Postado por Attman e Kamadon
Rev. Israel Cardoso
Fala-se muito em liberdade religiosa. A nossa Constituição no artigo 5º, inciso VI diz que "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias". A Declaração Universal dos Direitos humanos, também afirma que a Liberdade religiosa é um dos direitos fundamentais. A pesar de o Estado Brasileiro ser laico, essa não é a impressão que temos às vezes, pois, uma boa parte dos feriados nacionais e municipais são na verdade feriados religiosos cristãos. Sei que os que crêem na autenticidade desses feriados com certeza vão querer dar uma fundamentação histórica para defender seus interesses religiosos ou políticos. Uma coisa é o rastro da religião deixado por conseqüência da colonização, outra coisa é o preconceito e intolerância religiosa visibilizados em nossa sociedade no dia a dia. É comum vermos no interior de órgãos públicos um crucifixo na parede, uma imagem de Maria ou uma Bíblia em um lugar de destaque. O Estado Brasileiro é laico, ele não deve ter, e não tem religião. Hospitais, por exemplo, já são equipados com capela "cristã" para prestarem assistência religiosa; muitos se aproveitam desse momento de fragilidade dos doentes e seus familiares para lhes convencerem a sair da sua religião e virem para a "verdadeira". Não é difícil vermos também celebrações ecumênicas que na maioria das vezes são dirigidas apenas por padres e/ou pastores. É comum presenciarmos em praças públicas, paradas de ônibus, ou mesmo dentro dos ônibus, alguém empunhando uma Bíblia como se fosse uma metralhadora, pregando um "evangelho" com palavras agressivas, apelativas, demonizantes; condenando ao inferno quem não crer como ele/ela. Isso é liberdade religiosa ou abuso da liberdade religiosa?
Se vivemos em um Estado Laico, por que no lugar do crucifixo não se coloca também, por exemplo, uma imagem de Buda, uma foto de Maomé, uma imagem de uma Divindade africana, um símbolo Bah’ai, uma imagem de Krishna, etc.? Por que no aniversário de emancipação de uma cidade, no lugar de um culto católico e/ou evangélico, não se faz uma mística macro-religiosa com a presença de sacerdotes cristãos e não cristãos? Esses últimos são indignos? Não são filhos de Deus? Eu não creio assim! Já pensaram se uma Yalorixá (Mãe de santo) entrasse em um ônibus e começasse a falar sobre a influência dos orixás na vida das pessoas, pedindo que os passageiros seguissem tal religião? Como os passageiros cristãos agiriam? Creio que no mínimo ela seria "convidada" a descer do ônibus ou parar de falar. Muitos cristãos ainda hoje se auto-afirmam donos da verdade. Exterminaram índios e negros, mataram bruxas, maçons, etc. e ainda hoje, condenam ao inferno os homossexuais, divorciados, muçulmanos, Espíritas etc. A pesar de tudo isso, ainda falam de Paz do Senhor. Creio que os cristãos precisam muito aprender sobre paz e tolerância religiosa com religiões como o Budismo, o Candomblé, a Fé Bah’ai, o Induísmo, o Kardecismo etc. Esses têm muito a nos ensinar sobre tolerância religiosa; pois boa parte deles têm sido vítimas de intolerância por parte dos cristãos sem revidar os ataques. Não pode haver uma cultura de paz, sem tolerância religiosa. Precisamos cada vez mais tirar as vendas do preconceito religioso e da intolerância religiosa, só assim, poderemos ver Deus nos outros. A grande questão é que a "Igreja de Cristo" está bem distante d’Ele e do seu projeto de vida. Ela prefere se basear em Dogmas que ela mesma criou, prefere ser fundamentalista na interpretação literal dos textos bíblicos, ao invés de se fundamentar no amor universal do Ser absoluto que é Pai, Mãe e irmão de todos e todas.
"Ninguém, nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." (Nelson Mandela).
sábado, 24 de outubro de 2009
Lembrança para libertar
Postado por Attman e Kamadon
Marcelo Barros *
Países da África enfrentam situações de vida mais pobres e difíceis. Talvez a partir deste pretexto, na República Democrática do Congo e em países vizinhos, o governo dos Estados Unidos faz prospecção de petróleo e várias empresas multinacionais desenvolveram minas de diamantes. Pagam ao governo local preços irrisórios pela ocupação da terra e dão trabalho a moradores locais por um prato de comida ou por uma taxa mínima, pago ao governo e não aos trabalhadores. Estes não vêem salário, mesmo se se matam em um trabalho pesado e realizado em condições de risco. Neste contexto, compreendemos por que a ONU faz questão, cada ano, de dedicar o 23 de agosto como "dia internacional da lembrança do tráfico de escravos e de sua abolição". Não se trata apenas da recordação triste de um passado distante, hoje, superado. Ao contrário, os organismos internacionais calculam que quatro milhões de seres humanos, atualmente, são vítimas do tráfico de escravos. No Darfur e em alguns países da África, mercadores de escravos ainda se concentram nas fronteiras para vender crianças de oito a doze anos, por 500 ou 1000 dólares cada uma. Nos países da antiga União Soviética e na Europa Oriental, mulheres e moças de menor idade são seqüestradas e levadas para ser escravas sexuais nas estradas da Espanha, Itália e da França. Nesse tráfico, o preço por uma pessoa pode chegar até 30 mil dólares. Assim, esse negócio macabro gera até 12 bilhões de dólares por ano. E, infelizmente, o Brasil é dos países mais envolvidos neste comércio de seres humanos para a Europa.
Entre nós, a escravidão no campo ainda é atual em fazendas do interior, nas quais, cada ano, descobrem-se peões, trazidos de regiões longínquas para trabalhar sob ameaça de armas ou a pagar dívidas que nunca poderão saldar. A Pastoral da Terra e organismos do Ministério do Trabalho, assim como o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) têm contado com a política federal para prender pessoas inescrupulosas que cometem este crime. Estes organismos de defesa do trabalhador denunciam publicamente estes casos e, principalmente lutam no Congresso pela desapropriação imediata de fazendas escravistas para fins de reforma agrária.
A principal conseqüência da escravidão, esta chaga que atinge a história da humanidade e assolou tantos de nossos países, é a exclusão social que ainda marca os descendentes de escravos. Quando se deu a lei da abolição, as pretensas vítimas a serem indenizadas foram os proprietários das fazendas, engenhos e casas grandes que se queixavam de suas perdas econômicas. Nenhum governo pensou em indenizar negros ou índios, vítimas diretas do tráfico e da escravidão. A única saída destes foi encher as ruas das cidades ou os engenhos com barracos infectos, onde os brancos nem se arriscavam a entrar. Hoje, esta população continua sendo uma das vítimas do comércio de drogas, nova versão do tráfico humano que emprega crianças e adolescentes para correr os riscos da prisão e da morte.
Todos estes fatos podem ser lidos e sabidos como dados frios de uma engrenagem sem alma e de um mundo sem rumo. Quem vive em um país injusto como o nosso lida cotidianamente com crianças de rua, com pessoas marginalizadas e com filas de doentes nos postos de INSS. Além disso, a justiça funciona quase sempre contra os empobrecidos e só em casos raros alcança alguém da classe alta que pode pagar fiança e garantir advogados caros.
Há quem pense que a convivência permanente com tanta desgraça gere no ser humano uma espécie de insensibilidade como a de uma pessoa que conviveu tanto com um determinado vírus que acabou sendo vacinado/a. Na verdade, isso não é assim. Ninguém se torna mais capaz de sentir o sofrimento dos outros por saber menos ou por não ver as coisas que acontecem. Infelizmente, tanto no tempo em que os escravos eram oficialmente vendidos e comprados, até hoje em que mais de um bilhão de seres humanos vive em condições subhumanas, a imensa maioria das pessoas se preocupa em fazer algo para mudar esta situação. O que leva as pessoas à compaixão solidária é a opção de vida.
Uma espiritualidade ecumênica da paz e da justiça leva a pessoa a se deixar tocar por essa realidade, não apenas como um sentimento de pena diante do sofrimento eventual de alguém, mas como empatia de compaixão para com o outro, assim como pela convicção profunda de que o mundo não será sadio, enquanto toda e qualquer pessoa não for respeitada integralmente em sua dignidade humana. Quem foi tocado no íntimo pelo olhar de uma pessoa empobrecida ou explorada em seus direitos sabe que não se sai ileso deste encontro. É uma experiência que mexe tão profundamente com o mais íntimo do ser humano que, para muitos, pode ser um momento privilegiado de encontro com o Divino. Foi este encontro que levou o príncipe Sidartha Guatama a se transformar em Buda, assim como levou Jesus a ter suas entranhas movidas de amor uterino a ver as multidões abandonadas como "ovelhas sem pastor". Foi a partir deste encontro com o povo que ele testemunhou que o reinado divino está chegando ao mundo (Cf. Mc 6, 30- 34).
Ao falar desta solidariedade que transforma o mundo, assim se expressou sua santidade, o Dalai Lama: "A capacidade de empatia recíproca que todos possuímos deve ser desenvolvida. É o que, em tibetano, chamamos de shen dug ngal wa la mi so. É isso que provoca o sobressalto quando ouvimos um grito por socorro e é o que nos impede de fechar os olhos e ignorar a desgraça alheia".
* Monge beneditino e escritor
Marcelo Barros *
Países da África enfrentam situações de vida mais pobres e difíceis. Talvez a partir deste pretexto, na República Democrática do Congo e em países vizinhos, o governo dos Estados Unidos faz prospecção de petróleo e várias empresas multinacionais desenvolveram minas de diamantes. Pagam ao governo local preços irrisórios pela ocupação da terra e dão trabalho a moradores locais por um prato de comida ou por uma taxa mínima, pago ao governo e não aos trabalhadores. Estes não vêem salário, mesmo se se matam em um trabalho pesado e realizado em condições de risco. Neste contexto, compreendemos por que a ONU faz questão, cada ano, de dedicar o 23 de agosto como "dia internacional da lembrança do tráfico de escravos e de sua abolição". Não se trata apenas da recordação triste de um passado distante, hoje, superado. Ao contrário, os organismos internacionais calculam que quatro milhões de seres humanos, atualmente, são vítimas do tráfico de escravos. No Darfur e em alguns países da África, mercadores de escravos ainda se concentram nas fronteiras para vender crianças de oito a doze anos, por 500 ou 1000 dólares cada uma. Nos países da antiga União Soviética e na Europa Oriental, mulheres e moças de menor idade são seqüestradas e levadas para ser escravas sexuais nas estradas da Espanha, Itália e da França. Nesse tráfico, o preço por uma pessoa pode chegar até 30 mil dólares. Assim, esse negócio macabro gera até 12 bilhões de dólares por ano. E, infelizmente, o Brasil é dos países mais envolvidos neste comércio de seres humanos para a Europa.
Entre nós, a escravidão no campo ainda é atual em fazendas do interior, nas quais, cada ano, descobrem-se peões, trazidos de regiões longínquas para trabalhar sob ameaça de armas ou a pagar dívidas que nunca poderão saldar. A Pastoral da Terra e organismos do Ministério do Trabalho, assim como o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) têm contado com a política federal para prender pessoas inescrupulosas que cometem este crime. Estes organismos de defesa do trabalhador denunciam publicamente estes casos e, principalmente lutam no Congresso pela desapropriação imediata de fazendas escravistas para fins de reforma agrária.
A principal conseqüência da escravidão, esta chaga que atinge a história da humanidade e assolou tantos de nossos países, é a exclusão social que ainda marca os descendentes de escravos. Quando se deu a lei da abolição, as pretensas vítimas a serem indenizadas foram os proprietários das fazendas, engenhos e casas grandes que se queixavam de suas perdas econômicas. Nenhum governo pensou em indenizar negros ou índios, vítimas diretas do tráfico e da escravidão. A única saída destes foi encher as ruas das cidades ou os engenhos com barracos infectos, onde os brancos nem se arriscavam a entrar. Hoje, esta população continua sendo uma das vítimas do comércio de drogas, nova versão do tráfico humano que emprega crianças e adolescentes para correr os riscos da prisão e da morte.
Todos estes fatos podem ser lidos e sabidos como dados frios de uma engrenagem sem alma e de um mundo sem rumo. Quem vive em um país injusto como o nosso lida cotidianamente com crianças de rua, com pessoas marginalizadas e com filas de doentes nos postos de INSS. Além disso, a justiça funciona quase sempre contra os empobrecidos e só em casos raros alcança alguém da classe alta que pode pagar fiança e garantir advogados caros.
Há quem pense que a convivência permanente com tanta desgraça gere no ser humano uma espécie de insensibilidade como a de uma pessoa que conviveu tanto com um determinado vírus que acabou sendo vacinado/a. Na verdade, isso não é assim. Ninguém se torna mais capaz de sentir o sofrimento dos outros por saber menos ou por não ver as coisas que acontecem. Infelizmente, tanto no tempo em que os escravos eram oficialmente vendidos e comprados, até hoje em que mais de um bilhão de seres humanos vive em condições subhumanas, a imensa maioria das pessoas se preocupa em fazer algo para mudar esta situação. O que leva as pessoas à compaixão solidária é a opção de vida.
Uma espiritualidade ecumênica da paz e da justiça leva a pessoa a se deixar tocar por essa realidade, não apenas como um sentimento de pena diante do sofrimento eventual de alguém, mas como empatia de compaixão para com o outro, assim como pela convicção profunda de que o mundo não será sadio, enquanto toda e qualquer pessoa não for respeitada integralmente em sua dignidade humana. Quem foi tocado no íntimo pelo olhar de uma pessoa empobrecida ou explorada em seus direitos sabe que não se sai ileso deste encontro. É uma experiência que mexe tão profundamente com o mais íntimo do ser humano que, para muitos, pode ser um momento privilegiado de encontro com o Divino. Foi este encontro que levou o príncipe Sidartha Guatama a se transformar em Buda, assim como levou Jesus a ter suas entranhas movidas de amor uterino a ver as multidões abandonadas como "ovelhas sem pastor". Foi a partir deste encontro com o povo que ele testemunhou que o reinado divino está chegando ao mundo (Cf. Mc 6, 30- 34).
Ao falar desta solidariedade que transforma o mundo, assim se expressou sua santidade, o Dalai Lama: "A capacidade de empatia recíproca que todos possuímos deve ser desenvolvida. É o que, em tibetano, chamamos de shen dug ngal wa la mi so. É isso que provoca o sobressalto quando ouvimos um grito por socorro e é o que nos impede de fechar os olhos e ignorar a desgraça alheia".
* Monge beneditino e escritor
A Teologia da Libertação: Leonardo Boff e Frei Betto
Postado por Attman e Kamadon
Michael Löwy
Os cristãos comprometidos socialmente são um dos componentes mais ativos e importantes do movimento altermundista; particularmente, porém não somente na América Latina e especialmente no Brasil, país que acolheu as primeiras reuniões do Fórum Social Mundial (FSM). Um dos iniciadores do FSM, Chico Whitaker, membro da "Comissão Justiça e Paz" da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pertence a esta esfera de influência, o mesmo que o sacerdote belga François Houtart, amigo e professor de Camilo Torres, promotor da revista Alternatives Sud, fundador do "Centro Tricontinental" (CETRI) e uma das figuras intelectuais mais influentes do Fórum.
Podemos datar o nascimento dessa corrente, que poderíamos denominar como "cristianismo da libertação" no começo dos anos 60, quando a Juventude Universitária Católica brasileira (JUC), alimentada pela cultura católica francesa progressista (Emmanuel Mounier e a revista Esprit, o padre Lebret e o movimento "Economia y Humanismo", o Karl Marx do jesuíta J.Y. Calvez), formula por primeira vez, em nome do cristianismo, uma proposta radical de transformação social. Esse movimento se estende depois a outros países do continente e encontra, a partir dos anos 70, uma expressão cultural, política e espiritual na "Teologia da Libertação".
Os dois principias teólogos da libertação brasileiros, Leonardo Boff e Frei Betto, estão, portanto, entre os precursores e inspiradores do altermundismo; com seus escritos e suas palavras participam ativamente nas mobilizações do "movimento dos movimentos" e nos encontros do Fórum Social Mundial. Se sua influencia é muito significativa no Brasil, onde muitos militantes dos movimentos sociais, tais como sindicatos, MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e movimentos de mulheres provêm de comunidades eclesiais de base (CEBs) conhecidas na Teologia da Libertação, seus escritos também são muito conhecidos entre os cristãos de outros países, tanto da América Latina quando do resto do mundo.
Se houvesse que resumir a idéia central da Teologia da Libertação em uma só frase, seria "opção preferencial pelos pobres".
Qual é a novidade? Por ventura, a Igreja não esteve sempre, caritativamente, atenta ao sofrimento dos pobres? A diferença -capital- é que o cristianismo da libertação já não considera os pobres como simples objetos de ajuda, compaixão ou caridade, mas como protagonistas de sua própria história, artífices de sua própria libertação. O papel dos cristãos comprometidos socialmente é participar na "longa marcha" dos pobres rumo à "terra prometida" -a liberdade-, contribuindo para sua organização e emancipação sociais.
O conceito de "pobre" tem, obviamente, um profundo alcance religioso no cristianismo; porém, corresponde também a uma realidade social essencial no Brasil e na América Latina: a existência de uma imensa massa de despossuídos, tanto nas cidades quanto no campo, que não são todos proletários ou trabalhadores. Alguns sindicalistas cristãos latino-americanos falam de "pobretariado" para descrever essa classe de deserdados que não somente são vítimas da exploração, mas, sobretudo, são vítimas da exclusão social pura e simples.
O processo de radicalização das culturas católicas do Brasil e América Latina que desembocou na criação da Teologia da Libertação não vai desde a cúpula da Igreja para irrigar sua base, nem a base popular vai à cúpula (duas versões que se encontram nos discursos dos sociólogos ou historiadores do fenômeno); mas da periferia rumo ao centro. As categorias ou setores sociais do âmbito religioso que serão o motor da renovação são todos, de alguma forma, marginais ou periféricos com relação à instituição: movimentos, leigos da Igreja e seus capelães; expertos leigos, sacerdotes estrangeiros, ordens religiosas. Em alguns casos, o movimento alcança o "centro" e consegue influir nas Conferências Episcopais (particularmente no Brasil), em outros casos fica bloqueado nas "margens" da instituição.
A pesar de que existem divergências significativas entre os teólogos da libertação, na maioria de seus escritos encontramos repetidos os temas fundamentais que constituem uma saída radical da doutrina tradicional e estabelecida das Igrejas Católica e Protestante:
-Uma implacável acusação moral e social contra o capitalismo como sistema injusto e iníquo, como forma de pecado estrutural.
-O uso do instrumento marxista para compreender as causas da pobreza, as contradições do capitalismo e as formas da luta de classes.
-A opção preferencial a favor dos pobres e a solidariedade com sua luta de emancipação social.
-O desenvolvimento de comunidades cristãs de base entre os pobres como a nova forma da Igreja e como alternativa ao modo de vida individualista imposto pelo sistema capitalista.
-A luta contra a idolatria (não o ateísmo) como inimigo principal da religião, isto é, contra os novos ídolos da morte, adorados pelos novos faraós, pelos novos Césares e pelos novos Herodes: O consumismo, a riqueza, o poder, a segurança nacional, o Estado, os exércitos; em poucas palavras, "a civilização cristã ocidental".
Examinemos mais de perto os escritos de Leonardo Boff e de Frei Betto, cujas idéias contribuíram, sem dúvida, à formação da cultura político-religiosa do componente cristão do altermundismo.
O livro de Leonardo Boff -na época, membro da ordem franciscana,- Jesus Cristo libertador, (Petrópolis, Vozes, 1971), pode ser considerado como a primeira obra da Teologia da Libertação no Brasil. Essencialmente, trata-se de uma obra de exegese bíblica; porém um dos capítulos, possivelmente o mais inovador, intitulado "Cristologia desde América Latina", expressa o desejo de que a Igreja possa "participar de maneira crítica no arrranque global de libertação que a sociedade sul-americana conhece hoje". Segundo Boff, a hermenêutica bíblica de seu livro está inspirada pela realidade latino-americana, o que dá como resultado "a primazia do elemento antropológico sobre o eclesiástico, do utópico sobre o efetivo, do crítico sobre o dogmático, do social sobre o pessoal e da ortopráxis sobre a ortodoxia"; aqui se anunciam alguns dos temas fundamentais da Teologia da Libertação [1].
Personagem carismático, com uma cultura e uma criatividade enormes, ao mesmo tempo místico franciscano e combatente social, Boff converteu-se no principal representante brasileiro dessa nova corrente teológica. Em seu primeiro livro já encontramos referencias ao "Princípio Esperança", de Ernst Bloch, porém, progressivamente, no curso dos anos 70, os conceitos e temas marxistas cada vez mais aparecem em sua obra até converter-se em um dos componentes fundamentais de sua reflexão sobre as causas da pobreza e a prática da solidariedade com a luta dos pobres por sua libertação.
Rechaçando o argumento conservador que pretende julgar o marxismo pelas práticas históricas do chamado "socialismo real", Boff constata, não sem ironia, que o mesmo que o Cristianismo não se identifica com os mecanismos da Santa Inquisição, o marxismo não tem porque se equiparar aos "socialismos" existentes, que "não representam uma alternativa desejável por conta de sua tirania burocrática e pelo sufocamento das liberdades individuais". O ideal socialista pode e deve assumir outras formas históricas [2]
Em 1981, Leonardo Boff publica o livro "Igreja, Carisma e Poder", uma reviravolta na história da Teologia da Libertação: por primeira vez desde a Reforma protestante, um sacerdote católico coloca em xeque, de maneira direta, a autoridade hierárquica da Igreja, seu estilo de poder romano-imperial, sua tradição de intolerância e dogmatismo -simbolizada durante vários séculos pela Inquisição, pela repressão de toda crítica vinda de baixo e o rechaço da liberdade de pensamento. Denuncia também a pretensão de infalibilidade da Igreja e o poder pessoal excessivo dos papas, que compara, não sem ironia, com o poder do secretário geral do Partido Comunista soviético.
Convocado pelo Vaticano em 1984 para um "colóquio" com a Santa Congregação para a Doutrina da Fé (antes, o Santo Ofício), dirigida pelo Cardenal Ratzinger, o teólogo brasileiro não abaixa a cabeça, nem nega retratar-se; permanece fiel a suas convicções e Roma o condena a um ano de "silencio obsequioso"; finalmente, frente à multiplicação dos protestos no Brasil e em outros lugares, a sansão foi reduzida em vários meses. Dez anos mais tarde, cansado do hostigamento, das proibições e das exclusões de Roma, Boff abandona a ordem dos franciscanos e a Igreja, sem, no entanto, abandonar sua atividade de teólogo católico.
A partir dos anos 90, interessa-se cada vez mais pelas questões ecológicas que aborda com o espírito de amor místico e franciscano pela natureza e com uma perspectiva de crítica radical do sistema capitalista. Será o objeto do livro Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, (S. Paulo, Ática, 1995) e escreve inúmeros ensaios filosóficos, éticos e teológicos que abordam esta problemática. Segundo Leonardo Boff, o encontro entre a Teologia da Libertação e a ecologia é resultado de uma constatação: "A mesma lógica do sistema dominante de acumulação e da organização social que conduz à exploração dos trabalhadores, leva também à pilhagem de nações inteiras, e, finalmente, à degradação da natureza".
Portanto, a Teologia da Libertação aspira a uma ruptura com a lógica desse sistema, uma ruptura radical que aponta a "libertar os pobres, os oprimidos e os excluídos, as vítimas da voracidade da acumulação injustamente distribuída e libertar a Terra, essa grande vítima sacrificada pela pilhagem sistemática de seus recursos, que põe em risco o equilíbrio físico, químico e biológico do planeta como um todo". O paradigma opressão / libertação aplica-se, pois, para ambas: as classes dominadas e exploradas por um lado; e a Terra e suas espécies vivas, por outro [3].
Amigo próximo de Leonardo Boff (publicaram alguns livros juntos), Frei Betto é, sem dúvida, um dos mais importantes teólogos da libertação do Brasil e da América Latina e um dos principais animadores das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica (JEC) no início dos anos 60, Carlos Alberto Libânio Christo (seu nome verdadeiro) começou sua educação espiritual e política com Santiago Maritain, Emmanuel Mounier, o padre Lebret e o grande intelectual católico brasileiro Alceu Amoroso Lima, porém, durante sua atividade militante na União Nacional dos Estudantes (UNE), descobriu O Manifesto Comunista e A Ideologia Alemã. Quando entrou como noviço na ordem dos dominicanos, em 1965, naquela época um dos principias focos de elaboração de uma interpretação liberacionista do cristianismo, já havia tomado firmemente a resolução de consagrar-se à luta da revolução brasileira [4].
Impressionado com a pobreza do mundo e pela ditadura militar estabelecida em 1964, incorpora-se a uma rede de dominicanos que simpatizam ativamente com a resistência armada contra o regime. Quando a repressão se intensificou, em 1969, socorreu a inúmeros revolucionários, ajudando-os a esconder-se ou a cruzar a fronteira para o Uruguai ou para a Argentina. Essa atividade custou-lhe cinco anos de prisão, de 1969 a 1973.
Em um livro fascinante publicado no Brasil e reeditado mais de dez vezes, Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella (Río de Janeiro, Ed. Bertrand, 1987), traça o retrato do dirigente do principal grupo revolucionário armado, assassinado pela polícia em 1969, bem como o de seus amigos dominicanos presos nas rodas da repressão e destroçados pela tortura. O último capítulo está consagrado à trágica figura de Frei Tito de Alencar, tão cruelmente torturado pela polícia brasileira que jamais recobrou seu equilíbrio psíquico: libertado da prisão e exilado na França, sofreu uma aguda mania de perseguição e cometeu suicídio em 1974.
As Cartas da Prisão de Betto, publicadas em 1977, mostram seu interesse pelo pensamento de Marx, a quem designava, para burlar a censura política, "o filósofo alemão". Em uma carta de outubro de 1971 a uma amiga, abadesa beneditina, observava: "a teoria econômico-social do filósofo alemão não teria existido sem as escandalosas contradições sociais provocadas pelo liberalismo econômico, que o conduziram a percebê-las, analisá-las e estabelecer princípios capazes de sobrepô-los" [5].
Depois de sua libertação da prisão, em 1973, Frei Betto consagrou-se à organização das comunidades de base. Durante os anos seguintes publicou vários folhetos que, em linguagem simples e inteligível, explicavam o sentido da Teologia da Libertação e o papel das CEBs. Logo, converteu-se em um dos principais dirigentes dos encontros intereclesiais nacionais, onde as CEBs de todas as regiões do Brasil intercambiam suas experiências sociais, políticas e religiosas. Em 1980 organizou o 4º Congresso internacional dos Teólogos do Terceiro Mundo.
Desde 1979 Betto é responsável pela Pastoral Operária de São Bernardo do Campo, cidade industrial do subúrbio de São Paulo, onde nasceu o novo sindicalismo brasileiro. Sem vincular-se a nenhuma organização política, não escondia suas simpatias pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Após a vitória eleitoral do candidato do PT, Luis Inácio Lula da Silva, em 2001, foi designado pelo novo presidente para dirigir o Programa "Fome Zero"; no entanto, descontente com a orientação econômica do governo, prisioneiro dos paradigmas neoliberais, demitiu-se de seu posto dois anos depois.
Enquanto alguns teólogos tentam reduzir o marxismo a uma "mediação sócio-analítica", Betto defende, em seu ensaio de 1986, Cristianismo e Marxismo, uma interpretação muito mais ampla da teoria marxista que inclui a ética e a utopia: "o marxismo é, sobretudo, uma teoria da práxis revolucionária (...). A prática revolucionária sobrepõe-se ao conceito e não se esgota na análise estritamente científica porque, necessariamente, inclui dimensões éticas, místicas e utópicas (...). Sem essa relação dialética teoria-práxis, o marxismo se esclerosa e se transforma em ortodoxia acadêmica perigosamente manipulável pelos que controlam os mecanismos do poder". Esta última frase é, sem dúvida, uma referencia crítica a URSS e aos países do socialismo real que constituem, em sua maneira de ver, uma experiência deformada por sua "ótica objetivista", sua "tendência economicista" e, sobretudo, por sua "metafísica do Estado".
Betto e Boff, como a imensa maioria dos teólogos da libertação, não aceitam a redução, tipicamente liberal, da religião a um "assunto privado" do indivíduo. Para eles, a religião é um assunto eminentemente público, social e político. Essa atitude não é necessariamente uma oposição à laicidade; de fato, o cristianismo da libertação situa-se nas antípodas do conservadorismo clerical:
-Predicando a separação total entre a Igreja e o Estado e a ruptura da cumplicidade tradicional entre o clero e os poderosos.
-Negando a idéia de um partido ou um sindicato católico e reconhecendo a necessária autonomia dos movimentos políticos e sociais populares.
-Rechaçando toda idéia de regresso ao "catolicismo político" pré-crítico e sua ilusão de uma "nova cristandade".
-Favorecendo a participação dos cristãos nos movimentos ou partidos populares seculares.
Para a Teologia da Libertação não existe contradição entre essa exigência de democracia moderna e secular e o compromisso dos cristãos no âmbito político. Trata-se de dois enfoques diferentes da relação entre religião e política: desde o ponto de vista institucional é imprescindível que prevaleça a separação e a autonomia; porém, no âmbito ético-político o imperativo essencial é o compromisso.
Levando em consideração essa orientação eminentemente prática e combativa, não é de se estranhar que muitos dos dirigentes e ativistas dos movimentos sociais mais importantes dos últimos anos -desde 1990-, fossem formados na América Latina segundo as idéias da Teologia da libertação. Podemos dar como exemplo o MST, um dos movimentos mais impressionantes da história contemporânea do Brasil, por sua capacidade de mobilização, seu radicalismo, sua influência política e sua popularidade (além de ser uma das principais forças da organização do Fórum Social Mundial). A imensa maioria dos dirigentes ou ativistas do MST procedem das CEBs ou da Pastoral da Terra: sua formação religiosa, moral, social e, em certa medida, política, efetuou-se nas filas da "Igreja dos pobres". No entanto, desde sua origem, nos anos 70, o MST optou por ser um movimento leigo, secular e autônomo e independente com relação á Igreja. A imensa maioria de seus militantes é católica; porém, também há evangélicos e não crentes (poucos). A doutrina (socialista!) e a cultura do MST não fazem referência ao cristianismo; porém, podemos dizer que o estilo de militância, a fé na causa e a disposição ao sacrifício de seus membros, muitos têm sido vítimas de assassinatos e até de matanças coletivas durante os últimos anos, têm, provavelmente, fontes religiosas.
As correntes e os militantes cristãos que participam no movimento altermundista são muito diversos -ONGs, militantes dos sindicatos e partidos de esquerda, estruturas próximas à Igreja- e não partilham das mesmas escolhas políticas. Porém, a imensa maioria se reconhece nas grandes linhas da Teologia da Libertação, tal como a formularam Leonardo Boff, Frei Betto, Clodovis Boff, Hugo Assmann, Dom Tomás Balduino, Dom Helder Camara, Dom Pedro Casaldáliga, e tantos outros conhecidos e menos conhecidos, e partilham sua crítica ética e social do capitalismo e seu compromisso pela libertação dos pobres.
Michael Löwy
Os cristãos comprometidos socialmente são um dos componentes mais ativos e importantes do movimento altermundista; particularmente, porém não somente na América Latina e especialmente no Brasil, país que acolheu as primeiras reuniões do Fórum Social Mundial (FSM). Um dos iniciadores do FSM, Chico Whitaker, membro da "Comissão Justiça e Paz" da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pertence a esta esfera de influência, o mesmo que o sacerdote belga François Houtart, amigo e professor de Camilo Torres, promotor da revista Alternatives Sud, fundador do "Centro Tricontinental" (CETRI) e uma das figuras intelectuais mais influentes do Fórum.
Podemos datar o nascimento dessa corrente, que poderíamos denominar como "cristianismo da libertação" no começo dos anos 60, quando a Juventude Universitária Católica brasileira (JUC), alimentada pela cultura católica francesa progressista (Emmanuel Mounier e a revista Esprit, o padre Lebret e o movimento "Economia y Humanismo", o Karl Marx do jesuíta J.Y. Calvez), formula por primeira vez, em nome do cristianismo, uma proposta radical de transformação social. Esse movimento se estende depois a outros países do continente e encontra, a partir dos anos 70, uma expressão cultural, política e espiritual na "Teologia da Libertação".
Os dois principias teólogos da libertação brasileiros, Leonardo Boff e Frei Betto, estão, portanto, entre os precursores e inspiradores do altermundismo; com seus escritos e suas palavras participam ativamente nas mobilizações do "movimento dos movimentos" e nos encontros do Fórum Social Mundial. Se sua influencia é muito significativa no Brasil, onde muitos militantes dos movimentos sociais, tais como sindicatos, MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e movimentos de mulheres provêm de comunidades eclesiais de base (CEBs) conhecidas na Teologia da Libertação, seus escritos também são muito conhecidos entre os cristãos de outros países, tanto da América Latina quando do resto do mundo.
Se houvesse que resumir a idéia central da Teologia da Libertação em uma só frase, seria "opção preferencial pelos pobres".
Qual é a novidade? Por ventura, a Igreja não esteve sempre, caritativamente, atenta ao sofrimento dos pobres? A diferença -capital- é que o cristianismo da libertação já não considera os pobres como simples objetos de ajuda, compaixão ou caridade, mas como protagonistas de sua própria história, artífices de sua própria libertação. O papel dos cristãos comprometidos socialmente é participar na "longa marcha" dos pobres rumo à "terra prometida" -a liberdade-, contribuindo para sua organização e emancipação sociais.
O conceito de "pobre" tem, obviamente, um profundo alcance religioso no cristianismo; porém, corresponde também a uma realidade social essencial no Brasil e na América Latina: a existência de uma imensa massa de despossuídos, tanto nas cidades quanto no campo, que não são todos proletários ou trabalhadores. Alguns sindicalistas cristãos latino-americanos falam de "pobretariado" para descrever essa classe de deserdados que não somente são vítimas da exploração, mas, sobretudo, são vítimas da exclusão social pura e simples.
O processo de radicalização das culturas católicas do Brasil e América Latina que desembocou na criação da Teologia da Libertação não vai desde a cúpula da Igreja para irrigar sua base, nem a base popular vai à cúpula (duas versões que se encontram nos discursos dos sociólogos ou historiadores do fenômeno); mas da periferia rumo ao centro. As categorias ou setores sociais do âmbito religioso que serão o motor da renovação são todos, de alguma forma, marginais ou periféricos com relação à instituição: movimentos, leigos da Igreja e seus capelães; expertos leigos, sacerdotes estrangeiros, ordens religiosas. Em alguns casos, o movimento alcança o "centro" e consegue influir nas Conferências Episcopais (particularmente no Brasil), em outros casos fica bloqueado nas "margens" da instituição.
A pesar de que existem divergências significativas entre os teólogos da libertação, na maioria de seus escritos encontramos repetidos os temas fundamentais que constituem uma saída radical da doutrina tradicional e estabelecida das Igrejas Católica e Protestante:
-Uma implacável acusação moral e social contra o capitalismo como sistema injusto e iníquo, como forma de pecado estrutural.
-O uso do instrumento marxista para compreender as causas da pobreza, as contradições do capitalismo e as formas da luta de classes.
-A opção preferencial a favor dos pobres e a solidariedade com sua luta de emancipação social.
-O desenvolvimento de comunidades cristãs de base entre os pobres como a nova forma da Igreja e como alternativa ao modo de vida individualista imposto pelo sistema capitalista.
-A luta contra a idolatria (não o ateísmo) como inimigo principal da religião, isto é, contra os novos ídolos da morte, adorados pelos novos faraós, pelos novos Césares e pelos novos Herodes: O consumismo, a riqueza, o poder, a segurança nacional, o Estado, os exércitos; em poucas palavras, "a civilização cristã ocidental".
Examinemos mais de perto os escritos de Leonardo Boff e de Frei Betto, cujas idéias contribuíram, sem dúvida, à formação da cultura político-religiosa do componente cristão do altermundismo.
O livro de Leonardo Boff -na época, membro da ordem franciscana,- Jesus Cristo libertador, (Petrópolis, Vozes, 1971), pode ser considerado como a primeira obra da Teologia da Libertação no Brasil. Essencialmente, trata-se de uma obra de exegese bíblica; porém um dos capítulos, possivelmente o mais inovador, intitulado "Cristologia desde América Latina", expressa o desejo de que a Igreja possa "participar de maneira crítica no arrranque global de libertação que a sociedade sul-americana conhece hoje". Segundo Boff, a hermenêutica bíblica de seu livro está inspirada pela realidade latino-americana, o que dá como resultado "a primazia do elemento antropológico sobre o eclesiástico, do utópico sobre o efetivo, do crítico sobre o dogmático, do social sobre o pessoal e da ortopráxis sobre a ortodoxia"; aqui se anunciam alguns dos temas fundamentais da Teologia da Libertação [1].
Personagem carismático, com uma cultura e uma criatividade enormes, ao mesmo tempo místico franciscano e combatente social, Boff converteu-se no principal representante brasileiro dessa nova corrente teológica. Em seu primeiro livro já encontramos referencias ao "Princípio Esperança", de Ernst Bloch, porém, progressivamente, no curso dos anos 70, os conceitos e temas marxistas cada vez mais aparecem em sua obra até converter-se em um dos componentes fundamentais de sua reflexão sobre as causas da pobreza e a prática da solidariedade com a luta dos pobres por sua libertação.
Rechaçando o argumento conservador que pretende julgar o marxismo pelas práticas históricas do chamado "socialismo real", Boff constata, não sem ironia, que o mesmo que o Cristianismo não se identifica com os mecanismos da Santa Inquisição, o marxismo não tem porque se equiparar aos "socialismos" existentes, que "não representam uma alternativa desejável por conta de sua tirania burocrática e pelo sufocamento das liberdades individuais". O ideal socialista pode e deve assumir outras formas históricas [2]
Em 1981, Leonardo Boff publica o livro "Igreja, Carisma e Poder", uma reviravolta na história da Teologia da Libertação: por primeira vez desde a Reforma protestante, um sacerdote católico coloca em xeque, de maneira direta, a autoridade hierárquica da Igreja, seu estilo de poder romano-imperial, sua tradição de intolerância e dogmatismo -simbolizada durante vários séculos pela Inquisição, pela repressão de toda crítica vinda de baixo e o rechaço da liberdade de pensamento. Denuncia também a pretensão de infalibilidade da Igreja e o poder pessoal excessivo dos papas, que compara, não sem ironia, com o poder do secretário geral do Partido Comunista soviético.
Convocado pelo Vaticano em 1984 para um "colóquio" com a Santa Congregação para a Doutrina da Fé (antes, o Santo Ofício), dirigida pelo Cardenal Ratzinger, o teólogo brasileiro não abaixa a cabeça, nem nega retratar-se; permanece fiel a suas convicções e Roma o condena a um ano de "silencio obsequioso"; finalmente, frente à multiplicação dos protestos no Brasil e em outros lugares, a sansão foi reduzida em vários meses. Dez anos mais tarde, cansado do hostigamento, das proibições e das exclusões de Roma, Boff abandona a ordem dos franciscanos e a Igreja, sem, no entanto, abandonar sua atividade de teólogo católico.
A partir dos anos 90, interessa-se cada vez mais pelas questões ecológicas que aborda com o espírito de amor místico e franciscano pela natureza e com uma perspectiva de crítica radical do sistema capitalista. Será o objeto do livro Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, (S. Paulo, Ática, 1995) e escreve inúmeros ensaios filosóficos, éticos e teológicos que abordam esta problemática. Segundo Leonardo Boff, o encontro entre a Teologia da Libertação e a ecologia é resultado de uma constatação: "A mesma lógica do sistema dominante de acumulação e da organização social que conduz à exploração dos trabalhadores, leva também à pilhagem de nações inteiras, e, finalmente, à degradação da natureza".
Portanto, a Teologia da Libertação aspira a uma ruptura com a lógica desse sistema, uma ruptura radical que aponta a "libertar os pobres, os oprimidos e os excluídos, as vítimas da voracidade da acumulação injustamente distribuída e libertar a Terra, essa grande vítima sacrificada pela pilhagem sistemática de seus recursos, que põe em risco o equilíbrio físico, químico e biológico do planeta como um todo". O paradigma opressão / libertação aplica-se, pois, para ambas: as classes dominadas e exploradas por um lado; e a Terra e suas espécies vivas, por outro [3].
Amigo próximo de Leonardo Boff (publicaram alguns livros juntos), Frei Betto é, sem dúvida, um dos mais importantes teólogos da libertação do Brasil e da América Latina e um dos principais animadores das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica (JEC) no início dos anos 60, Carlos Alberto Libânio Christo (seu nome verdadeiro) começou sua educação espiritual e política com Santiago Maritain, Emmanuel Mounier, o padre Lebret e o grande intelectual católico brasileiro Alceu Amoroso Lima, porém, durante sua atividade militante na União Nacional dos Estudantes (UNE), descobriu O Manifesto Comunista e A Ideologia Alemã. Quando entrou como noviço na ordem dos dominicanos, em 1965, naquela época um dos principias focos de elaboração de uma interpretação liberacionista do cristianismo, já havia tomado firmemente a resolução de consagrar-se à luta da revolução brasileira [4].
Impressionado com a pobreza do mundo e pela ditadura militar estabelecida em 1964, incorpora-se a uma rede de dominicanos que simpatizam ativamente com a resistência armada contra o regime. Quando a repressão se intensificou, em 1969, socorreu a inúmeros revolucionários, ajudando-os a esconder-se ou a cruzar a fronteira para o Uruguai ou para a Argentina. Essa atividade custou-lhe cinco anos de prisão, de 1969 a 1973.
Em um livro fascinante publicado no Brasil e reeditado mais de dez vezes, Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella (Río de Janeiro, Ed. Bertrand, 1987), traça o retrato do dirigente do principal grupo revolucionário armado, assassinado pela polícia em 1969, bem como o de seus amigos dominicanos presos nas rodas da repressão e destroçados pela tortura. O último capítulo está consagrado à trágica figura de Frei Tito de Alencar, tão cruelmente torturado pela polícia brasileira que jamais recobrou seu equilíbrio psíquico: libertado da prisão e exilado na França, sofreu uma aguda mania de perseguição e cometeu suicídio em 1974.
As Cartas da Prisão de Betto, publicadas em 1977, mostram seu interesse pelo pensamento de Marx, a quem designava, para burlar a censura política, "o filósofo alemão". Em uma carta de outubro de 1971 a uma amiga, abadesa beneditina, observava: "a teoria econômico-social do filósofo alemão não teria existido sem as escandalosas contradições sociais provocadas pelo liberalismo econômico, que o conduziram a percebê-las, analisá-las e estabelecer princípios capazes de sobrepô-los" [5].
Depois de sua libertação da prisão, em 1973, Frei Betto consagrou-se à organização das comunidades de base. Durante os anos seguintes publicou vários folhetos que, em linguagem simples e inteligível, explicavam o sentido da Teologia da Libertação e o papel das CEBs. Logo, converteu-se em um dos principais dirigentes dos encontros intereclesiais nacionais, onde as CEBs de todas as regiões do Brasil intercambiam suas experiências sociais, políticas e religiosas. Em 1980 organizou o 4º Congresso internacional dos Teólogos do Terceiro Mundo.
Desde 1979 Betto é responsável pela Pastoral Operária de São Bernardo do Campo, cidade industrial do subúrbio de São Paulo, onde nasceu o novo sindicalismo brasileiro. Sem vincular-se a nenhuma organização política, não escondia suas simpatias pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Após a vitória eleitoral do candidato do PT, Luis Inácio Lula da Silva, em 2001, foi designado pelo novo presidente para dirigir o Programa "Fome Zero"; no entanto, descontente com a orientação econômica do governo, prisioneiro dos paradigmas neoliberais, demitiu-se de seu posto dois anos depois.
Enquanto alguns teólogos tentam reduzir o marxismo a uma "mediação sócio-analítica", Betto defende, em seu ensaio de 1986, Cristianismo e Marxismo, uma interpretação muito mais ampla da teoria marxista que inclui a ética e a utopia: "o marxismo é, sobretudo, uma teoria da práxis revolucionária (...). A prática revolucionária sobrepõe-se ao conceito e não se esgota na análise estritamente científica porque, necessariamente, inclui dimensões éticas, místicas e utópicas (...). Sem essa relação dialética teoria-práxis, o marxismo se esclerosa e se transforma em ortodoxia acadêmica perigosamente manipulável pelos que controlam os mecanismos do poder". Esta última frase é, sem dúvida, uma referencia crítica a URSS e aos países do socialismo real que constituem, em sua maneira de ver, uma experiência deformada por sua "ótica objetivista", sua "tendência economicista" e, sobretudo, por sua "metafísica do Estado".
Betto e Boff, como a imensa maioria dos teólogos da libertação, não aceitam a redução, tipicamente liberal, da religião a um "assunto privado" do indivíduo. Para eles, a religião é um assunto eminentemente público, social e político. Essa atitude não é necessariamente uma oposição à laicidade; de fato, o cristianismo da libertação situa-se nas antípodas do conservadorismo clerical:
-Predicando a separação total entre a Igreja e o Estado e a ruptura da cumplicidade tradicional entre o clero e os poderosos.
-Negando a idéia de um partido ou um sindicato católico e reconhecendo a necessária autonomia dos movimentos políticos e sociais populares.
-Rechaçando toda idéia de regresso ao "catolicismo político" pré-crítico e sua ilusão de uma "nova cristandade".
-Favorecendo a participação dos cristãos nos movimentos ou partidos populares seculares.
Para a Teologia da Libertação não existe contradição entre essa exigência de democracia moderna e secular e o compromisso dos cristãos no âmbito político. Trata-se de dois enfoques diferentes da relação entre religião e política: desde o ponto de vista institucional é imprescindível que prevaleça a separação e a autonomia; porém, no âmbito ético-político o imperativo essencial é o compromisso.
Levando em consideração essa orientação eminentemente prática e combativa, não é de se estranhar que muitos dos dirigentes e ativistas dos movimentos sociais mais importantes dos últimos anos -desde 1990-, fossem formados na América Latina segundo as idéias da Teologia da libertação. Podemos dar como exemplo o MST, um dos movimentos mais impressionantes da história contemporânea do Brasil, por sua capacidade de mobilização, seu radicalismo, sua influência política e sua popularidade (além de ser uma das principais forças da organização do Fórum Social Mundial). A imensa maioria dos dirigentes ou ativistas do MST procedem das CEBs ou da Pastoral da Terra: sua formação religiosa, moral, social e, em certa medida, política, efetuou-se nas filas da "Igreja dos pobres". No entanto, desde sua origem, nos anos 70, o MST optou por ser um movimento leigo, secular e autônomo e independente com relação á Igreja. A imensa maioria de seus militantes é católica; porém, também há evangélicos e não crentes (poucos). A doutrina (socialista!) e a cultura do MST não fazem referência ao cristianismo; porém, podemos dizer que o estilo de militância, a fé na causa e a disposição ao sacrifício de seus membros, muitos têm sido vítimas de assassinatos e até de matanças coletivas durante os últimos anos, têm, provavelmente, fontes religiosas.
As correntes e os militantes cristãos que participam no movimento altermundista são muito diversos -ONGs, militantes dos sindicatos e partidos de esquerda, estruturas próximas à Igreja- e não partilham das mesmas escolhas políticas. Porém, a imensa maioria se reconhece nas grandes linhas da Teologia da Libertação, tal como a formularam Leonardo Boff, Frei Betto, Clodovis Boff, Hugo Assmann, Dom Tomás Balduino, Dom Helder Camara, Dom Pedro Casaldáliga, e tantos outros conhecidos e menos conhecidos, e partilham sua crítica ética e social do capitalismo e seu compromisso pela libertação dos pobres.
Missa de Cura e Libertação???
Postado por Attman e Kamadon
Pe. José Ionilton Lisboa de Oliveira, SDV
Esta pergunta tem me levado a refletir muito nos últimos tempos. Por isto resolvi colocar por escrito o que penso sobre o tema, a fim de provocar uma conversa e ajudar no encaminhamento de tomada de posição da Igreja no Brasil.
Tenho afirmado a quem me fala destas "missas de cura e de libertação" que elas não existem, pois na verdade toda missa, toda Eucaristia é curadora, é libertadora, afinal de contas Jesus, o Libertador, está presente, vivo, ressuscitado em todas as celebrações da Eucaristia, onde quer que ela seja celebrada, debaixo de uma árvore, numa simples capela em uma favela ou na Catedral de São Pedro em Roma. Nem tão pouco Jesus se faz mais presente e cura, liberta, de modo especial quando o presidente da celebração é este ou aquele padre. Todos os padres são iguais no "produzir" sacramentalmente o Cristo presente na Eucaristia. Aprendi da Igreja, quando estudei Teologia, que não existe diferença entre uma Eucaristia e outra. Será que a doutrina da Igreja sobre a Eucaristia mudou e eu não me atualizei? Creio que não mudou! Sendo assim, afirmo com muita convicção que padres que celebram e promovem as "missas de cura e libertação", não estão, infelizmente, agindo biblicamente, teologicamente, eclesialmente e liturgicamente corretos.
Os textos bíblicos que falam da instituição da Eucaristia não falam de que uma Eucaristia seria de cura e libertação e outra não. Simplesmente Jesus disse: "Tomem e comam, isto é o meu corpo. Bebam dele todos, pois isto é o meu sangue" (Mt 26, 26-28). Jesus não fez distinção de quem estaria presidindo a celebração da Eucaristia e Jesus não falou de que a Eucaristia iria ser celebrada em algum lugar especial para curar as pessoas. Jesus apenas disse: "Façam isto em memória de mim" (Lc 22, 19). Então, por que alguns padres e bispos inventaram a "missa de cura e libertação"?
Isto na verdade não existe, podemos afirmar que se trata de uma forma de exploração da fé do povo, especialmente dos que sofrem. Faz-me lembrar o episódio do Templo de Jerusalém: Jesus fazendo um chicote e expulsando os vendilhões (cf. Jo 2,14-17). Jesus disse: "Tirem isto daqui!" (v. 16). Podemos imaginar Jesus dizendo a quem anda usando a Eucaristia para promover as "missas de cura e libertação": "Parem de enganar o povo!" E tome chicote!
O Concílio Vaticano II assim nos fala sobre a Eucaristia: "O nosso Salvador instituiu na última ceia, na noite em que foi entregue, o sacrifício eucarístico do seu corpo e do seu sangue para perpetuar no decorrer dos séculos, até ele voltar, o sacrifício da cruz, e para confiar assim à Igreja, sua esposa amada, o memorial da sua morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da glória futura" (Sacrosanctum Concilium, 47). O Concílio fala de que a Eucaristia perpetua o sacrifício da cruz, portanto, da doação da vida de Jesus por nós. E não fala de celebração onde curas irão ocorrer. O Concílio fala, também, da Eucaristia como sinal de unidade, o que entra em contradição com o que vem se propagando de que Jesus vem curar e libertar em algumas missas e em outras não, rompendo assim com a unidade e universalidade da presença de Cristo na Igreja, onde quer que ela esteja. Estas "missas de cura e libertação" criam divisão entre nós: uns padres são privilegiados por Cristo, com curas nas missas e outros padres são menosprezados, já que em suas missas Cristo não cura. Eu fico com a doutrina do Concílio Vaticano II e não com a invencionice de alguns irmãos presbíteros.
O Direito Canônico quando legisla sobre a Eucaristia não fala de "missa de cura e libertação" e nem de diferença entre um lugar e outro e nem fala da existência de graduação entre os presbíteros que presidem a Eucaristia, onde Jesus estaria curando em algumas celebrações da Eucaristia e em outras não (cf. Cânones 897 a 958). Assim está escrito no Cânon 899: "A celebração eucarística é a ação do próprio Cristo e da Igreja, na qual, pelo ministério do sacerdote, o Cristo Senhor, presente sob as espécies de pão e vinho, se oferece a Deus Pai e se dá como alimento espiritual aos fiéis unidos à sua oblação". Quero ressaltar a afirmativa "ação do próprio Cristo". Seja onde for e seja quem for o presidente, a celebração da Eucaristia é "ação do próprio Cristo". Se é assim, porque uma missa será de "cura e libertação" e outra não? Haverá dois Cristos? Um que cura e outro não? Outra afirmativa do Cânon 899 é que o Cristo "se oferece a Deus Pai e se dá como alimento espiritual aos fiéis". O Cânon não fala de que quem frequenta uma "missa de cura e libertação" receberá uma graça especial de Cristo. O Cânon fala de "alimento espiritual aos fiéis". "Alimento" e não cura. "Aos fiéis" e não para alguns fiéis privilegiados que frequentam uma "missa de cura e libertação". "Aos fiéis", significa dizer todos os fiéis. Lembro-me aqui das palavras de Pedro: "Estou compreendendo que Deus não faz diferença entre as pessoas" (At 10, 34). Se Deus não faz, somos nós a Igreja, ou melhor, alguns padres que vão fazer? Falar de que Jesus cura em uma determinada missa e em outra não, não é fazer diferença entre as pessoas? Eu prefiro ficar com Pedro: "Estou compreendendo que Deus não faz diferença entre as pessoas".
Curar é ação divina. Deus cura sempre. Cura ordinariamente pelo uso da medicina e cura extraordinariamente, no que chamamos de milagre. O milagre vem da fé da pessoa e do poder e do querer de Deus, assim nos ensina Jesus: "Vocês acreditam que eu possa fazer isso? Eles responderam: ‘Sim, Senhor’. Então Jesus tocou os olhos deles, dizendo: ‘Que aconteça conforme vocês acreditaram’ E os olhos deles se abriram" (Mt 9, 28-29). Outro texto: "Jesus ficou admirado e disse aos que o seguiam: ‘Eu garanto a vocês: nunca encontrei uma fé igual a essa em ninguém de Israel!’. (...) Então Jesus disse ao oficial: ‘Vá, e seja feito conforme você acreditou’" (Mt 8, 10.13). Poderíamos citar tantas outras passagens dos evangelhos, mas estas duas citações bastam para confirmar que o milagre depende tão somente da fé da pessoa que pede a graça especial e de Deus que aceita realizar o que a pessoa crente pede, independente do lugar e de ter ou não algum intermediário. Creio que seja uma ofensa a Deus, é usar o nome d’Ele em vão (cf. Ex 20, 7), determinar que um milagre somente acontece se a pessoa for participar de uma "missa de cura e libertação", celebrada em um determinado lugar e por um determinado presbítero.
Chego mesmo a pensar que este tipo de celebração é uma forma de mentir e enganar o povo, transferindo para o nível do milagre, aquilo que deveria ser conquista da cidadania, tornando-se uma fuga do compromisso social da fé. Jesus nos ensina: "Vocês é que têm de lhes dar de comer" (Mc 6, 37). Não devemos transferir para Deus o que podemos e devemos fazer. Tiago nos alerta: "Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo" (1, 27). Religião verdadeira é aquela que serve e liberta aos pobres e não aquela que explora e engana aos pobres; religião verdadeira é aquela que se mantém "livre da corrupção do mundo" e não aquela que usa das mesmas artimanhas do mundo para garantir a conquista de mais um fiel para a Igreja. Faz-me lembrar o ensinamento da CNBB nas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2008-2010 no nº 178: "O compromisso social tem sua raiz na própria fé; deve ser manifestado por toda a comunidade cristã, e não apenas por algum grupo ou pastoral social; uma comunidade insensível às necessidades dos irmãos e à luta para vencer as injustiças celebra indignamente a liturgia". Existe algum compromisso social de luta para vencer as injustiças nas celebrações das "missas de cura e libertação"? Se sim, qual, como e onde? Se não, celebra-se "indignamente a liturgia". Palavras da CNBB!
Nas "Orientações pastorais sobre a Renovação Carismática Católica" é dito que se devia evitar "alimentar um clima de exaltação da emoção e do sentimento, que enfatiza apenas a dimensão subjetiva da experiência de fé" (Documentos da CNBB 53, nº 49). E diz também: "A fé não pode ser reduzida a uma busca de satisfação de exigências íntimas e de resposta às necessidades imediatas"(nº 47). Mais uma recomendação: "Ao implorar a cura, nos encontros da RCC ou em outras celebrações, não se adote qualquer atitude que possa resvalar para um espírito milagreiro e mágico, estranho à prática da Igreja Católica" (nº 59). Nas chamadas "missas de cura e libertação" estão acontecendo tudo isto: exaltação da emoção e do sentimento, ênfase na dimensão subjetiva da fé, satisfação de exigências íntimas, respostas às necessidades imediatas, espírito milagreiro e mágico. Tudo que a CNBB recomendou evitar, está acontecendo nas "missas de cura e libertação". E aí? Ninguém vai tomar nenhuma providência? A CNBB vai ficar desmoralizada, vai perder sua força como orientadora da ação evangelizadora na Igreja do Brasil? Cada movimento, cada pastoral, cada presbítero, cada bispo, cada consagrado, cada leigo vai fazer o que quer e como quer? Vamos sepultar de vez as diretrizes e orientações da CNBB?
Recentemente uma Religiosa me dizia que o pároco da cidade onde ela mora, apoiado pelo bispo, resolveu celebrar esta "missa de cura e libertação". Questionado por ela, justificou tal tipo de celebração dizendo que por meio das "missas de cura e libertação" as pessoas, em busca de milagres, viriam à Igreja e poderiam assim ouvir a Palavra de Deus e serem catequizadas. Eu disse à Irmã: será? E repito: será que quem vai a estas "missas de cura e libertação", ouve mesmo aquilo que a Igreja tem a dizer, ou vão apenas porque esperam receber um milagre?
Finalizo perguntando: onde é que estes meus irmãos na fé e no ministério ordenado se fundamentam para celebrar e apoiar estas "missas de cura e libertação" em suas paróquias e dioceses?
Pe. José Ionilton Lisboa de Oliveira, SDV
Esta pergunta tem me levado a refletir muito nos últimos tempos. Por isto resolvi colocar por escrito o que penso sobre o tema, a fim de provocar uma conversa e ajudar no encaminhamento de tomada de posição da Igreja no Brasil.
Tenho afirmado a quem me fala destas "missas de cura e de libertação" que elas não existem, pois na verdade toda missa, toda Eucaristia é curadora, é libertadora, afinal de contas Jesus, o Libertador, está presente, vivo, ressuscitado em todas as celebrações da Eucaristia, onde quer que ela seja celebrada, debaixo de uma árvore, numa simples capela em uma favela ou na Catedral de São Pedro em Roma. Nem tão pouco Jesus se faz mais presente e cura, liberta, de modo especial quando o presidente da celebração é este ou aquele padre. Todos os padres são iguais no "produzir" sacramentalmente o Cristo presente na Eucaristia. Aprendi da Igreja, quando estudei Teologia, que não existe diferença entre uma Eucaristia e outra. Será que a doutrina da Igreja sobre a Eucaristia mudou e eu não me atualizei? Creio que não mudou! Sendo assim, afirmo com muita convicção que padres que celebram e promovem as "missas de cura e libertação", não estão, infelizmente, agindo biblicamente, teologicamente, eclesialmente e liturgicamente corretos.
Os textos bíblicos que falam da instituição da Eucaristia não falam de que uma Eucaristia seria de cura e libertação e outra não. Simplesmente Jesus disse: "Tomem e comam, isto é o meu corpo. Bebam dele todos, pois isto é o meu sangue" (Mt 26, 26-28). Jesus não fez distinção de quem estaria presidindo a celebração da Eucaristia e Jesus não falou de que a Eucaristia iria ser celebrada em algum lugar especial para curar as pessoas. Jesus apenas disse: "Façam isto em memória de mim" (Lc 22, 19). Então, por que alguns padres e bispos inventaram a "missa de cura e libertação"?
Isto na verdade não existe, podemos afirmar que se trata de uma forma de exploração da fé do povo, especialmente dos que sofrem. Faz-me lembrar o episódio do Templo de Jerusalém: Jesus fazendo um chicote e expulsando os vendilhões (cf. Jo 2,14-17). Jesus disse: "Tirem isto daqui!" (v. 16). Podemos imaginar Jesus dizendo a quem anda usando a Eucaristia para promover as "missas de cura e libertação": "Parem de enganar o povo!" E tome chicote!
O Concílio Vaticano II assim nos fala sobre a Eucaristia: "O nosso Salvador instituiu na última ceia, na noite em que foi entregue, o sacrifício eucarístico do seu corpo e do seu sangue para perpetuar no decorrer dos séculos, até ele voltar, o sacrifício da cruz, e para confiar assim à Igreja, sua esposa amada, o memorial da sua morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da glória futura" (Sacrosanctum Concilium, 47). O Concílio fala de que a Eucaristia perpetua o sacrifício da cruz, portanto, da doação da vida de Jesus por nós. E não fala de celebração onde curas irão ocorrer. O Concílio fala, também, da Eucaristia como sinal de unidade, o que entra em contradição com o que vem se propagando de que Jesus vem curar e libertar em algumas missas e em outras não, rompendo assim com a unidade e universalidade da presença de Cristo na Igreja, onde quer que ela esteja. Estas "missas de cura e libertação" criam divisão entre nós: uns padres são privilegiados por Cristo, com curas nas missas e outros padres são menosprezados, já que em suas missas Cristo não cura. Eu fico com a doutrina do Concílio Vaticano II e não com a invencionice de alguns irmãos presbíteros.
O Direito Canônico quando legisla sobre a Eucaristia não fala de "missa de cura e libertação" e nem de diferença entre um lugar e outro e nem fala da existência de graduação entre os presbíteros que presidem a Eucaristia, onde Jesus estaria curando em algumas celebrações da Eucaristia e em outras não (cf. Cânones 897 a 958). Assim está escrito no Cânon 899: "A celebração eucarística é a ação do próprio Cristo e da Igreja, na qual, pelo ministério do sacerdote, o Cristo Senhor, presente sob as espécies de pão e vinho, se oferece a Deus Pai e se dá como alimento espiritual aos fiéis unidos à sua oblação". Quero ressaltar a afirmativa "ação do próprio Cristo". Seja onde for e seja quem for o presidente, a celebração da Eucaristia é "ação do próprio Cristo". Se é assim, porque uma missa será de "cura e libertação" e outra não? Haverá dois Cristos? Um que cura e outro não? Outra afirmativa do Cânon 899 é que o Cristo "se oferece a Deus Pai e se dá como alimento espiritual aos fiéis". O Cânon não fala de que quem frequenta uma "missa de cura e libertação" receberá uma graça especial de Cristo. O Cânon fala de "alimento espiritual aos fiéis". "Alimento" e não cura. "Aos fiéis" e não para alguns fiéis privilegiados que frequentam uma "missa de cura e libertação". "Aos fiéis", significa dizer todos os fiéis. Lembro-me aqui das palavras de Pedro: "Estou compreendendo que Deus não faz diferença entre as pessoas" (At 10, 34). Se Deus não faz, somos nós a Igreja, ou melhor, alguns padres que vão fazer? Falar de que Jesus cura em uma determinada missa e em outra não, não é fazer diferença entre as pessoas? Eu prefiro ficar com Pedro: "Estou compreendendo que Deus não faz diferença entre as pessoas".
Curar é ação divina. Deus cura sempre. Cura ordinariamente pelo uso da medicina e cura extraordinariamente, no que chamamos de milagre. O milagre vem da fé da pessoa e do poder e do querer de Deus, assim nos ensina Jesus: "Vocês acreditam que eu possa fazer isso? Eles responderam: ‘Sim, Senhor’. Então Jesus tocou os olhos deles, dizendo: ‘Que aconteça conforme vocês acreditaram’ E os olhos deles se abriram" (Mt 9, 28-29). Outro texto: "Jesus ficou admirado e disse aos que o seguiam: ‘Eu garanto a vocês: nunca encontrei uma fé igual a essa em ninguém de Israel!’. (...) Então Jesus disse ao oficial: ‘Vá, e seja feito conforme você acreditou’" (Mt 8, 10.13). Poderíamos citar tantas outras passagens dos evangelhos, mas estas duas citações bastam para confirmar que o milagre depende tão somente da fé da pessoa que pede a graça especial e de Deus que aceita realizar o que a pessoa crente pede, independente do lugar e de ter ou não algum intermediário. Creio que seja uma ofensa a Deus, é usar o nome d’Ele em vão (cf. Ex 20, 7), determinar que um milagre somente acontece se a pessoa for participar de uma "missa de cura e libertação", celebrada em um determinado lugar e por um determinado presbítero.
Chego mesmo a pensar que este tipo de celebração é uma forma de mentir e enganar o povo, transferindo para o nível do milagre, aquilo que deveria ser conquista da cidadania, tornando-se uma fuga do compromisso social da fé. Jesus nos ensina: "Vocês é que têm de lhes dar de comer" (Mc 6, 37). Não devemos transferir para Deus o que podemos e devemos fazer. Tiago nos alerta: "Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo" (1, 27). Religião verdadeira é aquela que serve e liberta aos pobres e não aquela que explora e engana aos pobres; religião verdadeira é aquela que se mantém "livre da corrupção do mundo" e não aquela que usa das mesmas artimanhas do mundo para garantir a conquista de mais um fiel para a Igreja. Faz-me lembrar o ensinamento da CNBB nas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2008-2010 no nº 178: "O compromisso social tem sua raiz na própria fé; deve ser manifestado por toda a comunidade cristã, e não apenas por algum grupo ou pastoral social; uma comunidade insensível às necessidades dos irmãos e à luta para vencer as injustiças celebra indignamente a liturgia". Existe algum compromisso social de luta para vencer as injustiças nas celebrações das "missas de cura e libertação"? Se sim, qual, como e onde? Se não, celebra-se "indignamente a liturgia". Palavras da CNBB!
Nas "Orientações pastorais sobre a Renovação Carismática Católica" é dito que se devia evitar "alimentar um clima de exaltação da emoção e do sentimento, que enfatiza apenas a dimensão subjetiva da experiência de fé" (Documentos da CNBB 53, nº 49). E diz também: "A fé não pode ser reduzida a uma busca de satisfação de exigências íntimas e de resposta às necessidades imediatas"(nº 47). Mais uma recomendação: "Ao implorar a cura, nos encontros da RCC ou em outras celebrações, não se adote qualquer atitude que possa resvalar para um espírito milagreiro e mágico, estranho à prática da Igreja Católica" (nº 59). Nas chamadas "missas de cura e libertação" estão acontecendo tudo isto: exaltação da emoção e do sentimento, ênfase na dimensão subjetiva da fé, satisfação de exigências íntimas, respostas às necessidades imediatas, espírito milagreiro e mágico. Tudo que a CNBB recomendou evitar, está acontecendo nas "missas de cura e libertação". E aí? Ninguém vai tomar nenhuma providência? A CNBB vai ficar desmoralizada, vai perder sua força como orientadora da ação evangelizadora na Igreja do Brasil? Cada movimento, cada pastoral, cada presbítero, cada bispo, cada consagrado, cada leigo vai fazer o que quer e como quer? Vamos sepultar de vez as diretrizes e orientações da CNBB?
Recentemente uma Religiosa me dizia que o pároco da cidade onde ela mora, apoiado pelo bispo, resolveu celebrar esta "missa de cura e libertação". Questionado por ela, justificou tal tipo de celebração dizendo que por meio das "missas de cura e libertação" as pessoas, em busca de milagres, viriam à Igreja e poderiam assim ouvir a Palavra de Deus e serem catequizadas. Eu disse à Irmã: será? E repito: será que quem vai a estas "missas de cura e libertação", ouve mesmo aquilo que a Igreja tem a dizer, ou vão apenas porque esperam receber um milagre?
Finalizo perguntando: onde é que estes meus irmãos na fé e no ministério ordenado se fundamentam para celebrar e apoiar estas "missas de cura e libertação" em suas paróquias e dioceses?
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