Postado por Attman e Kamadon
FARC: "Não somos belicistas nem lutamos por vinganças pessoais .."
Memorando para um intercâmbio sobre o conflito colombiano.
Primeiro: Sempre acreditamos numa solução política para o conflito. Mesmo antes da agressão a Marquetalia,
e durante esses 46 anos, temos reiterado, expressado e lutado por esse objetivo.
Segundo: Não somos belicistas, nem lutamos por vinganças pessoais. Não temos patrimônios materiais ou
privilégios a defender, somos revolucionários comprometidos com nossa consciência, e desde sempre, com a
busca de uma sociedade justa e soberana, profundamente humanistas, desprovidos de qualquer interesse
pessoal mesquinho. Nós amamos nosso país acima de tudo e somos obrigados a desenvolver a guerra contra
uma classe dominante posta de joelhos perante o império, que tem usado de maneira sistemática a violência e
os atentados pessoais como uma arma política para manter-se no poder desde 25 de setembro 1828, quando
buscou assassinar o Libertador Simón Bolívar, e até os dias de hoje, em que utiliza as práticas de terrorismo de
Estado para manter o status quo.
Terceiro: A dificuldade que a Colômbia tem enfrentado para conseguir a reconciliação através do diálogo e de
acordos se deve ao conceito de paz oligárquica do regime, que só aceita a submissão absoluta da insurgência à
chamada "ordem estabelecida", ou, como alternativa, à "paz das cemitérios".
Quarto: Não temos lutado toda a nossa vida contra um regime excludente e violento, corrupto, injusto e antipatriota,
para agora, sem alterações em sua estrutura, aderirmos a ele.
Quinto: Na Colômbia, muitas pessoas boas e capazes que queriam um país melhor e que lutaram por esses
objetivos por meios pacíficos, como Jaime Pardo Leal, Bernardo Jaramillo, Manuel Cepeda, entre outros,
foram assassinados de forma premeditada, vil e covardemente pelos serviços de inteligência do Estado em
aliança com os paramilitares e bandidos, inimigos do povo, em um genocídio sem precedentes que liquidou
fisicamente todo um movimento político dinâmico e em pleno crescimento: A UNIÃO PATRIÓTICA.
Por conta dessa estratégia de Terrorismo de Estado, falhou-se na busca da solução política, durante as
administrações de Belisario Betancur e Virgilio Barco e, em Caracas e no México, durante o governo de César
Gaviria.
Sexto: Em El Caguán, como o Presidente Pastrana reconheceu em seu livro e em declarações públicas, o
regime procurou apenas ganhar tempo para reconstruir a abatida força militar do estado com um cronograma,
diretrizes, instruções e financiamento da Casa Branca, integrado ao Plano Colômbia e impostas pela
administração de Bill Clinton para abortar uma solução política democrática para o conflito colombiano, e dar
início a sua campanha para reverter as mudanças progressivas que desde então avançam no continente. O
satanizado processo de Caguán estava condenado ao fracasso antes mesmo de começar, como tem corroborado
o ex-presidente Pastrana, pois seu governo nunca buscou preparar o caminho para a paz, senão para reforçar e
aperfeiçoar seu aparato de dominação para continuar a guerra.
Sétimo: Estes fatos não invalidam a possibilidade de uma solução política para o conflito colombiano.
Evidenciam sim, a intenção quase nula da classe dirigente colombiana de ceder em sua hegemonia e sua
intolerância frente a outras correntes ou opções políticas de oposição que questionam seu regime político e seu
alinhamento internacional incondicional a favor dos interesses imperiais dos Estados Unidos, em detrimento
de nossa soberania e contra os mais caros e significativos interesses da nação e da pátria.
Sua concepção sobre o exercício do poder é marcada e sustentada pela violência, pela corrupção e pela
ganância, o que torna ainda mais difícil uma saída sem derramamento de sangue; de todas as formas, uma
solução política continuará sendo bandeira das FARC – EP, e certamente de amplos setores do povo que,
afinal, são os que sofrem os efeitos da hegemonia oligárquica.
Oitavo: Os interesses dos diferentes setores sociais estão se confrontando permanentemente. Em momentos e
por períodos definidos, a oligarquia exerce sua ditadura a fundo, sem respostas transcendentes por parte das
maiorias em função da pressão, repressão, guerra suja e desqualificação que se desenvolve desde o Estado até
elas de diferentes maneiras; em outros, as respostas são importantes, mas não são suficientes; porém, após um
acúmulo de fatores sociais transbordantes, a resposta popular é contundente. Nós entendemos que os interesses
dos diferentes setores de uma sociedade como a nossa estão em constante movimento e choque, nunca
paralisados. Assim, falar na Colômbia de hoje do pós-conflito é propaganda enganosa.
Nono: Esta reflexão é pertinente, posto que as causas geradoras da revolta armada em nosso país existem mais
vivas e pujantes do que há 46 anos, o que reclama, se queremos construir um futuro de convivência
democrática, maiores esforços, desprendimento, compromisso, generosidade e imaginação realista para atacar
a raiz dos problemas e não as consequências do mesmo.
Décimo: Após 12 anos da ofensiva total contra as FARC - EP por parte do governo dos Estados Unidos e do
Estado colombiano, os assassinatos oficiais, verdadeiros crimes contra a humanidade, hoje chamados de falsos
positivos, o terror crescente da nova máscara do narcoparamilitarismo denominada bandos criminosos, a
asquerosa truculência do presidente para permanecer no poder através de trapaças, a desenfreada corrupção da
administração e da iniciativa privada, que em troca dessa mesma corrupção e de milionárias somas apoia o
governo, a descarada invasão do exército gringo na Colômbia e a crescente injustiça social com desemprego
elevado, sem acesso aos serviços de saúde para a maioria, com um altíssimo êxodo interno, com um ridículo
salário mínimo em oposição aos enormes lucros dos banqueiros, latifundiários e empresas multinacionais, e
depois de haver rapinado com uma reforma trabalhista as conquistas salariais mais significativas dos
trabalhadores do campo e da cidade, tudo que alcançaram foi adubar ainda mais o terreno para o crescimento
da insurgência revolucionária.
SEGUNDA PARTE
1. O conflito armado colombiano possui profundas raízes históricas, sociais e políticas. Não foi a
invenção de nenhum demiurgo, produto de ânimos sectários, nem consequência de alguma especulação
teórica, mas o resultado e a resposta a formas determinadas de dominação específicas, impostas pelas
classes governantes desde os germes do Estado - nação cujo eixo tem sido a sistemática violência
terrorista anti-popular, propiciada desde o Estado, especialmente nos últimos 60 anos.
2. Superá-lo, por vias pacíficas, supõe que preliminarmente exista total disposição para abordar as
questões do poder e do regime político, se a decisão é encontrar soluções sólidas e duradouras.
3. Temos levantado a necessidade de conversar, em princípio, para lograr acordos de troca, o que
permitiria não só a liberdade dos prisioneiros de guerra de ambos os lados, mas também avançar na
humanização do conflito e, certamente, ganhar terreno no caminho para acordos definitivos.
4. Conversar, buscar conjuntamente soluções para os principais problemas do país, não deve ser
considerada como uma concessão de ninguém, mas como um cenário realista possível de se tentar,
mais uma vez, pôr fim à guerra entre os colombianos a partir da civilidade dos diálogos.
5. Reunir-se para conversar sobre trocas e uma solução pacífica supõe plenas garantias para fazê-lo
sem qualquer pressão, tendo por certo que aquele que pode outorgar-lhe, é, exclusivamente, o governo
de turno, se realmente tiver vontade de encontrar caminhos de diálogo.
6. A nossa histórica e permanente disposição para encontrar cenários de confluência através do diálogo
e a busca coletiva de acordos de convivência democrática que não dependam de conjuntura especial ou
da correlação de forças políticas é, sensivelmente, parte da nossa dificuldade programática.
7. Durante os últimos 45 anos temos sido objeto de toda sorte de ofensivas políticas, propagandísticas,
militares, com a presença aberta ou velada do Pentágono, com todo tipo de ultimatos e ameaças de
autoridades civis e militares, sob uma permanente agressão terrorista contra a população civil nas áreas
em que atuamos, etc, que não prejudicou a nossa determinação e vontade de lutar, por qualquer meio
que nos deixem, por uma Colômbia soberana, democrática e com justiça social.
8. Entendemos os diálogos, na busca de caminhos para a paz, não como uma negociação, porque não o
são, mas como um enorme esforço coletivo para chegar a acordos que possibilitem atacar as raízes que
originam o conflito colombiano.
TERCEIRA PARTE
As FARC somos resposta à violência e à injustiça do Estado. A nossa insurgência é um ato legítimo,
um exercício do direito universal que assiste a todos os povos do mundo a se rebelarem contra a
opressão. De nossos libertadores aprendemos que, "quando o poder é opressor, a virtude tem o direito
de aniquilá-lo", e que, "o homem social pode conspirar contra toda lei impositiva que tenha curvado
seu pescoço”.
Tal como foi proclamado pelo Programa Agrário dos Guerrilheiros, as FARC "somos uma organização
política militar que recolhe as bandeiras bolivarianas e as tradições libertárias do nosso povo para lutar
pelo poder e levar a Colômbia ao execício pleno de sua soberania nacional e fazer vigente a soberania
popular. Lutamos pelo estabelecimento de um regime democrático que garanta a paz com justiça
social, o respeito aos direitos humanos e um desenvolvimento econômico com bem-estar para todos
que vivem na Colômbia."
Uma organização com estas projeções, que busca a realização do projeto social e político do pai da
República, o Libertador Simón Bolívar, irradia em sua tática e estratégia um caráter eminentemente
político impossível de refutar. Somente o governo de Bogotá, que atua como uma colônia de
Washington, nega o caráter político do conflito. O faz no marco da sua estratégia de guerra sem fim
para negar a saída política que reivindica mais de 70% da população. Este pretende impor pela força
uma antipatriótica concepção de segurança idealizada pelos estrategistas do Comando Sul do exército
dos Estados Unidos, relegando para um lugar secundário a dignidade da nação.
Para o governo de Uribe, na Colômbia não há conflito político-social, mas uma guerra do Estado
contra o “terrorismo”, e com este pressuposto, complementado pela mais intensa manipulação
informativa, acredita-se com justificativa e carta branca para desencadear o seu terror de Estado contra
a população, e negar a solução política e o direito à paz.
Agora que a Colômbia é um país formalmente invadido, ocupado militarmente por tropas
estadunidenses, essa absurda percepção será reforçada, resultando no agravamento do conflito.
Uribe não foi instruído por seus mestres em Washington para a troca de prisioneiros políticos nem para
a paz.
O presidente da Colômbia cria fantasmas para justificar a sua imobilidade frente à questão da troca de
prisioneiros: que o acordo implica um reconhecimento do estatuto de beligerante do adversário e que a
liberação de guerrilheiros provocaria uma grande desmoralização das tropas ... É a sua maneira de
atravessar pedras no caminho do entendimento. Esta intransigência desnecessária do governo tem sido
a causa da prolongação do cativeiro de prisioneiros de ambos os lados. Quando Bolívar assinou o
armistício com Morillo em novembro de 1820, propôs ao general espanhol aproveitar a vontade de
entendimento reinante para acordar um tratado de regulamentação da guerra "conforme as leis das
nações civilizadas e os princípios liberais e filantrópicos”. Sua iniciativa foi aceita, proporcionando a
troca de prisioneiros, a recuperação dos corpos dos mortos em combate, e o respeito à população civil
não-combatente. Quão distante está Uribe desses imperativos éticos de humanidade.
Sem dúvida, associa Uribe a solução política do conflito com o fracasso e a inutilidade de sua Doutrina
de Segurança Nacional e a melancólica finalidade de seu frenesi bélico em aplastar pela força das
armas o crescente descontentamento social. Parece um soldado da II Guerra Mundial, perdido em uma
ilha, atirando em inimigos imaginários em meio à sua loucura.
Aos participantes deste intercâmbio sobre o conflito colombiano, reiteramos as observações feitas
recentemente aos presidentes da UNASUL e da ALBA:
"... Com Uribe imbuído com o frenesi da guerra e encorajado pelas bases norte-americanas, não haverá
paz na Colômbia nem estabilidade na região. Se não frearem o belicismo - agora repotenciado –
incrementar-se-á em proporção dantesca a tragédia humanitária na Colômbia. É hora da Nossa
América e o mundo voltarem seus olhos para este país violento desde o poder. Não se pode condenar
eternamente a Colômbia a ser o país dos "falsos positivos", do assassinato de milhares de civis nãocombatentes
pelas forças de segurança, das valas comuns, do despejo de suas terras, o deslocamento
forçado de milhões de camponeses, as detenções em massa de cidadãos, da tirania e da impunidade dos
agressores protegidos pelo Estado ".
Como um princípio de solução política do conflito, solicitamos o reconhecimento do status de força
beligerante às Farc. Seria o início da marcha em direção à paz na Colômbia. Se estamos falando de
paz, as tropas norte-americanas devem deixar o país, e o senhor Uribe deve abandonar a sua campanha
goebbeliana de qualificar de terrorista as FARC. De nossa parte, estamos prontos para levar a discussão
sobre a organização do Estado e da economia, da política social e da doutrina que irá guiar as novas
Forças Armadas da nação.
Com os melhores cumprimentos.
Compatriotas,
Secretariado do Estado-Maior das FARC.
Montanhas da Colômbia, fevereiro de 2010
sábado, 20 de março de 2010
Os desafios do socialismo no século 21-2° parte:Venezuela
Postado Por Attman e Kamadon
A "Revolução Bolivariana" de Chávez tem sido muito popular entre os
pobres. Poderia explicar como a sociedade venezuelana tem mudado
desde que Chávez chegou ao poder?
Em primeiro lugar, vamos reconhecer que a Revolução Bolivariana colocou o socialismo democrático na agenda mundial depois de atravessarmos um período na década de 1990 em que muitos ficavam mesmo alarmados em falar de socialismo, quando parecia que o capitalismo global havia atingido o pico da sua hegemonia e quando alguns na esquerda compravam a tese do "fim da história".
A Revolução Bolivariana deu às massas pobres e em grande medida afrocaribenhas a sua voz pela primeira vez desde a guerra da independência do colonialismo espanhol. O governo Chávez reorientou prioridades para a maioria
pobre. Ele foi capaz de utilizar os rendimentos do petróleo, em particular, para desenvolver saúde, educação e outros programas sociais que tiveram resultados dramáticos na redução da pobreza, eliminando virtualmente o analfabetismo e
melhorando a saúde da população. Organizações internacionais e agências têm reconhecido estas notáveis realizações sociais.
Contudo, como alguém que visita a Venezuela regularmente, eu diria que a mudança mais fundamental desde que Chávez chegou ao poder não é a destes indicadores sociais mas sim o despertar político e sócio-psicológico da maioria pobre – um vasto processo popular de mobilização das bases, expressão cultural, participação política e participação no poder. A velha elite e a burguesia foram
parcialmente substituídas no Estado e do poder político formal – embora não inteiramente. Mas o medo real e o ressentimento dos velhos grupos dominantes,
o pânico e o seu ódio contra Chávez é porque eles sentiram deslizar do seu domínio a capacidade confortável de exercer dominação cultura e sóciopsicológica sobre as classes populares como o fizeram durante décadas, mesmo
séculos. Naturalmente, ali ainda há outros muitos mecanismos através dos quais a burguesia e os agentes políticos do antigo regime são capazes de exercer sua influência, particularmente através dos meios de comunicação que em grande medida ainda estão nas suas mãos.
Quão avançados são os planos de nacionalização de Chávez? Há alguma
evidência de que eles levam aos resultados desejados?
A grande mudança econômica óbvia foi a recuperação do petróleo do país para um projeto popular – e mesmo que haja ainda uma burocrática oligarquia PDVSA.Outras empresas chave, tais como a siderurgia, foram nacionalizadas. E o setor cooperativo – com todos os seus problemas – tem se ampliado. No entanto, o poder econômico ainda está em grande medida nas mãos da burguesia.
A estratégia da revolução tem sido erguer novas instituições paralelas e também tentar "colonizar" o velho Estado. Mas o Estado venezuelano ainda é em grande medida um Estado capitalista. A questão chave é: como pode um projeto de transformação avançar enquanto opera através de um Estado corrupto, clientelista, burocrático e muitas vezes inerte legado pelo antigo regime? Se forças revolucionárias e socialistas chegam ao poder dentro de um processo político capitalista como você confronta o Estado capitalista e os entreves que ele
coloca nos processos de transformação? De fato, na Venezuela, e também na Bolívia, as instituições do Estado muitas vezes atuam para constranger, diluir e cooptar lutas de massas vindas de baixo.
Do meu ponto de vista, na Venezuela a maior ameaça à revolução não vem da oposição política de direita, mas sim da chamada direita "endógena" ou "chavista" e pertencente ao bloco revolucionário, incluindo elites do Estado e responsáveis partidários, desenvolverão um interesse mais profundo em defender o capitalismo global do que na transformação socialista.
A revolução tem mais de uma década. Está amadurecendo ou está
chegando a uma etapa de declínio e deformação?
Eu não diria que a revolução está em "declínio" ou "deformação". A guinada à esquerda na América Latina começou como uma rebelião contra o neoliberalismo.
Os regimes pós neoliberais empreenderam suaves reformas redistributivas e nacionalizações limitadas, particularmente de recursos energéticos e serviços públicos que anteriormente haviam sido privatizados. Eles foram capazes de reativar a acumulação. Mas o pós-neo-liberalismo que atualmente não caminha em direção a uma profunda transformação socialista, está rapidamente a atingir
os seus limites. O processo bolivariano enfrenta contradições, problemas e limitações, tal como todos os projetos históricos. Eu diria que tanto a revolução venezuelana como os processos boliviano e equatoriano podem estar a rebelar-se contra os limites da reforma redistributiva dentro da lógica do capitalismo global, especialmente considerando a atual crise do capitalismo global. O anti-neoliberalismo que não desafia mais fundamentalmente a própria lógica do capitalismo choca-se contra
limitações que podem agora ter sido atingidas.
Pode ser que a melhor ou a única defesa da revolução seja radicalizar e
aprofundar o processo, pressionar pelo avanço de transformações estruturais que vão além da redistribuição. O fato é que a burguesia venezuelana pode ter sido deslocada em parte do poder político, mas ainda detém grande parte do controle economico. Romper tal controle implica uma mudança mais significativa na propriedade e nas relações de classe. Isto por sua vez significa romper a dominação do capital, do capital global e dos seus agentes locais.
Recordemos as lições da Nicarágua e de outras revoluções. Alianças multi-classe geram contradições desde que a etapa da lua-de-mel da reforma redistributiva e dos programas sociais fáceis alcancem o seu limite. Então as alianças multi-classe começam a entrar em colapso porque há contradições fundamentais entre distintos projetos e interesses de classe. Nesse ponto, uma revolução deve definir
mais claramente o seu projeto de classe; não apenas no discurso ou na política mas na transformação estrutural real.
A um nível mais técnico, poderíamos dizer que as contradições geradas pela tentativa de romper a dominação do capital global não são uma falha da Revolução. A Venezuela ainda é um país capitalista no qual a lei do valor, da acumulação de capital, está operativa. Esforços para estabelecer uma lógica contrária – uma lógica da necessidade social e da distribuição social – chocam-se contra a lei do valor. Mas numa sociedade capitalista violar a lei do valor lança tudo na loucura, gerando muitos problemas e novos desequilíbrios que a contrarevolução é capaz de aproveitar. Isto é o desafio para qualquer revolução orientada para o socialismo dentro do capitalismo global.
William I. Robinson é professor de Sociologia, Universidade da Califórnia –
Santa Bárbara
A "Revolução Bolivariana" de Chávez tem sido muito popular entre os
pobres. Poderia explicar como a sociedade venezuelana tem mudado
desde que Chávez chegou ao poder?
Em primeiro lugar, vamos reconhecer que a Revolução Bolivariana colocou o socialismo democrático na agenda mundial depois de atravessarmos um período na década de 1990 em que muitos ficavam mesmo alarmados em falar de socialismo, quando parecia que o capitalismo global havia atingido o pico da sua hegemonia e quando alguns na esquerda compravam a tese do "fim da história".
A Revolução Bolivariana deu às massas pobres e em grande medida afrocaribenhas a sua voz pela primeira vez desde a guerra da independência do colonialismo espanhol. O governo Chávez reorientou prioridades para a maioria
pobre. Ele foi capaz de utilizar os rendimentos do petróleo, em particular, para desenvolver saúde, educação e outros programas sociais que tiveram resultados dramáticos na redução da pobreza, eliminando virtualmente o analfabetismo e
melhorando a saúde da população. Organizações internacionais e agências têm reconhecido estas notáveis realizações sociais.
Contudo, como alguém que visita a Venezuela regularmente, eu diria que a mudança mais fundamental desde que Chávez chegou ao poder não é a destes indicadores sociais mas sim o despertar político e sócio-psicológico da maioria pobre – um vasto processo popular de mobilização das bases, expressão cultural, participação política e participação no poder. A velha elite e a burguesia foram
parcialmente substituídas no Estado e do poder político formal – embora não inteiramente. Mas o medo real e o ressentimento dos velhos grupos dominantes,
o pânico e o seu ódio contra Chávez é porque eles sentiram deslizar do seu domínio a capacidade confortável de exercer dominação cultura e sóciopsicológica sobre as classes populares como o fizeram durante décadas, mesmo
séculos. Naturalmente, ali ainda há outros muitos mecanismos através dos quais a burguesia e os agentes políticos do antigo regime são capazes de exercer sua influência, particularmente através dos meios de comunicação que em grande medida ainda estão nas suas mãos.
Quão avançados são os planos de nacionalização de Chávez? Há alguma
evidência de que eles levam aos resultados desejados?
A grande mudança econômica óbvia foi a recuperação do petróleo do país para um projeto popular – e mesmo que haja ainda uma burocrática oligarquia PDVSA.Outras empresas chave, tais como a siderurgia, foram nacionalizadas. E o setor cooperativo – com todos os seus problemas – tem se ampliado. No entanto, o poder econômico ainda está em grande medida nas mãos da burguesia.
A estratégia da revolução tem sido erguer novas instituições paralelas e também tentar "colonizar" o velho Estado. Mas o Estado venezuelano ainda é em grande medida um Estado capitalista. A questão chave é: como pode um projeto de transformação avançar enquanto opera através de um Estado corrupto, clientelista, burocrático e muitas vezes inerte legado pelo antigo regime? Se forças revolucionárias e socialistas chegam ao poder dentro de um processo político capitalista como você confronta o Estado capitalista e os entreves que ele
coloca nos processos de transformação? De fato, na Venezuela, e também na Bolívia, as instituições do Estado muitas vezes atuam para constranger, diluir e cooptar lutas de massas vindas de baixo.
Do meu ponto de vista, na Venezuela a maior ameaça à revolução não vem da oposição política de direita, mas sim da chamada direita "endógena" ou "chavista" e pertencente ao bloco revolucionário, incluindo elites do Estado e responsáveis partidários, desenvolverão um interesse mais profundo em defender o capitalismo global do que na transformação socialista.
A revolução tem mais de uma década. Está amadurecendo ou está
chegando a uma etapa de declínio e deformação?
Eu não diria que a revolução está em "declínio" ou "deformação". A guinada à esquerda na América Latina começou como uma rebelião contra o neoliberalismo.
Os regimes pós neoliberais empreenderam suaves reformas redistributivas e nacionalizações limitadas, particularmente de recursos energéticos e serviços públicos que anteriormente haviam sido privatizados. Eles foram capazes de reativar a acumulação. Mas o pós-neo-liberalismo que atualmente não caminha em direção a uma profunda transformação socialista, está rapidamente a atingir
os seus limites. O processo bolivariano enfrenta contradições, problemas e limitações, tal como todos os projetos históricos. Eu diria que tanto a revolução venezuelana como os processos boliviano e equatoriano podem estar a rebelar-se contra os limites da reforma redistributiva dentro da lógica do capitalismo global, especialmente considerando a atual crise do capitalismo global. O anti-neoliberalismo que não desafia mais fundamentalmente a própria lógica do capitalismo choca-se contra
limitações que podem agora ter sido atingidas.
Pode ser que a melhor ou a única defesa da revolução seja radicalizar e
aprofundar o processo, pressionar pelo avanço de transformações estruturais que vão além da redistribuição. O fato é que a burguesia venezuelana pode ter sido deslocada em parte do poder político, mas ainda detém grande parte do controle economico. Romper tal controle implica uma mudança mais significativa na propriedade e nas relações de classe. Isto por sua vez significa romper a dominação do capital, do capital global e dos seus agentes locais.
Recordemos as lições da Nicarágua e de outras revoluções. Alianças multi-classe geram contradições desde que a etapa da lua-de-mel da reforma redistributiva e dos programas sociais fáceis alcancem o seu limite. Então as alianças multi-classe começam a entrar em colapso porque há contradições fundamentais entre distintos projetos e interesses de classe. Nesse ponto, uma revolução deve definir
mais claramente o seu projeto de classe; não apenas no discurso ou na política mas na transformação estrutural real.
A um nível mais técnico, poderíamos dizer que as contradições geradas pela tentativa de romper a dominação do capital global não são uma falha da Revolução. A Venezuela ainda é um país capitalista no qual a lei do valor, da acumulação de capital, está operativa. Esforços para estabelecer uma lógica contrária – uma lógica da necessidade social e da distribuição social – chocam-se contra a lei do valor. Mas numa sociedade capitalista violar a lei do valor lança tudo na loucura, gerando muitos problemas e novos desequilíbrios que a contrarevolução é capaz de aproveitar. Isto é o desafio para qualquer revolução orientada para o socialismo dentro do capitalismo global.
William I. Robinson é professor de Sociologia, Universidade da Califórnia –
Santa Bárbara
Os desafios do socialismo no século 21-1° parte
Postado por Attman e Kamadon
Entrevista com Chronis Polychroniou, editor do diário grego Eleftherotypia
Por William I. Robinson
Há histórias preocupantes vindo da Venezuela. A situação na fronteira
está tensa, há uma nova base militar colombiana próxima à fronteira, o
acesso dos EUA a várias novas bases na Colômbia... Será que o regime se
preocupa com uma possível invasão? Se sim, quem está para intervir?
Chronis Polychroniou - O governo venezuelano está preocupado acerca de uma possível invasão estadunidense. Contudo, penso que os EUA estão seguindo uma estratégia de intervenção mais refinada que podíamos denominar guerra de atrito.
Já vimos esta estratégia em outros países, tais como na Nicarágua na década de1980, ou mesmo no Chile sob Allende. É o que no léxico da CIA é conhecido como desestabilização, e na linguagem do Pentágono é chamado guerra política – o que
não significa que não haja componente militar. É uma estratégia que combina ameaças militares e hostilidades com operações psicológicas, campanhas de desinformação, propaganda, sabotagem econômica, pressões diplomáticas,mobilização de forças da oposição política dentro do país, manipulação de setores insatisfeitos e a exploração de queixas legítimas entre a população. A estratégia é
hábil em aproveitar dos próprios erros e limitações da revolução, tais como corrupção, clientelismo e oportunismo, os quais devemos reconhecer que são problemas sérios na Venezuela. É hábil também em agravar e manipular problemas materiais, tais como escassez, inflação dos preços e assim por diante.
O objetivo é destruir a revolução tornando-a não funcional, pela exaustão da vontade da população em continuar a lutar para forjar uma nova sociedade e,
deste modo, minar a base social de massa da revolução. De acordo com a estratégia dos EUA a revolução deve ser destruída fazendo com que entre em colapso por si mesma, minando a notável hegemonia que o chavismo e o bolivarianismo foram capazes de alcançar dentro da sociedade civil venezuelana ao longo da última década. Os EUA esperam provocar Chávez de modo a que tome a posição de transformar o processo socialista democrático num processo autoritário. Na visão deles, Chávez finalmente será removido do poder através de
um cenário produzido pela guerra de atrito constante – seja através de eleições, de um putsch militar interno, um levantamento, deserções em massa do campo revolucionário, ou uma combinação de fatores que não podem ser antecipados.
Neste contexto, as bases militares na Colômbia proporcionam uma plataforma crucial para operações de inteligência e reconhecimento contra a Venezuela e
também para a infiltração militar contra-revolucionária, a sabotagem econômica e grupos terroristas. Estes grupos de infiltração destinam-se a provocar reações do governo e sincronizar a provocação armada com toda a gama de agressões políticas, diplomáticas, psicológicas, econômicas e ideológicas que fazem parte da guerra de atrito.
Além disso, a simples ameaça de agressão militar dos EUA que as bases
representam constitui uma poderosa operação psicológica estadunidense destinada a elevar as tensões dentro da Venezuela, forçar o governo a posições
extremistas ou a fortalecer as forças internas anti-chavistas e contrarevolucionárias.
Entretanto, é importante verificar que as bases militares fazem parte de uma estratégia mais ampla dos EUA em relação a toda a América Latina. Os EUA e a direita na América Latina lançaram uma contra-ofensiva para reverter a guinada para a esquerda ou a chamada "Maré Rosa". A Venezuela é o epicentro de um emergente bloco contra-hegemônico na América Latina. Mas a Bolívia, Equador e os movimentos sociais e forças políticas de esquerda da região são igualmente
alvos desta contra-ofensiva tal como a Venezuela. O golpe em Honduras deu ímpeto a esta contra-ofensiva e fortaleceu a direita e as forças contrarevolucionárias.
A Colômbia tornou-se o epicentro regional da contra-revolução –
realmente um bastião do fascismo século 21.
Entrevista com Chronis Polychroniou, editor do diário grego Eleftherotypia
Por William I. Robinson
Há histórias preocupantes vindo da Venezuela. A situação na fronteira
está tensa, há uma nova base militar colombiana próxima à fronteira, o
acesso dos EUA a várias novas bases na Colômbia... Será que o regime se
preocupa com uma possível invasão? Se sim, quem está para intervir?
Chronis Polychroniou - O governo venezuelano está preocupado acerca de uma possível invasão estadunidense. Contudo, penso que os EUA estão seguindo uma estratégia de intervenção mais refinada que podíamos denominar guerra de atrito.
Já vimos esta estratégia em outros países, tais como na Nicarágua na década de1980, ou mesmo no Chile sob Allende. É o que no léxico da CIA é conhecido como desestabilização, e na linguagem do Pentágono é chamado guerra política – o que
não significa que não haja componente militar. É uma estratégia que combina ameaças militares e hostilidades com operações psicológicas, campanhas de desinformação, propaganda, sabotagem econômica, pressões diplomáticas,mobilização de forças da oposição política dentro do país, manipulação de setores insatisfeitos e a exploração de queixas legítimas entre a população. A estratégia é
hábil em aproveitar dos próprios erros e limitações da revolução, tais como corrupção, clientelismo e oportunismo, os quais devemos reconhecer que são problemas sérios na Venezuela. É hábil também em agravar e manipular problemas materiais, tais como escassez, inflação dos preços e assim por diante.
O objetivo é destruir a revolução tornando-a não funcional, pela exaustão da vontade da população em continuar a lutar para forjar uma nova sociedade e,
deste modo, minar a base social de massa da revolução. De acordo com a estratégia dos EUA a revolução deve ser destruída fazendo com que entre em colapso por si mesma, minando a notável hegemonia que o chavismo e o bolivarianismo foram capazes de alcançar dentro da sociedade civil venezuelana ao longo da última década. Os EUA esperam provocar Chávez de modo a que tome a posição de transformar o processo socialista democrático num processo autoritário. Na visão deles, Chávez finalmente será removido do poder através de
um cenário produzido pela guerra de atrito constante – seja através de eleições, de um putsch militar interno, um levantamento, deserções em massa do campo revolucionário, ou uma combinação de fatores que não podem ser antecipados.
Neste contexto, as bases militares na Colômbia proporcionam uma plataforma crucial para operações de inteligência e reconhecimento contra a Venezuela e
também para a infiltração militar contra-revolucionária, a sabotagem econômica e grupos terroristas. Estes grupos de infiltração destinam-se a provocar reações do governo e sincronizar a provocação armada com toda a gama de agressões políticas, diplomáticas, psicológicas, econômicas e ideológicas que fazem parte da guerra de atrito.
Além disso, a simples ameaça de agressão militar dos EUA que as bases
representam constitui uma poderosa operação psicológica estadunidense destinada a elevar as tensões dentro da Venezuela, forçar o governo a posições
extremistas ou a fortalecer as forças internas anti-chavistas e contrarevolucionárias.
Entretanto, é importante verificar que as bases militares fazem parte de uma estratégia mais ampla dos EUA em relação a toda a América Latina. Os EUA e a direita na América Latina lançaram uma contra-ofensiva para reverter a guinada para a esquerda ou a chamada "Maré Rosa". A Venezuela é o epicentro de um emergente bloco contra-hegemônico na América Latina. Mas a Bolívia, Equador e os movimentos sociais e forças políticas de esquerda da região são igualmente
alvos desta contra-ofensiva tal como a Venezuela. O golpe em Honduras deu ímpeto a esta contra-ofensiva e fortaleceu a direita e as forças contrarevolucionárias.
A Colômbia tornou-se o epicentro regional da contra-revolução –
realmente um bastião do fascismo século 21.
"Tadeu Moraçaba, o escritor"
Postado por Attman e Kamadon
Frei Betto
Conheci Tadeu Moraçaba em Belo Horizonte, nos tempos em que repórteres e editores se confraternizavam, todo fim de tarde, na Gruta Metrópole, na rua da Bahia. Seu sonho: ser reconhecido como escritor.
Há anos se empenhava em redigir seu primeiro romance, convencido de que, assim, passaria a integrar essa brilhante galáxia de seres inteligentes e criativos que, sem medo do ridículo, se dão inclusive o direito de se celebrarem como imortais.
Tadeu Moraçaba tinha certeza: tivesse nascido em Paris, em 1780, ou em São Petersburgo, em 1840, não ficaria horas debruçado sobre a máquina de escrever, à espera de inspiração.
Há escritores que são, antes de tudo, seus principais personagens. Já nascem em épocas e lugares imantados de clima literário. Tadeu Moraçaba acreditava que, para James Joyce, deve ter sido fácil deixar fluir o enredo de Ulisses que, como uma onda de calor que se desprende do chão, emergia das ruas de Dublin!
Dostoiévski encontrou na Rússia czarista, que o levou a amargar quatro anos de cárcere, o cenário adequado às suas histórias. Émile Zola escrevia como um experiente orador político derrama sua verve indignada sobre fatos que envergonham a espécie humana.
No entanto, Guimarães Rosa precisou regressar ao sertão de Minas e travestir-se de vaqueiro para criar Diadorim. Em Minas, a literatura é sofrida, fruto da tenacidade de poucos que ousam romper o misterioso silêncio de suas montanhas. Em Minas, a arte é bela e muda, como os profetas de Aleijadinho. No máximo, o lamento gutural, monocórdio, teluricamente gregoriano, do canto de Milton Nascimento.
Minas se espelha na timidez uniformizada dos coretos de praça. Nada de orquestras ou sinfônicas. Na literatura, meia dúzia de obras por autor já é um luxo. Nada de estranho, portanto, que Augusto dos Anjos tenha se abrigado em Minas para escrever um único poema, Eu, suficiente para fazê-lo figurar entre os mais talentosos poetas brasileiros. Fernando Sabino ficou como autor de Encontro marcado.
Tadeu Moraçaba experimentava as mesmas dores de parto, agravadas por sua sólida convicção de que seria o Balzac ou o Hemingway da literatura mineira.
A última vez que nos vimos foi no restaurante Scotellaro, onde se comia um delicioso filé com feijão tropeiro. Perguntei-lhe pelo romance. Lamentou não conseguir dar prosseguimento. Perfeccionista, mais rasgava laudas do que criava. Indaguei quanto tempo ele trabalhava no texto:
- Seis anos.
- Seis anos?!
- Sim, e acho pouco. Quero personagens tão elaborados quanto os que trafegam nas páginas de Thomas Mann ou Steinbeck. Almejo uma figura tão universal quanto Dom Quixote e Eugene Oneguin. A igreja do Pilar, em Ouro Preto, levou vinte anos para ser construída. Marguerite Yourcenar demorou vinte e sete para escrever Memórias de Adriano, e Goethe, quase sessenta para terminar Fausto. Não tenho pressa.
De fato, ninguém acreditava no talento literário de Tadeu Moraçaba. Era considerado um jornalista medíocre, editor adjunto de política. Seu texto era prolixo e arrastado. Quando repórter, redigia em cinco laudas o que caberia em três.
Convencido de seu talento, Tadeu Moraçaba tomava como ofensa o fato de os editores não darem destaque às suas matérias. Afinal, passou a considerar o jornalismo uma atividade menor, necessária para garantir-lhe o salário e permitir que, em casa, se dedicasse à elaboração de sua obra-prima.
Tinha tudo planejado: cinquenta capítulos, oitocentas laudas. "Livro fino não provoca impacto", dizia. Mantinha em seu quarto-escritório-biblioteca, próximo à estação rodoviária, o organograma completo do romance, acompanhado do gráfico da complexa trama entre os personagens.
Perguntei se ele lia muito. Retrucou que era mais escritor do que leitor. E apelou para Rimbaud que, aos dezenove anos e, segundo ele, pouca leitura, havia criado o clássico Uma estação no inferno, dando-se ao luxo de encerrar sua carreira literária aos trinta e dois.
Tadeu Moraçaba sofria de ansiedade autoral, essa síndrome que toma conta de quem mais almeja ser publicado do que criar uma obra literária consistente. Nunca tive acesso aos originais do romance. Não tenho ideia se logrou terminá-lo.
Passamos muitos anos sem nos ver. Agora soube que o encontraram morto na pensão em que morava. Do lado da cama, uma lixeira com papéis queimados. Junto, um bilhete: "Obra completa de Tadeu Moraçaba."
* Escritor e assessor de movimentos sociais
Frei Betto
Conheci Tadeu Moraçaba em Belo Horizonte, nos tempos em que repórteres e editores se confraternizavam, todo fim de tarde, na Gruta Metrópole, na rua da Bahia. Seu sonho: ser reconhecido como escritor.
Há anos se empenhava em redigir seu primeiro romance, convencido de que, assim, passaria a integrar essa brilhante galáxia de seres inteligentes e criativos que, sem medo do ridículo, se dão inclusive o direito de se celebrarem como imortais.
Tadeu Moraçaba tinha certeza: tivesse nascido em Paris, em 1780, ou em São Petersburgo, em 1840, não ficaria horas debruçado sobre a máquina de escrever, à espera de inspiração.
Há escritores que são, antes de tudo, seus principais personagens. Já nascem em épocas e lugares imantados de clima literário. Tadeu Moraçaba acreditava que, para James Joyce, deve ter sido fácil deixar fluir o enredo de Ulisses que, como uma onda de calor que se desprende do chão, emergia das ruas de Dublin!
Dostoiévski encontrou na Rússia czarista, que o levou a amargar quatro anos de cárcere, o cenário adequado às suas histórias. Émile Zola escrevia como um experiente orador político derrama sua verve indignada sobre fatos que envergonham a espécie humana.
No entanto, Guimarães Rosa precisou regressar ao sertão de Minas e travestir-se de vaqueiro para criar Diadorim. Em Minas, a literatura é sofrida, fruto da tenacidade de poucos que ousam romper o misterioso silêncio de suas montanhas. Em Minas, a arte é bela e muda, como os profetas de Aleijadinho. No máximo, o lamento gutural, monocórdio, teluricamente gregoriano, do canto de Milton Nascimento.
Minas se espelha na timidez uniformizada dos coretos de praça. Nada de orquestras ou sinfônicas. Na literatura, meia dúzia de obras por autor já é um luxo. Nada de estranho, portanto, que Augusto dos Anjos tenha se abrigado em Minas para escrever um único poema, Eu, suficiente para fazê-lo figurar entre os mais talentosos poetas brasileiros. Fernando Sabino ficou como autor de Encontro marcado.
Tadeu Moraçaba experimentava as mesmas dores de parto, agravadas por sua sólida convicção de que seria o Balzac ou o Hemingway da literatura mineira.
A última vez que nos vimos foi no restaurante Scotellaro, onde se comia um delicioso filé com feijão tropeiro. Perguntei-lhe pelo romance. Lamentou não conseguir dar prosseguimento. Perfeccionista, mais rasgava laudas do que criava. Indaguei quanto tempo ele trabalhava no texto:
- Seis anos.
- Seis anos?!
- Sim, e acho pouco. Quero personagens tão elaborados quanto os que trafegam nas páginas de Thomas Mann ou Steinbeck. Almejo uma figura tão universal quanto Dom Quixote e Eugene Oneguin. A igreja do Pilar, em Ouro Preto, levou vinte anos para ser construída. Marguerite Yourcenar demorou vinte e sete para escrever Memórias de Adriano, e Goethe, quase sessenta para terminar Fausto. Não tenho pressa.
De fato, ninguém acreditava no talento literário de Tadeu Moraçaba. Era considerado um jornalista medíocre, editor adjunto de política. Seu texto era prolixo e arrastado. Quando repórter, redigia em cinco laudas o que caberia em três.
Convencido de seu talento, Tadeu Moraçaba tomava como ofensa o fato de os editores não darem destaque às suas matérias. Afinal, passou a considerar o jornalismo uma atividade menor, necessária para garantir-lhe o salário e permitir que, em casa, se dedicasse à elaboração de sua obra-prima.
Tinha tudo planejado: cinquenta capítulos, oitocentas laudas. "Livro fino não provoca impacto", dizia. Mantinha em seu quarto-escritório-biblioteca, próximo à estação rodoviária, o organograma completo do romance, acompanhado do gráfico da complexa trama entre os personagens.
Perguntei se ele lia muito. Retrucou que era mais escritor do que leitor. E apelou para Rimbaud que, aos dezenove anos e, segundo ele, pouca leitura, havia criado o clássico Uma estação no inferno, dando-se ao luxo de encerrar sua carreira literária aos trinta e dois.
Tadeu Moraçaba sofria de ansiedade autoral, essa síndrome que toma conta de quem mais almeja ser publicado do que criar uma obra literária consistente. Nunca tive acesso aos originais do romance. Não tenho ideia se logrou terminá-lo.
Passamos muitos anos sem nos ver. Agora soube que o encontraram morto na pensão em que morava. Do lado da cama, uma lixeira com papéis queimados. Junto, um bilhete: "Obra completa de Tadeu Moraçaba."
* Escritor e assessor de movimentos sociais
"Desafios econômico-políticos da televisão brasileira"
Postado por Attman e Kamadon
IHU - Unisinos *
Adital - TV completa 60 anos no Brasil com modelo econômico em crise e politicamente contestada. Leia o artigo de Valério Cruz Brittos.
Por Valério Cruz Brittos*
A televisão aberta brasileira completa 60 anos neste ano de 2010, sendo duplamente desafiada. Politicamente, torna-se, a cada dia, mais insustentável que um meio com tamanha consequência na vida dos brasileiros siga fornecendo pautas, orientações e mesmo construções da realidade unicamente a partir de interesses econômicos. Economicamente, está em crise mundial o modelo tradicional de TV, sustentado na publicidade, com um número limitado de canais, baixíssimo nível de interatividade, transmissão de uma única programação por emissora e grade com horários estabelecidos pela operadora.
Começando pela questão política, a contradição televisiva é gravíssima: se a influência da televisão é enorme, sendo a principal fonte de referência da maioria da população brasileira (e em grande parte das vezes de modo exclusivo, já que o índice de leitura é muito baixo no país), são privatizados os atos de midiatização, ou seja, de tornar públicos acontecimentos, reivindicações, posições, identidades e todas as manifestações. Em outras palavras: o negócio (a venda de publicidade e seu faturamento) é privado, do dono da empresa, mas a definição da agenda, do que tornar conhecido pela sociedade, logicamente não poderia ser.
O paradoxo não é novo. Desde sua implantação no Brasil, o quadro televisivo nacional estabeleceu-se como um mercado conformado por poucas obrigações impostas aos seus operadores, agentes privados que recebem uma concessão do Estado. Sendo uma concessão, deveria cumprir uma série de compromissos para desenvolver tal atividade, que, ao ser delegada pelo ente estatal à iniciativa privada, não perde seu caráter público, por não deixar de interferir (independentemente da valoração) na vida das pessoas, na sua forma de compreender o mundo e de reunir informações básicas para decidir e movimentar-se.
A diferença, agora, é que a sociedade brasileira está mais atenta ao problema da comunicação. Nas últimas duas décadas, a sociedade civil tem se mobilizado em prol da democratização comunicacional, não obstante o empecilho maior para publicizar tal luta: a resistência dos conglomerados de mídia, que temem qualquer regulamentação que venha a dar alguma dimensão pública ao setor. Para isso, não raro fazem propaganda quando apregoam desenvolverem jornalismo, como no caso das coberturas extremamente enviesadas da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), acontecida em dezembro último.
Mas como hoje existem mais brechas para driblar o cerco das tradicionais indústrias culturais, a Confecom realizou-se com a adesão e os resultados satisfatórios, contribuindo para a conscientização de que a comunicação, tendo origem e repercussão públicas, deve ser discutida por toda a sociedade. O controle já existe e não tem como deixar de existir nas sociedades complexas: o que se deve refletir é a mudança de um patamar de controle privado por outro, de controle público. Para isso, é preciso o engajamento do máximo possível do conjunto social, numa discussão que ainda tem muito a ser travada e avançada.
Já no plano econômico, as dificuldades são mais novas, mas não menos graves. Vêm desde os anos 90 do século passado e passam pela proliferação de novas e antigas plataformas de distribuição de conteúdos tradicionalmente concebidos como próprios da televisão. Com isso, ao mesmo tempo em que mais agentes buscam a atenção do público (a ser trocada por dinheiro no mercado, quando se tratam de empresas, a forma hegemônica), é fragilizado o próprio princípio de venda de publicidade, já que não há uma garantia de que o consumidor de televisual prestará atenção nos intervalos comerciais e mesmo que não trocará de canal.
Tudo isso molda a Fase da Multiplicidade da Oferta, a qual caracteriza a TV na atualidade, promovendo a intensificação da disputa entre os capitais, o que implica em maior popularização dos conteúdos e, ao contrário do que indica o senso comum, menos diversidade, já que, ao obter êxito, um formato ou temática passa a ser insistentemente explorada pelos demais competidores. A concorrência não se dá mais somente intramídia, mas de forma intermídia, com operadores culturais em suportes diversos, disputando a atenção do público. O problema segue intensificando-se, pela aceleração da inovação tecnológica.
O receptor mudou, e, hoje, por todas as transformações que afetaram e afetam o mundo, quer participar mais, tendencialmente rejeitando um sistema com poucas opções e uma baixíssima capacidade de intervenção, até para definir quais horários assistir às suas atrações preferidas. Há uma nova TV em ebulição, que está na Internet, em aparelhos móveis (como o telefone celular), na fila, no avião, no ônibus, no trem, no elevador e até no televisor conhecido de todos. Tal surgimento de novas concepções televisivas desestabiliza os atuais concessionários, radicalizando a Fase da Multiplicidade da Oferta e permitindo afirmar-se que o amanhã será ainda mais diverso do hoje. Mas em qual direção dependerá dos movimentos da humanidade, reforçando hegemonias ou criando novas circularidades.
[* Professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coordenador do Grupo de Pesquisa CEPOS (apoiado pela Ford Foundation), doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e vice-presidente da Unión Latina de Economía Política de la Información, la Comunicación y la Cultura (ULEPICC-Federación). E-mail: val.bri@terra.com.br].
* Instituto Humanitas Unisinos
IHU - Unisinos *
Adital - TV completa 60 anos no Brasil com modelo econômico em crise e politicamente contestada. Leia o artigo de Valério Cruz Brittos.
Por Valério Cruz Brittos*
A televisão aberta brasileira completa 60 anos neste ano de 2010, sendo duplamente desafiada. Politicamente, torna-se, a cada dia, mais insustentável que um meio com tamanha consequência na vida dos brasileiros siga fornecendo pautas, orientações e mesmo construções da realidade unicamente a partir de interesses econômicos. Economicamente, está em crise mundial o modelo tradicional de TV, sustentado na publicidade, com um número limitado de canais, baixíssimo nível de interatividade, transmissão de uma única programação por emissora e grade com horários estabelecidos pela operadora.
Começando pela questão política, a contradição televisiva é gravíssima: se a influência da televisão é enorme, sendo a principal fonte de referência da maioria da população brasileira (e em grande parte das vezes de modo exclusivo, já que o índice de leitura é muito baixo no país), são privatizados os atos de midiatização, ou seja, de tornar públicos acontecimentos, reivindicações, posições, identidades e todas as manifestações. Em outras palavras: o negócio (a venda de publicidade e seu faturamento) é privado, do dono da empresa, mas a definição da agenda, do que tornar conhecido pela sociedade, logicamente não poderia ser.
O paradoxo não é novo. Desde sua implantação no Brasil, o quadro televisivo nacional estabeleceu-se como um mercado conformado por poucas obrigações impostas aos seus operadores, agentes privados que recebem uma concessão do Estado. Sendo uma concessão, deveria cumprir uma série de compromissos para desenvolver tal atividade, que, ao ser delegada pelo ente estatal à iniciativa privada, não perde seu caráter público, por não deixar de interferir (independentemente da valoração) na vida das pessoas, na sua forma de compreender o mundo e de reunir informações básicas para decidir e movimentar-se.
A diferença, agora, é que a sociedade brasileira está mais atenta ao problema da comunicação. Nas últimas duas décadas, a sociedade civil tem se mobilizado em prol da democratização comunicacional, não obstante o empecilho maior para publicizar tal luta: a resistência dos conglomerados de mídia, que temem qualquer regulamentação que venha a dar alguma dimensão pública ao setor. Para isso, não raro fazem propaganda quando apregoam desenvolverem jornalismo, como no caso das coberturas extremamente enviesadas da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), acontecida em dezembro último.
Mas como hoje existem mais brechas para driblar o cerco das tradicionais indústrias culturais, a Confecom realizou-se com a adesão e os resultados satisfatórios, contribuindo para a conscientização de que a comunicação, tendo origem e repercussão públicas, deve ser discutida por toda a sociedade. O controle já existe e não tem como deixar de existir nas sociedades complexas: o que se deve refletir é a mudança de um patamar de controle privado por outro, de controle público. Para isso, é preciso o engajamento do máximo possível do conjunto social, numa discussão que ainda tem muito a ser travada e avançada.
Já no plano econômico, as dificuldades são mais novas, mas não menos graves. Vêm desde os anos 90 do século passado e passam pela proliferação de novas e antigas plataformas de distribuição de conteúdos tradicionalmente concebidos como próprios da televisão. Com isso, ao mesmo tempo em que mais agentes buscam a atenção do público (a ser trocada por dinheiro no mercado, quando se tratam de empresas, a forma hegemônica), é fragilizado o próprio princípio de venda de publicidade, já que não há uma garantia de que o consumidor de televisual prestará atenção nos intervalos comerciais e mesmo que não trocará de canal.
Tudo isso molda a Fase da Multiplicidade da Oferta, a qual caracteriza a TV na atualidade, promovendo a intensificação da disputa entre os capitais, o que implica em maior popularização dos conteúdos e, ao contrário do que indica o senso comum, menos diversidade, já que, ao obter êxito, um formato ou temática passa a ser insistentemente explorada pelos demais competidores. A concorrência não se dá mais somente intramídia, mas de forma intermídia, com operadores culturais em suportes diversos, disputando a atenção do público. O problema segue intensificando-se, pela aceleração da inovação tecnológica.
O receptor mudou, e, hoje, por todas as transformações que afetaram e afetam o mundo, quer participar mais, tendencialmente rejeitando um sistema com poucas opções e uma baixíssima capacidade de intervenção, até para definir quais horários assistir às suas atrações preferidas. Há uma nova TV em ebulição, que está na Internet, em aparelhos móveis (como o telefone celular), na fila, no avião, no ônibus, no trem, no elevador e até no televisor conhecido de todos. Tal surgimento de novas concepções televisivas desestabiliza os atuais concessionários, radicalizando a Fase da Multiplicidade da Oferta e permitindo afirmar-se que o amanhã será ainda mais diverso do hoje. Mas em qual direção dependerá dos movimentos da humanidade, reforçando hegemonias ou criando novas circularidades.
[* Professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coordenador do Grupo de Pesquisa CEPOS (apoiado pela Ford Foundation), doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e vice-presidente da Unión Latina de Economía Política de la Información, la Comunicación y la Cultura (ULEPICC-Federación). E-mail: val.bri@terra.com.br].
* Instituto Humanitas Unisinos
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