sábado, 26 de setembro de 2009

Revolução cubana

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Historias da Revolução cubana: Adios, vice-presidente Jorge Risquet
"Fazia um calor sufocante no solar onde viviam Jorge, os pais e quatro irmãos - outros três já tinham morrido de doenças infantis hoje já desaparecidas em Cuba e perfeitamente curáveis - em Havana. A grande casa tinha 24 quartos e em cada um deles, sem banheiro, vivia uma família. Era gente demais, todos muito pobres, a maioria trabalhadores de diversos ofícios, alguns informais. O pai de Jorge trabalhava numa "tabaquera", empresa de fabricação do charuto cubano. Mas foi essa babel que possibilitou ao menino de 11 anos começar a vida de professor, ganhando, inclusive, o suficiente para pagar o quarto onde morava a família toda. "Nós estávamos sempre nos mudando porque meus pais não conseguiam pagar os aluguéis". Então, para ajudar nas despesas Jorge e a irmã improvisaram uma lousa no pequeno quarto onde viviam e ensinavam os demais garotos do solar que não podiam ir à escola, porque era longe e eles não tinham sequer um sapato para usar. Cobravam alguns trocados, mas com isso garantiam o aluguel. O menino era Jorge Risquet Valdés, que mais tarde veio a ser um dos organizadores da educação na guerrilha cubana e um dos comandantes da campanha de Cuba na África, nos anos 60. Naqueles dias, ele, que era um dos melhores alunos da escola fundamental, já estava apto para passar ao ensino médio. Mas, para estudar na Cuba pré-revolucionária, era preciso ter dinheiro. Sem chance, ele, então com 13 anos, foi buscar os cursos oferecidos gratuitamente pela Juventude Revolucionária Cubana. Apesar da pouca idade Jorge não era um analfabeto político. Os pais, trabalhadores do tabaco, tinham profunda consciência de classe. É que em Cuba, na produção de charuto era assim: as pessoas ficavam ali, enrolando as folhas, no mais completo silêncio. Por conta disso, os trabalhadores inventaram um bom jeito de se instruir e ficar por dentro da literatura revolucionária. Faziam uma "vaquinha" e contratavam um leitor, alguém que ficava ali, lendo, enquanto todos trabalhavam. "O leitor trazia uma lista de títulos e os trabalhadores escolhiam. Liam Gorki, Vitor Hugo, Cervantes Martí, Tolstoi e muitos outros". Pois foi por conta destas leituras que a família Risquet sempre esteve em dia com os temas do mundo. O irmão mais velho de Jorge, inclusive, alistou-se para ir à Espanha lutar contra a ditadura de Franco. Cerca de mil cubanos foram. Então, durante a segunda guerra e o horror nazista, Jorge já estava envolvido até os dentes na organização da juventude revolucionária. Quando em 1944 funda-se em Cuba a Juventude Socialista, Jorge está lá e toma para si a tarefa de organizar os jovens num grande bairro de Havana. No ano seguinte, durante o Congresso Nacional Constituinte da Juventude, ele, com 15 anos, é eleito membro do Comitê Central. Aos 16 anos de idade Jorge comanda o jornal quinzenal "Mella", que levava o nome de um grande comunista cubano, e ali ficou até os 20 anos. "Os trabalhadores cubanos sempre foram muito politizados. Para se ter uma idéia, quando Lênin morreu, as tabaqueiras pararam em sua homenagem, e nas guerras de independência do século XIX entregavam dinheiro - um dia de salário por semana - para comprar armas, tarefa que o partido Revolucionário Cubano, fundado por José Martí, realizava para preparar a terceira e última guerra de independência de Cuba. Em 1951, quando acontece o golpe de estado que eleva Batista ao poder, Jorge é um dos que se manifesta contra pelo rádio, na região de Matanzas onde encabeçava a Juventude Socialista e a polícia o persegue. Meses mais tarde vai para o exterior como representante da Juventude Socialista cubana na Federação Mundial da Juventude Democrática. Nesta função ele circula pela América Latina, Europa central e Leste europeu. É em 1952, em Viena, na Conferência Mundial pelos Direitos da Juventude que Jorge conhece o jovem Raul Castro, então com 21 anos e representando a delegação cubana no evento. Dali eles atravessam a cortina de ferro e seguem para Bucareste, onde iriam organizar o Comitê Preparatório do Festival Mundial da Juventude. Lá ficam de dezembro de 52 a abril de 53. Raul segue para Paris de onde embarca para Cuba com dois guatemaltecos. Mas, o fato de os dois companheiros terem desembarcado cheios de livros "subversivos" fez com todos acabassem presos. Os guatemaltecos logo saíram por intervenção da embaixada do seu país, ainda sob o comando de Jacob Arbenz. Mas Raul ficou. Foi um brilhante jovem advogado quem entrou com um habeas corpus que tirou Raul da cadeia pouco menos de um mês do ataque ao quartel Moncada, que desataria a revolução cubana. O advogado bom de conversa era Fidel Castro. "Por pouco Raul não perde a ação de Moncada". Quando acontece Moncada Risquet está Bucareste, justamente nos dias do IV Festival Mundial e já começa a articular uma campanha internacional pela libertação dos prisioneiros, afinal Raul era um membro da juventude e organizador do festival. Foi por aqueles dias de organização de campanhas e festivais que Jorge conhece, em Bucareste, o jovem estudante de medicina Agostinho Neto que mais tarde viria a ser uma das mais importantes lideranças de libertação da África negra. Junto com ele, freqüentando os alojamentos latino-americanos - embora representassem Portugal - iam também a Marcelino dos Santos. Em 1954 Jorge embarca para Guatemala, onde ia organizar um festival regional de apoio ao processo revolucionário, mas o golpe e a queda de Jacob Arbenz, impede que o mesmo aconteça. É naqueles dias que Risquet conhece Che Guevara, então vivendo no país. "A ditadura na Guatemala foi uma das mais ferozes. Foram 30 anos matando gente, mais de duzentos mil mortos". Risquet logo sai da Guatemala em setembro de volta para Europa e Che segue para o México, onde encontraria Fidel. Nos primeiros meses de 1955, Jorge veio para o Brasil, onde tentou organizar um encontro de estudantes no Rio de Janeiro, mas foi espinafrado por Carlos Lacerda. Foi Jânio Quadro, então governador de São Paulo, quem permitiu o festival, que acabou sendo bem pequeno, mas cumprindo com os objetivos. A guerrilha em Cuba Todo este trabalho organizativo na juventude comunista desde os 13 anos de idade acabou sendo a porta de entrada de Jorge Risquet para a atuação na luta que se forjava em Cuba. No ano de 1955 ele volta para a ilha clandestinamente e passa a comandar a Juventude de Havana. Por conta de sua atuação acaba preso em dezembro de 56 e chega a ser dado como desaparecido. Nestes dias é brutalmente torturado, tendo as unhas arrancadas, mas não lhe arrancam qualquer informação. Quando consegue sair, volta a atuar clandestinamente organizando a juventude. Depois sai de Cuba, disfarçado, para organizar reuniões com os partidos comunistas no México, Caribe e Venezuela. "A idéia era dar a conhecer sobre Fidel, quem ele era, o que pretendia, e buscar apoio para a luta em Cuba". Quando a guerrilha é instalada na Sierra Maestra, logo começa a expandir-se para outras regiões do país. Raul funda então a "segunda frente" e manda buscar Risquet para coordenar a criação de uma Escola de formação. A proposta era tornar os rebeldes sujeitos conscientes sobre contra o quê estavam lutando. "A gente trabalhava no sentido de fazer compreender que o combate era contra o imperialismo. E, naqueles dias, sob o comando da "segunda frente" tínhamos mais de 11 mil quilômetros quadrados de território liberado. As escolas proliferaram".. Jorge Risquet fez-se então o primeiro formador político do exército rebelde no Oriente e quando a revolução triunfou ocupou o cargo de chefe do Departamento de Cultura do Exército do Oriente publicando revistas e preparando quadros para o governo revolucionário. E assim foi até 1965, organizando, na região oriental, o novo Partido Unido da Revolução, hoje chamado Partido Comunista. Mas, no mês de junho, ele recebe um chamado de Fidel. Diz o comandante que Che Guevara está no Congo, ajudando na luta por libertação, e que precisa de mais uma coluna de combatentes por lá. É quando começa a se formar o batalhão Patrício Lumumba, que seria comandado por Risquet. A gesta africana Enquanto Cuba encerrava a luta heróica contra a ditadura de Batista, lá do outro lado do mundo outro povo vivia a tarefa de se libertar das colônias européias. Em 1960, o Congo belga logrou sua independência sob o comando de um jovem negro, Patrice Lumumba. Mas, pouco depois de ser eleito primeiro-ministro e iniciar uma mudança radical no país em busca de melhorias para o povo, Lumumba foi preso, torturado e assassinado depois de um golpe de estado promovido com a ajuda da CIA, dos Estados Unidos. Também em 60 a França concede a independência ao outro lado do Congo, chamado de Congo francês. Mas quem fica na presidência é um vassalo, Folbert Youlou, que governa com mão de ferro até 1963, quando com revolta popular, o governo cai e acontecem eleições. Massemba Debat é eleito presidente. No lado belga, os partidários de Lumumba seguiam lutando contra a ditadura e os acontecimentos na parte francesa acendem esperanças de verdadeira libertação, até então não acontecida. Em 1964, a região era um caldeirão explosivo. Mercenários brancos chegavam ao Congo belga com o apoio dos Estados Unidos e regressa ao poder Moises Tshombe, um conhecido anticomunista que ajudara na captura e no assassinato de Patrice Lumumba. É quando o governo do Congo francês pede ajuda a Cuba para que mande alguém capaz de treinar o exército local, uma vez que se aproximava a possibilidade de uma guerra entre os dois Congos. Quem vai à África, em janeiro de 1965 é o próprio Che Guevara, que se encontra com Debat e com o então presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola, Agostinho Neto, para ouvir dos dois comandantes como estava a situação. Assim, em abril do mesmo ano, Che retorna com um pelotão de 14 soldados cubanos - que semanas depois seriam 120 - chamado de Coluna Um, e entra na África pela Tanzânia. A proposta é treinar os lumumbistas e também os combatentes da Frente de Libertação de Moçambique. Meses depois, era a vez de embarcar para África a Coluna Dois, esta dirigida por Jorge Risquet, com mais 250 homens. "Nós fomos ajudar militarmente na integridade territorial, na luta contra o colonialismo, contra o racismo, contra o apartheid. Era uma obrigação histórica visto que daquele continente saíram mais de um milhão e 300 mil homens e mulheres, levados para Cuba como escravos. Em Cuba, estávamos começando a organizar nossa própria casa, mas não podíamos deixar de ajudar". Poucos anos depois da vitória cubana, o internacionalismo já aparecia como uma marca do novo governo. E foi muito em função desta participação de Cuba nas lutas de libertação africana que o processo revolucionário naquele continente cresceu.. Desde aqueles dias dos anos 60, 380 mil soldados cubanos passaram pela África, além de 100 mil outros colaboradores nas áreas da saúde e educação e outras. Dois mil e setenta e sete cubanos caíram em combate no solo africano e são considerados heróis nacionais. "Nós, em Cuba, não damos o que nos sobra. Compartilhamos o que temos, e assim foi com a África." Também neste período, mais de 35 mil jovens africanos foram a Cuba estudar, sem qualquer custo. "Nossa contribuição também se dá na formação e assim vamos caminhando junto com a África que está a 10 mil quilômetros de Cuba, mas também está no nosso sangue". Jorge Risquet lembra que o internacionalismo é algo que faz parte da consciência do cubano, e não é coisa que ocorre só depois da revolução dos anos 50. Martí já ensinara que "pátria es humanidad". Por conta disso vão-se encontrar cubanos lutando com Lincoln, pela libertação dos Estados Unidos, com Benito Juarez, pela libertação do México, com Simón Bolívar. "Na guerra do Vietnã mais de 400 mil cubanos se inscreveram, por livre vontade, para lutar junto ao povo daquele país. Só não foram porque os vietnamitas não quiseram. O internacionalismo é uma razão ética e política. Se nós em Cuba logramos ter assistência médica perfeita e educação de altíssima qualidade, por exemplo, é nosso dever levar isso aos irmãos que ainda não têm". A participação cubana na África se estendeu do Congo para Angola, onde também foram treinar jovens soldados e ajudar Agostinho Neto na luta contra o domínio português e os mercenários. Depois, nos anos 70, lá estavam outra vez os cubanos, sob o comando de Risquet, com instrutores militares, médicos e professores. "Passado meio século, a gente vê que Cuba esteve esse tempo todo na solidariedade com a África, desde o golpe contra Argélia em 1963, quando mandamos para lá todas as armas apreendida dos estadunidenses durante a fracassada invasão de Playa Girón, e retornamos com 100 crianças órfãs de guerra. Estivemos peleando com o fuzil na mão, mas também com a presença civil de médicos, professores e engenheiros". A Cuba de hoje O povo cubano segue fielmente a lição de Martí, e considera toda humanidade como pátria. Por isso se desdobra em levar seus avanços na ciência e na educação para aqueles que ainda não lograram as vitórias que Cuba já conquistou. Atualmente existem 27 mil cubanos na Venezuela, e outros milhares espalhados por vários países, principalmente no campo da saúde. Seguem três mil em Angola, sendo que 900 são médicos, fazendo a diferença. Não foi à toa que Jorge Risquet recebeu a grata surpresa de ouvir, no auditório da Universidade Federal em Santa Catarina, o depoimento de dois angolanos sobre como haviam sido operados por médicos cubanos e alfabetizados por professores, também de Cuba. Desde a revolução de 59, mais de 100 mil estudantes de vários países de África, América Latina e Ásia fizeram sua graduação em Cuba, todos com bolsa integral. "Quando tivemos um tempo bem ruim (a partir de 1991 com o desaparecimento da União Soviética e do campo socialista da Europa) nós perguntamos a eles se queriam ficar e dividir a pobreza conosco. Nunca os abandonamos". Risquet conta que dos 55 países africanos, 54 têm relações com Cuba. Em Havana existem 20 embaixadas de países africanos e Cuba está em 30 deles. Todos estes países sempre votaram contra o bloqueio criminoso que os Estados Unidos têm contra Cuba e há comitês de apoio a Cuba em quase todos os países africanos. A Namíbia, recentemente, enviou dois milhões de dólares em ajuda a Cuba e até o Timor Leste ajudou, depois da passagem de um furacão. "A África sabe o tanto que Cuba lutou pela sua libertação e reconhece isso. Na Etiópia existe um monumento ao soldado cubano e na África do Sul, num outro monumento que recorda os mortos das lutas libertadoras, estão gravados os nomes dos 2.077 cubanos que deram seu sangue pela pátria africana. Outro dia, na Namíbia, o presidente Raul Castro foi recebido pelo povo, que cantava Guantamera (em espanhol). Isso mostra o quanto África ama Cuba". Jorge Risquet, que foi o homem de Cuba em toda a campanha militar africana tem agora 79 anos de idade. Desde aqueles dias em que dava aula para os meninos pobres do solar, onde vivia em um quarto apertado, já se vão 68 anos. É tempo demais. Mas, o garoto que correu o mundo a organizar a juventude comunista, que comandou batalhões na grande África, que fundou escolas e jornais, que foi Ministro do Trabalho, Deputado e Membro do Comitê Central do Partido Comunista Cubano, (desde sua criação há 44 anos) segue tão animado quanto naqueles dias gloriosos dos anos 60. Diariamente ele sai cedinho de casa e vai para o trabalho, no gabinete do presidente Raul Castro. É que há tantas coisas ainda para conquistar. Ele olha para a América Latina e vê tantas mudanças, a Venezuela, o Equador, a Bolívia, os povos em luta. E se emociona. "Cuba esteve um tempo sozinha por aqui, mas resistiu. Cuba resistiu a Bush. E vamos seguir acreditando na capacidade do povo de se organizar e conquistar sua liberdade. Veja a América Latina agora, nunca se viu um movimento como este. Mas, sabemos que o inimigo atua, o imperialismo tem planos e pode haver retrocesso. Aí está Honduras, a IV Frota, as sete bases militares ianques na Colômbia. Há que ver o perigo, mas há também que ser otimistas. Cada país, com seu povo, há de encontrar o rumo seguro para uma vida soberana".

Frei Bento

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Entrevista a Frei Betto: ‘É essencial apostar em novos paradigmas de civilização


Adital -

Tradução: ADITAL

Por Sergio Ferrari e Beat Tuto Wehrle

"A loteria biológica é tremendamente injusta"
"Necessitamos novos referentes de sociedade e de planeta"
"a cooperação Norte-Sul exige mais modéstia"
"As vítimas do planeta nos vão obrigar a mudar"
"O golpe de Honduras empena a nova democracia latinoamericana"

Em meio à crise econômica e financeira generalizada, o planeta deve buscar novos paradigmas de civilização, incluindo a esfera da cooperação internacional. Esses novos referentes de relações planetárias devem estar embebidos de uma ética diferente, baseada no partilhar e no respeito mútuo entre povos e nações. Tese defendida pelo teólogo brasileiro da libertação Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como Frei Betto. Ele acaba de visitar a Suíça, onde participou na celebração dos 50 anos de E-CHANGER (Intercambiar), organização suíça de cooperação solidária, da qual é assessor e contraparte há muitos anos. A situação atual da nova democracia popular latinoamericana -empanada somente pelo golpe de Estado em Honduras-; o papel motor dos movimentos sociais; a importância da luta contra a fome e seus obstáculos reais são alguns dos temas centrais dessa entrevista exclusiva. Frei Betto, 65 anos, religioso dominicano, é escritor e jornalista; assessor dos movimentos populares de seu país e ativo militante social. Foi, durante dois anos, conselheiro pessoal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, abandonando seu governo quando o Programa "Fome Zero", que coordenava, "deixou de ser um programa de emancipação para converter-se em um meio compensatório com cálculo eleitoral".

Confira a entrevista:

P: A crise mundial preocupa a comunidade internacional em seu conjunto. As respostas até agora têm sido efetivas?

FB: Tenho muitas dúvidas de que os dirigentes das principais potências mundiais tenham uma real preocupação de alcançar soluções de fundo. A Cúpula do G-8 (das oito nações mais industrializadas e a Rússia), realizada recentemente em L’Áquila, Itália, não contribuiu significativamente.

P: No entanto, o G-8 acordou 15 bilhões de dólares para enfrentar a pobreza. Entre setembro de 2008 e mediados de 2009, os mesmos dirigentes destinaram mil vezes mais para salvar o sistema financeiro. Com um olhar crítico, podemos concluir que estão mais preocupados em salvar o sistema do que a humanidade em seu conjunto. Isso é de um cinismo terrível...
Dois em cada três habitantes do mundo vivem na pobreza e isso é um fato objetivo ao qual não se dá resposta. Não se pode aceitar que 950 mil homens e mulheres tenham fome; que 23 mil pessoas morram por dia devido a fome, a maioria dos quais são crianças.

A CRISE TAMBÉM É ÉTICA

P: Como explica essa realidade?

FB: A atual situação desnuda uma profunda crise ética de fundo que toca todas as esferas das relações entre nações e que obriga a pensar novos paradigmas. Insisto: os poderosos querem salvar o sistema e não a humanidade.
A loteria biológica pela qual um nasce na Suíça ou nos Estados Unidos e não nasce em uma favela de são Paulo (Brasil) ou na Eritrea, é absolutamente injusta. E em vez de sentir-nos privilegiados por essa casualidade biológica, deveríamos sentir em grande dívida social em relação aos que sofrem fome e atuar em correspondência.

P: Uma realidade mundial que, então, não consegue sensibilizar realmente o planeta?

FB: Os países industrializados, os mais enriquecidos estão particularmente preocupados porque a crise ameaça seu nível de consumo, que é absurdo. Se quiséssemos generalizar o consumo do Norte para todo o Globo, necessitaríamos 3 ou 4 planetas Terra para ter suficientes recursos. Cometemos um erro ao pensar que o melhoramento das condições de vida das pessoas será conseguido graças ao crescimento econômico. Quase nuca esse crescimento se reflete nas maiorias que continuam vivendo pobres e exploradas. O crescimento real deveria ser medido com parâmetros e indicadores de desenvolvimento humano...

P: Por que a luta contra a fome não desata uma real mobilização planetária?

FB: Existem quatro causas principais de morte precoce. As doenças (Aids, câncer, malária etc.) Os acidentes, em suas distintas manifestações. O terceiro é a violência em suas distintas formas, incluindo o terrorismo. A quarta causa é a fome. As vítimas produto dos três primeiros fatores são muito menos que as do quarto fator. No entanto, não existe uma mobilização consistente contra a fome...
A fome ameaça somente aos miseráveis da terra e nós não o somos. Fui privilegiado na loteria biológica e então nosso comportamento é insensível ante o grande drama planetário. A tendência egoísta que marca o ser humano...

P: Existe possibilidade de que esse marco, quase fatalista, se modifique?

FB: Com uma mudança de paradigmas. Não será um processo fácil, nem simples; porém, as vítimas da injustiça nos obrigarão a modificar atitudes. Dois exemplos ilustrativos. Um, a devastação ambiental. Atinge a todos igualmente, ricos e pobres, Norte e Sul. E isso pressiona a tomada de decisões por parte de alguns governos e responsáveis políticos mundiais, além de seus próprios desejos ou vontades. O outro, as migrações das populações empobrecidas para os países ricos. Responde à necessidade de sobrevivência dos que nada têm. E não existe nem polícia, nem exército, nem legislação que possa impedir essa tendência migratória que já golpeia as nações enriquecidas. Esse fluxo não poderá ser detido. E os responsáveis políticos terão que tomar decisões consequentes para permitir que os países empobrecidos transitem a um processo de desenvolvimento autônomo soberano que permita que suas populações possam continuar vivendo ali.

P: Esses novos referentes devem ser buscados dentro ou fora do sistema?

FB: Tenho uma formação e uma experiência revolucionária desde muito jovem. Meu paradigma é a sociedade pós-capitalista. E essa sociedade pós-capitalista chama-se socialismo. Sou um socialista ontológico. O que não significa que considere como modelo qualquer referente histórico socialista, especialmente o que a Europa do Leste viveu.

COOPERAÇÃO REALMENTE SOLIDÁRIA

P: Que papel a cooperação Norte-Sul joga nessa dinâmica complexa?

FB: Penso que nesse contexto o conceito de cooperação realmente solidária adquire um grande valor. Para isso, é essencial uma atitude de modéstia. As ONGs do Norte que trabalham no Sul devem dotar-se de uma pedagogia e da educação de Paulo Freire. O que implica colocar-se a serviço do outro, sem nenhuma arrogância ou colonialismo, compreendendo as diferenças, assumindo que ninguém é melhor do que o outro; mas que cada um tem uma cultura diferente.

P: Como se expressaria concretamente essa atitude no cotidiano das relações Norte-Sul?

FB: Uma regra de outro da cooperação solidária consiste em promover a autoestima dos atores sociais do sul. Tem que fortalecer os movimentos sociais; consolidar a formação de seus dirigentes. A instrução, a formação, deveria constituir uma contribuição essencial, reforçando, ao mesmo tempo, a consciência da necessidade de desenvolver relações igualitárias. Não com uma ótica assistencialista ou colonialista do Norte ao Sul, mas com uma perspectiva emancipadora da população do Sul. Nesse sentido, quero dizer que uma ONG como E-CHANGER são excepcionais. De grande coerência. Vão trabalhar no Sul, na América Latina, e especialmente no Brasil, que é o que melhor conheço, colocando-se a serviço dos atores sociais, sem impor verdades, escutando, abertas à aprendizagem constante, conscientes de que todos têm muito a aprender nesse intercâmbio com rosto humano.

A ESPERANÇA LATINOAMERICANA

P: O essencial de sua reflexão global se nutre da realidade do Brasil e da América Latina. Que momento político vive atualmente o continente?

FB: Nas últimas décadas, passou por três etapas muito diferenciadas. A primeira, entre 1960 e 1980, as ditaduras militares. Com repressão generalizada, desaparecimentos forçados de pessoas, cárcere e exílio. Em seguida, vem um período de neoliberalismo messiânico que fez explodir as contradições populares. Como nunca antes, os movimentos sociais hoje sentem-se escutados e considerados. Muitos de seus dirigentes, inclusive, participam nos governos.

P: Qual é o traço mais característico deste?

FB: A existência de uma série de iniciativas regionais e continentais que promovem propostas de integração com autonomia. E isso é muito importante tendo em vista a longa história de dependência colonial que padecemos durante séculos.
Com uma nota amarga nesse marco positivo: o golpe de Estado em Honduras, que aconteceu no dia 28 de junho deste ano. Havíamos pensado que nunca mais haveria ditaduras e este golpe abre um compasso de preocupação. A mobilização latinoamericana contra o golpe causa preocupação. A mobilização latinoamericana contra o golpe é excepcionalmente significativa.

Liberdade e justiça social

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Liberdade e justiça social

Na década de 1980 visitei, com frequência, países socialistas: União Soviética, China, Alemanha Oriental, Polônia, Tchecoslováquia e Cuba. Estive também na Nicarágua sandinista. As viagens decorreram de convites dos governos daqueles países, interessados no diálogo entre Estado e Igreja.

Do que observei, concluí que socialismo e capitalismo não lograram vencer a dicotomia entre justiça e liberdade. Ao socializar o acesso aos bens materiais básicos e aos direitos elementares (alimentação, saúde, educação, trabalho, moradia e lazer), o socialismo implantara, contudo, um sistema mais justo à maioria da população que o capitalismo.

Ainda que incapaz de evitar a desigualdade social e, portanto, estruturas injustas, o capitalismo instaurou, aparentemente, uma liberdade - de expressão, reunião, locomoção, crença etc. - que não se via em todos os países socialistas governados por um partido único (o comunista), cujos filiados estavam sujeitos ao "centralismo democrático".

Residiria o ideal num sistema capaz de reunir a justiça social, predominante no socialismo, com a liberdade individual vigente no capitalismo? Essa questão me foi colocada por amigos durante anos. Opinei que a dicotomia é inerente ao capitalismo. A prática de liberdade que nele predomina não condiz com os princípios de justiça. Basta lembrar que seus pressupostos paradigmáticos - competitividade, apropriação privada da riqueza e soberania do mercado - são antagônicos aos princípios socialistas (e evangélicos) de solidariedade, partilha, defesa dos direitos dos pobres e da soberania da vida sobre os bens materiais.

No capitalismo, a apropriação individual e ilimitada da riqueza é direito protegido por lei. E a aritmética e o bom-senso ensinam que quando um se apropria muitos são desapropriados. A opulência de uns poucos decorre da carência de muitos.

A história da riqueza no capitalismo é uma sequência de guerras, opressão colonialista, saques, roubos, invasões, anexações, especulações etc. Basta verificar o que sucedeu na América Latina, na África e na Ásia entre os séculos XVI e a primeira metade do século XX.

Hoje, a riqueza da maioria das nações desenvolvidas decorre da pobreza dos países ditos emergentes. Ainda agora os parâmetros que regem a OMC são claramente favoráveis às nações metropolitanas e desfavoráveis aos países exportadores de matérias-primas e mão de obra barata.

Um país capitalista que agisse segundo os princípios da justiça cometeria um suicídio sistêmico; deixaria de ser capitalista. Nos anos 80, ao integrar a Comissão Sueca de Direitos Humanos, fui questionado, em Uppsala, por que o Brasil, com tanta fartura, não conseguia erradicar a miséria, como fizera a pequena Suécia. Perguntei-lhes: "Quantas empresas brasileiras estão instaladas na Suécia?" Fez-se prolongado silêncio.

Naquela época, nenhuma empresa brasileira operava na Suécia. Em seguida, indaguei: "Quantas empresas suecas estão presentes no Brasil?" Todos sabiam que havia marcas suecas em quase toda a América Latina, como Volvo, Scania, Ericsson e a SKF, mas não precisamente quantas no Brasil. "Vinte e seis", esclareci. (Hoje são 180). Como falar em justiça quando um dos pratos da balança comercial é obviamente favorável ao país exportador em detrimento do importador?

Sim, a injustiça social é inerente ao capitalismo, poderia alguém admitir. E logo objetar: mas não é verdade que, no capitalismo, o que falta em justiça sobra em liberdade? Nos países capitalistas não predominam o pluripartidarismo, a democracia, o sufrágio universal, e cidadãos e cidadãs não manifestam com liberdade suas críticas, crenças e opiniões? Não podem viajar livremente e até mesmo escolher viver em outro país, sem precisar imitar os "balseros" cubanos?

De fato, nos países capitalistas a liberdade existe apenas para uma minoria, a casta dos que têm riqueza e poder. Para os demais, vigora o regime de liberdade consentida e virtual. Como falar de liberdade de expressão da faxineira, do pequeno agricultor, do operário? É uma liberdade virtual, pois não dispõem de meios para exercitá-la. E se criticam o governo, isso soa como um pingo de água submergido pela onda avassaladora dos meios de comunicação - TV, rádio, internet, jornais, revistas - em mãos da elite, que trata de infundir na opinião pública sua visão de mundo e seu critério de valores. Inclusive a ideia de que miseráveis e pobres são livres...

Por que os votos dessa gente jamais produzem mudanças estruturais? No capitalismo, devido à abundância de ofertas no mercado e à indução publicitária ao consumo supérfluo, qualquer pessoa que disponha de um mínimo de renda é livre para escolher, nas gôndolas dos supermercados, entre diferentes marcas de sabonetes ou cervejas. Tente-se, porém, escolher um governo voltado aos direitos dos mais pobres! Tente-se alterar o sacrossanto "direito" de propriedade (baseado na sonegação desse direito à maioria). E por que Europa e EUA fecham suas fronteiras aos imigrantes dos países pobres? Onde a liberdade de locomoção?

Sem os pressupostos da justiça social, não se pode assegurar liberdade para todos.

frei betto, escritor e pacifista