petróleo, no caso brasileiro. Por outro lado, no campo político, depois da hegemonia das idéias neoliberais e privatistas, e de uma coalizão de poder partidária do "cosmopolitisimo subserviente", no campo internacional, está se consolidando no Brasil um novo consenso desenvolvimentista, democrático e popular que transcende cada vez mais as siglas partidárias. As perspectivas futuras desta nova coalizão, entretanto, dependerão da estratégia internacional dos próximos governos brasileiros. O Brasil pode se transformar num "aliado estratégico" dos Estados Unidos, da Grã Bretanha e da França, com direito de acesso a uma parte de sua tecnologia de ponta, como no caso do Japão ou mesmo de Israel, que construiu seu arsenal atômico com a ajuda da França. Mas o Brasil também pode escolher um caminho próprio de afirmação internacional. Mas, se o Brasil quiser mudar de posição e de estratégia, dentro das "regras" do sistema mundial, terá que desenvolver um trabalho extremamente complexo de administração contínua das relações de complementaridade e competição com os Estados Unidos, e com as outras grandes potências, a partir dos seus próprios interesses econômicos e geopolíticos. Numa disputa prolongada pela hegemonia da América do Sul, como se fosse uma "luta oriental" com os Estados Unidos. Caminhando através de uma trilha muito estreita e durante um tempo que pode se prolongar por várias décadas. Além isto, para liderar a integração sul-americana no mundo, o Brasil terá que inventar uma nova forma de expansão econômica e política continental e mundial, sem "destino manifesto" nem missão missionária, e sem o imperialismo bélico das duas grandes potências anglossaxônicas.
* Professor titular do Instituto de Economia da UFRJ
O veredicto da história confirma o programa trotskista
Postado por Attman e Kamadon
Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI)
• Em 9 de novembro de 1989, caía o Muro de Berlim. Este foi um dos fatos centrais do século 20. Este acontecimento significou o triunfo definitivo do capitalismo e o fracasso do socialismo? Têm razão os que, na esquerda, abandonaram a luta pelo socialismo e passaram a buscar humanizar o capitalismo? Ou os que falam do fracasso do modelo leninista de partido e Estado?
Para responder a essas perguntas e reafirmar o programa trotskista, Martín Hernández, dirigente da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI), escreveu o livro O veredicto da História, cuja versão em espanhol acaba de ser lançada na Argentina, com a presença do autor em palestras e debates.
Apresentamos, a seguir, artigo publicado no jornal Luta Socialista, órgão da Frente Obrero Socialista (FOS), seção argentina da LIT-QI, sobre as atividades de lançamento do livro em Rosário e Buenos Aires e uma entrevista com Martín Hernández.
No dia 30 de outubro, a FOS realizou, no Hotel Bauen de Buenos Aires, que funciona sob controle dos trabalhadores, um evento de apresentação e lançamento do livro de Martín Hernández, O veredicto da História. O evento foi aberto por Eduardo Barragán, que explicou a importância de podermos retomar o debate sobre os grandes fatos do Leste Europeu quando se completam 20 anos da queda do Muro de Berlim e 92 anos do triunfo da Revolução Russa.
Ao se completarem estes 20 anos, ressurgem as diferentes expressões dos propagandistas do imperialismo, que tentam utilizar essas grandes mobilizações de massas para sua campanha de que o socialismo morreu e da suposta superioridade do capitalismo. Claro que, no meio da crise do sistema capitalista mundial, essas afirmações têm muito menos peso que em 1989. Mas, de qualquer maneira, sempre terão a capacidade de confundir os lutadores, na medida em que, dentre os que defendem a revolução, ainda não há uma clareza total sobre o caráter e as consequências dos processos do Leste Europeu de 1989-91.
Isso reafirma a importância de trabalhos de investigação como o que tem realizado Martín Hernández. Como ele afirma, não pretende fechar a discussão, mas são primeiros passos para fazer avançar o entendimento sobre esses acontecimentos e das tarefas que eles propõem aos revolucionários.
O interesse que este tema origina se refletiu nos mais de 200 companheiros que estiveram presentes nesta palestra-debate. Muitos deles eram ex-militantes do velho MAS argentino, do Partido Comunista, da Fede. Também esteve presente uma delegação da Convergência de Esquerda, bem como jovens estudantes e operários que estão participando dos recentes processos de luta e que sentem a necessidade de compreender esses grandes fatos do passado para avançar com mais segurança para o futuro.
No dia anterior, tinha acontecido uma apresentação em Rosário, organizada pelos companheiros do Espaço Cultural La Toma. Um de seus dirigentes, o companheiro Carlos Ghioldi, abriu o evento apresentando o autor e, após a palestra, coordenou o interessante debate que se abriu entre os presentes. Participaram delegados do Sindicato dos Comerciários, da Mahle e de outras importantes fábricas da região.
A seguir, reproduzimos a entrevista com Martín Hernández, na qual o autor fala dos diferentes aspectos que desenvolve em seu livro.
Entrevista com Martín Hernández
“Se não entendemos o que ocorreu, não saberemos como seguir em frente.”
O que o impulsionou a escrever este livro?
Martín Hernández – A necessidade de dar uma resposta programática, isto é, de chegar à compreensão da situação e das tarefas que estão propostas a partir desses grandes fatos. Como diz Trotsky, no século 20, o socialismo mostrou sua razão de ser. Não nas páginas do Capital, mas no terreno do cimento e do aço, porque a Revolução Russa demonstrou que era uma ideia realizável. Mostrou que um país podia funcionar sem burguesia e, a partir daí, conseguir um desenvolvimento extraordinário. Mostrou-se que a burguesia era uma classe parasitária e que o desenvolvimento da humanidade dependia de sua destruição. Isso voltou a se mostrar após a Segunda Guerra, quando se expropria à burguesia em um terço do planeta.
Vivemos tudo isso no século 20 e, no final do mesmo, ocorreram os dois grandes acontecimentos que estamos discutindo. Por um lado, restaurou-se o capitalismo e, por outro, as grandes mobilizações de massas se voltaram contra os regimes do Partido Comunista que levaram a essa restauração. Isso vai provocar enormes dúvidas e confusão em milhões de pessoas que lutavam pelo socialismo. A primeira grande dúvida: a restauração, que fecha este processo do século 20, não estava indicando um balanço definitivo da história, onde se mostrava que, ainda que o socialismo fosse uma bela ideia, não tinha nada superior ao capitalismo, como já tinha dito Churchill?
A partir daí, milhões de pessoas tiram conclusões muito negativas. Uns se decepcionam e abandonam todo tipo de militância pelo socialismo e vão para suas casas. Outros chegaram à conclusão de que o socialismo era impossível e se puseram a ganhar espaços dentro do capitalismo, isto é, viraram reformistas. Há grandes autores, como Tarik Ali, que dizem, por exemplo, que na Venezuela não existe socialismo nem nada parecido. Mas, dado que o socialismo é impossível, há de se buscar o mais progressivo dentro do capitalismo e, portanto, tem de se apoiar ao governo burguês de Chávez. Isto que Tarik Ali expressa com total clareza, grande parte da esquerda o justifica em nome dos “diferentes caminhos ao socialismo” ou do “socialismo do século XXI”.
Por outro lado, entre os que continuaram lutando pelo socialismo, surgiram outras grandes discussões. Por exemplo, ante o temor de construir partidos parecidos ao PC estalinista, chega-se ao questionamento da construção do partido. Surgem assim setores que afirmam: “socialismo sim, mas partido não”; “não à ditadura do proletariado”, “não ao caminho estatizante” etc.
Estas confusões e crises, que se dão não somente na vanguarda, mas também por dentro do movimento trotskista, são similares às que se deram depois das expropriações do pós-segunda guerra?
Para mim, não. No pós-guerra, deram-se expropriações da burguesia sem que fossem encabeçadas pela classe operária e sem a direção do partido revolucionário. Foram realizadas por direções historicamente contrarrevolucionárias. Isso havia sido previsto por Trotsky, ainda que não como o mais provável, e provocou uma crise no movimento trotskista. Alguns não reconheceram estas revoluções e o caráter operário, ainda que burocratizado, dos novos estados. Por outro lado, entre os que corretamente reconheceram o caráter operário desses estados, surgiu um setor que capitulou às direções burocráticas ou pequeno-burguesas que encabeçaram essas revoluções. Mas essas posições liquidacionistas foram minoritárias A maioria continuou combatendo a burocracia estalinista. Agora, se deu o oposto. O conjunto do movimento trotskista entrou numa grande confusão e, dentro disso, a ampla maioria não só vai à capitulação, como também abandona o programa trotskista.
Os que continuamos defendendo o programa trotskista e a reconstrução da IV Internacional somos uma minoria. E entre os que o fazemos, continua a confusão. Não temos clareza absoluta do que passou e por quê. Isso é muito perigoso, pois corremos o risco de militarmos por fé. E nós somos marxistas, somos científicos, não nos move a fé. Por exemplo, não seguiríamos sendo socialistas se o capitalismo demonstrasse sua superioridade.
No livro, eu abordo este tema. Trotsky dizia que a restauração provocaria uma deterioração qualitativa das condições de vida e da cultura. Isso se viu rapidamente. Hoje há um crescimento populacional negativo na Rússia, produto não de uma queda de natalidade, mas do aumento considerável das mortes evitáveis que se deram após a restauração. Por outro lado, os dados do Banco Mundial dizem que, no mundo, o aumento dos famintos é de 100 milhões por ano. E, como última prova, temos a crise do sistema capitalista que estamos vivendo. Nada disto mostra a superioridade do capitalismo, senão o contrário.
O que ocorreu foi algo que estava previsto por Trotsky desde a década de 1930, quando a URSS estava em pleno apogeu. Nesse momento, Trotsky diz que, se a burocracia continuasse dirigindo esse Estado, a restauração seria inevitável e que a única forma de evitar a restauração era com o triunfo da revolução política. Isto é, a revolução que, mantendo as bases econômicas do Estado, deslocasse a burocracia e pusesse a classe operária em seu lugar. Essas revoluções deram-se, em 1953, na Alemanha; em 1956, na Hungria; em 1968, na Tchecoslováquia; e em três oportunidades, na Polônia. Mas todas foram derrotadas. A burocracia continuou no poder e levou à restauração. Por isso, eu digo que o veredicto da História confirmou, pela negativa, as definições centrais e o programa de Trotsky.
Como se chegou a isso?
Esses estados operários, que tiveram um crescimento espetacular e que pareciam ir ao socialismo, começaram a entrar em crise econômica já na década de 1960. Com relação ao Leste Europeu, a resposta da burocracia não foi expandir a revolução, e sim estreitar as relações comerciais com os grandes centros imperialistas. Isto desenvolveu um grande intercâmbio comercial, completamente desigual, e todas as economias do Leste terminam numa crise brutal. A resposta, novamente, é apelar ao imperialismo, desta vez aos créditos baratos. Assim, no começo dos anos 80, estes Estados que eram independentes do imperialismo, começam a ter um grau de dependência completa via a dívida externa, que os coloca à beira da falência. A burocracia, ante o temor de que essa crise provoque uma convulsão social, se entrega totalmente ao imperialismo. Tudo isto confirma a posição de Trotsky.
Então, por que o movimento trotskista, de conjunto, não saiu fortalecido? Porque não soubemos ver o que estava se passando. Não soubemos ver quando o processo de restauração deu o salto qualitativo e mudou o caráter de classe desses Estados. E esse salto não se dá quando a burocracia aplica algumas medidas restauracionistas, mas sim quando toma uma medida básica: a de destruir os três pilares que restavam do Estado Operário: o monopólio do comércio exterior, a economia estatizada e o planejamento econômico central. Na China, isto se dá a partir de 1978, quando se votam no Comitê Central do PC chinês as quatro modernizações. Na ex-URSS, ocorre com a Perestroika de Gorbachev, a partir de 1986. Com estas medidas, produzem-se mudanças qualitativas nas leis que lhes permitem acabar com o monopólio do comércio exterior, liquidar o planejamento central e admitir a propriedade privada dos meios de produção. Teria de se precisar, país por país, em que momento se dá esse salto qualitativo, em cada caso. Mas, do ponto de vista burocrático, todas essas economias que dependiam da ex-URSS, não tinham outra saída, senão acompanhá-la no caminho da restauração.
Nós, trotskistas, não vimos isso, e alguns não o veem até hoje. Por exemplo, depois de terminada a restauração no Leste, importantes setores dizem que não há restauração em Cuba, na China e Vietnã. Por quê? Porque à frente desses Estados, estão os partidos comunistas. Isto demonstra uma confusão tremenda num setor do movimento trotskista, no qual não nos incluímos. A restauração veio do Partido Comunista. Portanto, onde se conservaram os PCs, a restauração avançou mais rapidamente, com menos contradições. É o caso da China: após a restauração, em 1978, dão-se as grandes mobilizações de 1989, que são esmagadas por um grande massacre. A partir daí, o PC impõe uma ditadura ainda mais forte e o imperialismo sente uma grande confiança para investir. Por isso, hoje a China é a fábrica do mundo: 50% do que exportam as 500 multinacionais mais importantes do mundo, sai da China. Por quê? Porque a ditadura do PC permite-lhes um grau de exploração como não existe em nenhum outro lugar do mundo. Algo similar ocorre com Cuba. Um estudo do Greenpeace diz que, de cada dez hotéis cubanos, sete são espanhóis, sendo que o turismo é a principal entrada de divisas na Ilha. Que tem isso de economia não capitalista?
Pode-se dizer que todo o movimento trotskista atuou de forma igual em frente aos ex-estados operários degenerados?
Não. Uma coisa é que, de conjunto, não víssemos quando se deu o salto qualitativo para a restauração; outra coisa são os que tiveram uma política de capitulação frente às burocracias e os que sempre as enfrentaram. Por exemplo, Ernest Mandel e Pierre Frank, dirigentes do chamado Secretariado Unificado da IV Internacional, diziam que não havia nenhuma possibilidade de restauração do capitalismo. Isso, de fato, era uma capitulação ao imperialismo, que sempre teve uma ofensiva restauradora. Mas era uma capitulação ainda pior à burocracia, já que diziam que esta, em defesa de seus interesses, nunca poderia restaurar o capitalismo.
Sobre isso, dentro do movimento trotskista, houve posições diferentes. Nahuel Moreno sempre polemizou, dentro e fora do SU, contra essa concepção. Em seu livro A ditadura revolucionária do proletariado, ataca com dureza essa posição de Mandel e diz o que sempre disse Trotsky: que enquanto não se conceder a liberdade à burguesia para explorar, enquanto não se acabar com o Estado operário, ainda que esteja burocratizado, todo o capitalismo vai considerar a URSS como sua inimiga, por mais proezas contrarrevolucionárias que faça Stalin. Esse mesmo conceito toma-o Moreno: diz que enquanto não se restaure o capitalismo, sempre haverá uma pressão permanente por restaurá-lo. E agregava que a própria burocracia, quando se visse ameaçada pela explosão das massas, se viraria de pés e mãos à restauração. Então, Mandel desarmava o movimento trotskista, enquanto Moreno alertava que iria ocorrer o que depois se deu.
De qualquer maneira, há um erro também em Moreno, que nós depois seguimos: não ver quando se concretizou essa restauração. Não viu que em 1978 já se tinha restaurado o capitalismo na China. Ele tem um trabalho sobre a China muito bom, publicado no Correio Internacional, em 1985, onde analisa todo o processo de restauração que estava dando. Mas, ao final, diz que não há restauração, pois, para que ocorresse, seria necessário impô-la com uma ditadura similar às de Pinochet ou Videla. Ao assegurar isso, Moreno segue Trotsky, que também afirmava que a restauração só poderia ser imposta através de uma repressão sangrenta. Do ponto de vista do conteúdo, Trotsky tinha razão, já que só se conseguiu a restauração porque se deu um grande massacre a partir da década de 1930. Mas, justamente pelo que dizia Trotsky, que o que tinha surgido desse genocídio era um regime similar ao fascismo, não seria necessário um novo massacre quando a burocracia assumisse a restauração.
O resultado destes processos foi um triunfo ou uma derrota?
O problema é que se tratam de dois processos de caráter oposto, que se deram em diferentes momentos, ainda que muito próximos no tempo. Primeiro dá-se a restauração do capitalismo. Isso, sem nenhuma dúvida, é algo negativo, uma derrota muito importante, já que se trata da reversão da grande conquista operária do século, a expropriação da burguesia. Essa derrota teve consequências: provocou desmoralização, confusão e dúvidas no movimento de massas. Mas não o esmagou nem o paralisou. A prova é que, poucos anos depois, se deram as grandes mobilizações que se voltaram contra os governos e regimes dos partidos comunistas, responsáveis pela restauração. Desta vez, o stalinismo pagou caro pela sua traição.
Eu dizia, na palestra, que opino que há três grandes vitórias de caráter estratégico da classe operária desde que essa existe: o triunfo da Revolução Russa, em outubro de 1917, a derrota do fascismo na Segunda Guerra e a terceira grande vitória é a derrota do aparelho stalinista. Ocorreram muitas tentativas anteriores, mas nunca se conseguiu derrubá-lo com mobilizações nacionais. Era tão poderoso que, igual ao fascismo, foi necessária uma mobilização internacional para poder derrotá-lo.
Eu acho que essa grande vitória nos coloca em melhores condições para superar o grande problema da humanidade que, como dizia Trotsky, é a crise de direção revolucionária. Porque foi destruído o aparelho central do stalinismo, o grande obstáculo para se construir a direção revolucionária. Isso não quer dizer que seja uma tarefa fácil. Nunca o foi. Mas agora há um elemento contraditório, que tem a ver com a confusão e a desmoralização provocadas pela derrota. Por isso, não há tarefa mais importante do que clarificar o caráter da derrota e do triunfo que se deram. Se não o fizermos, se não entendermos a fundo o que ocorreu, não saberemos como seguir em frente. Não acreditamos que sejamos os donos da verdade absoluta. Este livro e estes debates são só primeiros passos. O importante é saber se estes passos, os estamos dando no sentido correto ou não
Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI)
• Em 9 de novembro de 1989, caía o Muro de Berlim. Este foi um dos fatos centrais do século 20. Este acontecimento significou o triunfo definitivo do capitalismo e o fracasso do socialismo? Têm razão os que, na esquerda, abandonaram a luta pelo socialismo e passaram a buscar humanizar o capitalismo? Ou os que falam do fracasso do modelo leninista de partido e Estado?
Para responder a essas perguntas e reafirmar o programa trotskista, Martín Hernández, dirigente da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI), escreveu o livro O veredicto da História, cuja versão em espanhol acaba de ser lançada na Argentina, com a presença do autor em palestras e debates.
Apresentamos, a seguir, artigo publicado no jornal Luta Socialista, órgão da Frente Obrero Socialista (FOS), seção argentina da LIT-QI, sobre as atividades de lançamento do livro em Rosário e Buenos Aires e uma entrevista com Martín Hernández.
No dia 30 de outubro, a FOS realizou, no Hotel Bauen de Buenos Aires, que funciona sob controle dos trabalhadores, um evento de apresentação e lançamento do livro de Martín Hernández, O veredicto da História. O evento foi aberto por Eduardo Barragán, que explicou a importância de podermos retomar o debate sobre os grandes fatos do Leste Europeu quando se completam 20 anos da queda do Muro de Berlim e 92 anos do triunfo da Revolução Russa.
Ao se completarem estes 20 anos, ressurgem as diferentes expressões dos propagandistas do imperialismo, que tentam utilizar essas grandes mobilizações de massas para sua campanha de que o socialismo morreu e da suposta superioridade do capitalismo. Claro que, no meio da crise do sistema capitalista mundial, essas afirmações têm muito menos peso que em 1989. Mas, de qualquer maneira, sempre terão a capacidade de confundir os lutadores, na medida em que, dentre os que defendem a revolução, ainda não há uma clareza total sobre o caráter e as consequências dos processos do Leste Europeu de 1989-91.
Isso reafirma a importância de trabalhos de investigação como o que tem realizado Martín Hernández. Como ele afirma, não pretende fechar a discussão, mas são primeiros passos para fazer avançar o entendimento sobre esses acontecimentos e das tarefas que eles propõem aos revolucionários.
O interesse que este tema origina se refletiu nos mais de 200 companheiros que estiveram presentes nesta palestra-debate. Muitos deles eram ex-militantes do velho MAS argentino, do Partido Comunista, da Fede. Também esteve presente uma delegação da Convergência de Esquerda, bem como jovens estudantes e operários que estão participando dos recentes processos de luta e que sentem a necessidade de compreender esses grandes fatos do passado para avançar com mais segurança para o futuro.
No dia anterior, tinha acontecido uma apresentação em Rosário, organizada pelos companheiros do Espaço Cultural La Toma. Um de seus dirigentes, o companheiro Carlos Ghioldi, abriu o evento apresentando o autor e, após a palestra, coordenou o interessante debate que se abriu entre os presentes. Participaram delegados do Sindicato dos Comerciários, da Mahle e de outras importantes fábricas da região.
A seguir, reproduzimos a entrevista com Martín Hernández, na qual o autor fala dos diferentes aspectos que desenvolve em seu livro.
Entrevista com Martín Hernández
“Se não entendemos o que ocorreu, não saberemos como seguir em frente.”
O que o impulsionou a escrever este livro?
Martín Hernández – A necessidade de dar uma resposta programática, isto é, de chegar à compreensão da situação e das tarefas que estão propostas a partir desses grandes fatos. Como diz Trotsky, no século 20, o socialismo mostrou sua razão de ser. Não nas páginas do Capital, mas no terreno do cimento e do aço, porque a Revolução Russa demonstrou que era uma ideia realizável. Mostrou que um país podia funcionar sem burguesia e, a partir daí, conseguir um desenvolvimento extraordinário. Mostrou-se que a burguesia era uma classe parasitária e que o desenvolvimento da humanidade dependia de sua destruição. Isso voltou a se mostrar após a Segunda Guerra, quando se expropria à burguesia em um terço do planeta.
Vivemos tudo isso no século 20 e, no final do mesmo, ocorreram os dois grandes acontecimentos que estamos discutindo. Por um lado, restaurou-se o capitalismo e, por outro, as grandes mobilizações de massas se voltaram contra os regimes do Partido Comunista que levaram a essa restauração. Isso vai provocar enormes dúvidas e confusão em milhões de pessoas que lutavam pelo socialismo. A primeira grande dúvida: a restauração, que fecha este processo do século 20, não estava indicando um balanço definitivo da história, onde se mostrava que, ainda que o socialismo fosse uma bela ideia, não tinha nada superior ao capitalismo, como já tinha dito Churchill?
A partir daí, milhões de pessoas tiram conclusões muito negativas. Uns se decepcionam e abandonam todo tipo de militância pelo socialismo e vão para suas casas. Outros chegaram à conclusão de que o socialismo era impossível e se puseram a ganhar espaços dentro do capitalismo, isto é, viraram reformistas. Há grandes autores, como Tarik Ali, que dizem, por exemplo, que na Venezuela não existe socialismo nem nada parecido. Mas, dado que o socialismo é impossível, há de se buscar o mais progressivo dentro do capitalismo e, portanto, tem de se apoiar ao governo burguês de Chávez. Isto que Tarik Ali expressa com total clareza, grande parte da esquerda o justifica em nome dos “diferentes caminhos ao socialismo” ou do “socialismo do século XXI”.
Por outro lado, entre os que continuaram lutando pelo socialismo, surgiram outras grandes discussões. Por exemplo, ante o temor de construir partidos parecidos ao PC estalinista, chega-se ao questionamento da construção do partido. Surgem assim setores que afirmam: “socialismo sim, mas partido não”; “não à ditadura do proletariado”, “não ao caminho estatizante” etc.
Estas confusões e crises, que se dão não somente na vanguarda, mas também por dentro do movimento trotskista, são similares às que se deram depois das expropriações do pós-segunda guerra?
Para mim, não. No pós-guerra, deram-se expropriações da burguesia sem que fossem encabeçadas pela classe operária e sem a direção do partido revolucionário. Foram realizadas por direções historicamente contrarrevolucionárias. Isso havia sido previsto por Trotsky, ainda que não como o mais provável, e provocou uma crise no movimento trotskista. Alguns não reconheceram estas revoluções e o caráter operário, ainda que burocratizado, dos novos estados. Por outro lado, entre os que corretamente reconheceram o caráter operário desses estados, surgiu um setor que capitulou às direções burocráticas ou pequeno-burguesas que encabeçaram essas revoluções. Mas essas posições liquidacionistas foram minoritárias A maioria continuou combatendo a burocracia estalinista. Agora, se deu o oposto. O conjunto do movimento trotskista entrou numa grande confusão e, dentro disso, a ampla maioria não só vai à capitulação, como também abandona o programa trotskista.
Os que continuamos defendendo o programa trotskista e a reconstrução da IV Internacional somos uma minoria. E entre os que o fazemos, continua a confusão. Não temos clareza absoluta do que passou e por quê. Isso é muito perigoso, pois corremos o risco de militarmos por fé. E nós somos marxistas, somos científicos, não nos move a fé. Por exemplo, não seguiríamos sendo socialistas se o capitalismo demonstrasse sua superioridade.
No livro, eu abordo este tema. Trotsky dizia que a restauração provocaria uma deterioração qualitativa das condições de vida e da cultura. Isso se viu rapidamente. Hoje há um crescimento populacional negativo na Rússia, produto não de uma queda de natalidade, mas do aumento considerável das mortes evitáveis que se deram após a restauração. Por outro lado, os dados do Banco Mundial dizem que, no mundo, o aumento dos famintos é de 100 milhões por ano. E, como última prova, temos a crise do sistema capitalista que estamos vivendo. Nada disto mostra a superioridade do capitalismo, senão o contrário.
O que ocorreu foi algo que estava previsto por Trotsky desde a década de 1930, quando a URSS estava em pleno apogeu. Nesse momento, Trotsky diz que, se a burocracia continuasse dirigindo esse Estado, a restauração seria inevitável e que a única forma de evitar a restauração era com o triunfo da revolução política. Isto é, a revolução que, mantendo as bases econômicas do Estado, deslocasse a burocracia e pusesse a classe operária em seu lugar. Essas revoluções deram-se, em 1953, na Alemanha; em 1956, na Hungria; em 1968, na Tchecoslováquia; e em três oportunidades, na Polônia. Mas todas foram derrotadas. A burocracia continuou no poder e levou à restauração. Por isso, eu digo que o veredicto da História confirmou, pela negativa, as definições centrais e o programa de Trotsky.
Como se chegou a isso?
Esses estados operários, que tiveram um crescimento espetacular e que pareciam ir ao socialismo, começaram a entrar em crise econômica já na década de 1960. Com relação ao Leste Europeu, a resposta da burocracia não foi expandir a revolução, e sim estreitar as relações comerciais com os grandes centros imperialistas. Isto desenvolveu um grande intercâmbio comercial, completamente desigual, e todas as economias do Leste terminam numa crise brutal. A resposta, novamente, é apelar ao imperialismo, desta vez aos créditos baratos. Assim, no começo dos anos 80, estes Estados que eram independentes do imperialismo, começam a ter um grau de dependência completa via a dívida externa, que os coloca à beira da falência. A burocracia, ante o temor de que essa crise provoque uma convulsão social, se entrega totalmente ao imperialismo. Tudo isto confirma a posição de Trotsky.
Então, por que o movimento trotskista, de conjunto, não saiu fortalecido? Porque não soubemos ver o que estava se passando. Não soubemos ver quando o processo de restauração deu o salto qualitativo e mudou o caráter de classe desses Estados. E esse salto não se dá quando a burocracia aplica algumas medidas restauracionistas, mas sim quando toma uma medida básica: a de destruir os três pilares que restavam do Estado Operário: o monopólio do comércio exterior, a economia estatizada e o planejamento econômico central. Na China, isto se dá a partir de 1978, quando se votam no Comitê Central do PC chinês as quatro modernizações. Na ex-URSS, ocorre com a Perestroika de Gorbachev, a partir de 1986. Com estas medidas, produzem-se mudanças qualitativas nas leis que lhes permitem acabar com o monopólio do comércio exterior, liquidar o planejamento central e admitir a propriedade privada dos meios de produção. Teria de se precisar, país por país, em que momento se dá esse salto qualitativo, em cada caso. Mas, do ponto de vista burocrático, todas essas economias que dependiam da ex-URSS, não tinham outra saída, senão acompanhá-la no caminho da restauração.
Nós, trotskistas, não vimos isso, e alguns não o veem até hoje. Por exemplo, depois de terminada a restauração no Leste, importantes setores dizem que não há restauração em Cuba, na China e Vietnã. Por quê? Porque à frente desses Estados, estão os partidos comunistas. Isto demonstra uma confusão tremenda num setor do movimento trotskista, no qual não nos incluímos. A restauração veio do Partido Comunista. Portanto, onde se conservaram os PCs, a restauração avançou mais rapidamente, com menos contradições. É o caso da China: após a restauração, em 1978, dão-se as grandes mobilizações de 1989, que são esmagadas por um grande massacre. A partir daí, o PC impõe uma ditadura ainda mais forte e o imperialismo sente uma grande confiança para investir. Por isso, hoje a China é a fábrica do mundo: 50% do que exportam as 500 multinacionais mais importantes do mundo, sai da China. Por quê? Porque a ditadura do PC permite-lhes um grau de exploração como não existe em nenhum outro lugar do mundo. Algo similar ocorre com Cuba. Um estudo do Greenpeace diz que, de cada dez hotéis cubanos, sete são espanhóis, sendo que o turismo é a principal entrada de divisas na Ilha. Que tem isso de economia não capitalista?
Pode-se dizer que todo o movimento trotskista atuou de forma igual em frente aos ex-estados operários degenerados?
Não. Uma coisa é que, de conjunto, não víssemos quando se deu o salto qualitativo para a restauração; outra coisa são os que tiveram uma política de capitulação frente às burocracias e os que sempre as enfrentaram. Por exemplo, Ernest Mandel e Pierre Frank, dirigentes do chamado Secretariado Unificado da IV Internacional, diziam que não havia nenhuma possibilidade de restauração do capitalismo. Isso, de fato, era uma capitulação ao imperialismo, que sempre teve uma ofensiva restauradora. Mas era uma capitulação ainda pior à burocracia, já que diziam que esta, em defesa de seus interesses, nunca poderia restaurar o capitalismo.
Sobre isso, dentro do movimento trotskista, houve posições diferentes. Nahuel Moreno sempre polemizou, dentro e fora do SU, contra essa concepção. Em seu livro A ditadura revolucionária do proletariado, ataca com dureza essa posição de Mandel e diz o que sempre disse Trotsky: que enquanto não se conceder a liberdade à burguesia para explorar, enquanto não se acabar com o Estado operário, ainda que esteja burocratizado, todo o capitalismo vai considerar a URSS como sua inimiga, por mais proezas contrarrevolucionárias que faça Stalin. Esse mesmo conceito toma-o Moreno: diz que enquanto não se restaure o capitalismo, sempre haverá uma pressão permanente por restaurá-lo. E agregava que a própria burocracia, quando se visse ameaçada pela explosão das massas, se viraria de pés e mãos à restauração. Então, Mandel desarmava o movimento trotskista, enquanto Moreno alertava que iria ocorrer o que depois se deu.
De qualquer maneira, há um erro também em Moreno, que nós depois seguimos: não ver quando se concretizou essa restauração. Não viu que em 1978 já se tinha restaurado o capitalismo na China. Ele tem um trabalho sobre a China muito bom, publicado no Correio Internacional, em 1985, onde analisa todo o processo de restauração que estava dando. Mas, ao final, diz que não há restauração, pois, para que ocorresse, seria necessário impô-la com uma ditadura similar às de Pinochet ou Videla. Ao assegurar isso, Moreno segue Trotsky, que também afirmava que a restauração só poderia ser imposta através de uma repressão sangrenta. Do ponto de vista do conteúdo, Trotsky tinha razão, já que só se conseguiu a restauração porque se deu um grande massacre a partir da década de 1930. Mas, justamente pelo que dizia Trotsky, que o que tinha surgido desse genocídio era um regime similar ao fascismo, não seria necessário um novo massacre quando a burocracia assumisse a restauração.
O resultado destes processos foi um triunfo ou uma derrota?
O problema é que se tratam de dois processos de caráter oposto, que se deram em diferentes momentos, ainda que muito próximos no tempo. Primeiro dá-se a restauração do capitalismo. Isso, sem nenhuma dúvida, é algo negativo, uma derrota muito importante, já que se trata da reversão da grande conquista operária do século, a expropriação da burguesia. Essa derrota teve consequências: provocou desmoralização, confusão e dúvidas no movimento de massas. Mas não o esmagou nem o paralisou. A prova é que, poucos anos depois, se deram as grandes mobilizações que se voltaram contra os governos e regimes dos partidos comunistas, responsáveis pela restauração. Desta vez, o stalinismo pagou caro pela sua traição.
Eu dizia, na palestra, que opino que há três grandes vitórias de caráter estratégico da classe operária desde que essa existe: o triunfo da Revolução Russa, em outubro de 1917, a derrota do fascismo na Segunda Guerra e a terceira grande vitória é a derrota do aparelho stalinista. Ocorreram muitas tentativas anteriores, mas nunca se conseguiu derrubá-lo com mobilizações nacionais. Era tão poderoso que, igual ao fascismo, foi necessária uma mobilização internacional para poder derrotá-lo.
Eu acho que essa grande vitória nos coloca em melhores condições para superar o grande problema da humanidade que, como dizia Trotsky, é a crise de direção revolucionária. Porque foi destruído o aparelho central do stalinismo, o grande obstáculo para se construir a direção revolucionária. Isso não quer dizer que seja uma tarefa fácil. Nunca o foi. Mas agora há um elemento contraditório, que tem a ver com a confusão e a desmoralização provocadas pela derrota. Por isso, não há tarefa mais importante do que clarificar o caráter da derrota e do triunfo que se deram. Se não o fizermos, se não entendermos a fundo o que ocorreu, não saberemos como seguir em frente. Não acreditamos que sejamos os donos da verdade absoluta. Este livro e estes debates são só primeiros passos. O importante é saber se estes passos, os estamos dando no sentido correto ou não
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