terça-feira, 27 de outubro de 2009

Lendas Urbanas


Uma Vela para o Diabo

Por Kamadon

Esse causo foi contado pelo meu pai. Ele disse que foi um amigo dele quem lhe contou. Numa cidade mineira há um certo tempo atrás, havia uma moça. Ela era muito religiosa e todo os dias ia à igreja e acendia um pacote de velas. Só que sempre ao sair da igreja, ela acendia uma vela e colocava no chão... a vela era para o Diabo. Um certo tempo depois, ela acabou se casando com um filho de um fazendeiro muito rico da região. O marido não era muito bom mas tinha seus méritos, porém uma noite ele chegou bêbado em casa. Ameaçou bater na mulher, pegou uma faca e tentou matá-la. Como ele estava bêbado foi facil derrubá-lo. Ela tomou a faca dele e no meio da confusão acabou matando-o. O pai do rapaz ficou furioso e deu queixa na polícia, e pelo fato de ser rico e poderoso nenhum advogado quis defendê-la. No dia do julgamento ela estava sozinha, toda chorosa e cabisbaixa, até que entrou pela porta um homem muito bem vestido e elegante e disse que a defenderia. Ninguém entendeu nada, mas o rapaz era tão bom como advogado que ela acabou sendo absolvida, alegando legítima defesa. Depois de tudo, a moça foi agradeçer ao homem e lhe disse que estava muito grata, mas não tinha como pagá-lo. Aí ele disse que ela já havia lhe pagado, pois todo dia acendia uma vela para ele fora da igreja.

Lendas Urbanas


" O Xadrez Macabro "

Por Kamadon

:: No ano de 1920, em uma escola na Ucrânia, existia uma competição de xadrez anual, onde as crianças tinham que disputar com outras escolas, muitas crianças levavam essa historia a serio mas outras não, mas nenhuma criança tinha o desejo de jogar quanto João tinha. No dia 25 de abril de 1920 (dia da competição de xadrez), chamaram João para ser o jogador nº. 102, ele aceitou na hora, e depois em diante ele passou a treinar todos os dias. Marcelo não ficou nada contente com o que o professor fez,pois ele sempre era o primeiro, então numa noite escura, Marcelo convidou João, Laura e Diego para irem a uma festinha que ele estava fazendo, eles aceitaram e pegaram carona, mas como Diego tinha carro levou Laura, Marcelo ficou encarregado de levar João, então no caminho para a festa, Marcelo parou em frente a um matagal, e lá matou João com um tiro na cabeça, foi tudo perfeito, ele enterrou e esquartejou o corpo de João, ele também trazia em seu carro o xadrez da competição, e enterrou junto com o corpo. Passado alguns anos, Marcelo já era pai de 2 filhos, e na escola de seus dois filhos também tinha competição, lá na escola tinha um velho xadrez que sempre as crianças usavam. Começou a competição, e as crianças começaram a jogar, quando a primeira criança deu o cheque-mate, a criança oponente caiu MORTA, como se tivesse levado um tiro na cabeça, todos ficaram paralisados, e quando viraram o xadrez, tinha escrito: "TUDO NA VIDA PASSA, MENOS A SEDE DE VINGANÇA"!!!!!

Lendas Urbanas


" Tesouros Pernetta de Pinhais "

Por Kamadon

:: Lendas do Tesouro Pernetta de Pinhais Estas estórias foram contadas por Mara Sandra e Neusa Souza . Elas me autorizaram a colocar estes causos na Internet . A cidade de Pinhais possui muitas lendas urbanas , leremos algumas abaixo : Tesouro Enterrado : Reza a lenda que grande parte da cidade de Pinhais , no Paraná , era uma fazenda que pertencia a Família Pernetta no século dezenove , época que era comum enterrar tesouros nas propriedades rurais . O tempo passou e no século vinte , os descendentes dos Pernettas venderam grande quantidade das suas terras , que acabaram fazendo parte do município . Algum tempo depois , alguns pedreiros de uma construtora , foram contratados para fazer casas populares para conjuntos habitacionais . Dentre eles estava o cruel Roberto e o bondoso Mauro que tinha problemas neurológicos . Um certo dia , Roberto estava cavando a terra e encontrou um tacho repleto de ouro , saiu correndo e ficou bobo . Algumas horas depois , sem entender nada , Mauro foi até o local onde o colega estava trabalhando e carregou o tesouro . Meses depois este rapaz foi encontrado curado , de seu problema neurológico , e morando numa linda casa bem equipada . Após este acontecimento surgiu o boato de que o moço tinha achado o tesouro enterrado que pertenceu a família Pernetta . O Anel do Poeta : Reza a lenda que o escritor Emiliano Pernetta fazia parte de uma seita mística e tinha um anel encantado que trazia–lhe sorte . Um certo dia uma menina chamada Patrícia , moradora da cidade de Pinhais que tinha muita dificuldade de aprender na escola , estava cavando o quintal da sua casa . De repente , ela achou um lindo anel em forma de estrela com uma caveira dentro. Sem se preocupar com a origem da jóia , a garota colocou o adorno em seu dedo . Após isto sua personalidade modificou–se totalmente : ela passou a escrever poesias e a tirar notas boas na escola , o que não acontecia antes . A menina chegou até a ganhar um troféu na Olimpíada de Matemática . Mas com o tempo ela ficou esnobe e passou a desprezar seus amigos . Uma vez Ângela , sua melhor amiga , pediu ajuda para resolver problemas de Aritmética , porém Patrícia chamou sua colega de burra . Na manhã seguinte , a garota viu que o anel não estava mais em seu dedo . Assim procurou a jóia em todos os lugares , mas não achou . Naquele instante ela voltou a ter dificuldades para aprender e tudo voltou como era antes . Deste jeito surgiu o boato de que a menina achou o anel poderoso do poeta , porém a jóia desapareceu porque ela ficou metida com seus novos dons .

sábado, 24 de outubro de 2009

Liberdade religiosa, in-tolerância religiosa

Postado por Attman e Kamadon

Rev. Israel Cardoso

Fala-se muito em liberdade religiosa. A nossa Constituição no artigo 5º, inciso VI diz que "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias". A Declaração Universal dos Direitos humanos, também afirma que a Liberdade religiosa é um dos direitos fundamentais. A pesar de o Estado Brasileiro ser laico, essa não é a impressão que temos às vezes, pois, uma boa parte dos feriados nacionais e municipais são na verdade feriados religiosos cristãos. Sei que os que crêem na autenticidade desses feriados com certeza vão querer dar uma fundamentação histórica para defender seus interesses religiosos ou políticos. Uma coisa é o rastro da religião deixado por conseqüência da colonização, outra coisa é o preconceito e intolerância religiosa visibilizados em nossa sociedade no dia a dia. É comum vermos no interior de órgãos públicos um crucifixo na parede, uma imagem de Maria ou uma Bíblia em um lugar de destaque. O Estado Brasileiro é laico, ele não deve ter, e não tem religião. Hospitais, por exemplo, já são equipados com capela "cristã" para prestarem assistência religiosa; muitos se aproveitam desse momento de fragilidade dos doentes e seus familiares para lhes convencerem a sair da sua religião e virem para a "verdadeira". Não é difícil vermos também celebrações ecumênicas que na maioria das vezes são dirigidas apenas por padres e/ou pastores. É comum presenciarmos em praças públicas, paradas de ônibus, ou mesmo dentro dos ônibus, alguém empunhando uma Bíblia como se fosse uma metralhadora, pregando um "evangelho" com palavras agressivas, apelativas, demonizantes; condenando ao inferno quem não crer como ele/ela. Isso é liberdade religiosa ou abuso da liberdade religiosa?

Se vivemos em um Estado Laico, por que no lugar do crucifixo não se coloca também, por exemplo, uma imagem de Buda, uma foto de Maomé, uma imagem de uma Divindade africana, um símbolo Bah’ai, uma imagem de Krishna, etc.? Por que no aniversário de emancipação de uma cidade, no lugar de um culto católico e/ou evangélico, não se faz uma mística macro-religiosa com a presença de sacerdotes cristãos e não cristãos? Esses últimos são indignos? Não são filhos de Deus? Eu não creio assim! Já pensaram se uma Yalorixá (Mãe de santo) entrasse em um ônibus e começasse a falar sobre a influência dos orixás na vida das pessoas, pedindo que os passageiros seguissem tal religião? Como os passageiros cristãos agiriam? Creio que no mínimo ela seria "convidada" a descer do ônibus ou parar de falar. Muitos cristãos ainda hoje se auto-afirmam donos da verdade. Exterminaram índios e negros, mataram bruxas, maçons, etc. e ainda hoje, condenam ao inferno os homossexuais, divorciados, muçulmanos, Espíritas etc. A pesar de tudo isso, ainda falam de Paz do Senhor. Creio que os cristãos precisam muito aprender sobre paz e tolerância religiosa com religiões como o Budismo, o Candomblé, a Fé Bah’ai, o Induísmo, o Kardecismo etc. Esses têm muito a nos ensinar sobre tolerância religiosa; pois boa parte deles têm sido vítimas de intolerância por parte dos cristãos sem revidar os ataques. Não pode haver uma cultura de paz, sem tolerância religiosa. Precisamos cada vez mais tirar as vendas do preconceito religioso e da intolerância religiosa, só assim, poderemos ver Deus nos outros. A grande questão é que a "Igreja de Cristo" está bem distante d’Ele e do seu projeto de vida. Ela prefere se basear em Dogmas que ela mesma criou, prefere ser fundamentalista na interpretação literal dos textos bíblicos, ao invés de se fundamentar no amor universal do Ser absoluto que é Pai, Mãe e irmão de todos e todas.

"Ninguém, nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." (Nelson Mandela).

Lembrança para libertar

Postado por Attman e Kamadon

Marcelo Barros *

Países da África enfrentam situações de vida mais pobres e difíceis. Talvez a partir deste pretexto, na República Democrática do Congo e em países vizinhos, o governo dos Estados Unidos faz prospecção de petróleo e várias empresas multinacionais desenvolveram minas de diamantes. Pagam ao governo local preços irrisórios pela ocupação da terra e dão trabalho a moradores locais por um prato de comida ou por uma taxa mínima, pago ao governo e não aos trabalhadores. Estes não vêem salário, mesmo se se matam em um trabalho pesado e realizado em condições de risco. Neste contexto, compreendemos por que a ONU faz questão, cada ano, de dedicar o 23 de agosto como "dia internacional da lembrança do tráfico de escravos e de sua abolição". Não se trata apenas da recordação triste de um passado distante, hoje, superado. Ao contrário, os organismos internacionais calculam que quatro milhões de seres humanos, atualmente, são vítimas do tráfico de escravos. No Darfur e em alguns países da África, mercadores de escravos ainda se concentram nas fronteiras para vender crianças de oito a doze anos, por 500 ou 1000 dólares cada uma. Nos países da antiga União Soviética e na Europa Oriental, mulheres e moças de menor idade são seqüestradas e levadas para ser escravas sexuais nas estradas da Espanha, Itália e da França. Nesse tráfico, o preço por uma pessoa pode chegar até 30 mil dólares. Assim, esse negócio macabro gera até 12 bilhões de dólares por ano. E, infelizmente, o Brasil é dos países mais envolvidos neste comércio de seres humanos para a Europa.


Entre nós, a escravidão no campo ainda é atual em fazendas do interior, nas quais, cada ano, descobrem-se peões, trazidos de regiões longínquas para trabalhar sob ameaça de armas ou a pagar dívidas que nunca poderão saldar. A Pastoral da Terra e organismos do Ministério do Trabalho, assim como o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) têm contado com a política federal para prender pessoas inescrupulosas que cometem este crime. Estes organismos de defesa do trabalhador denunciam publicamente estes casos e, principalmente lutam no Congresso pela desapropriação imediata de fazendas escravistas para fins de reforma agrária.

A principal conseqüência da escravidão, esta chaga que atinge a história da humanidade e assolou tantos de nossos países, é a exclusão social que ainda marca os descendentes de escravos. Quando se deu a lei da abolição, as pretensas vítimas a serem indenizadas foram os proprietários das fazendas, engenhos e casas grandes que se queixavam de suas perdas econômicas. Nenhum governo pensou em indenizar negros ou índios, vítimas diretas do tráfico e da escravidão. A única saída destes foi encher as ruas das cidades ou os engenhos com barracos infectos, onde os brancos nem se arriscavam a entrar. Hoje, esta população continua sendo uma das vítimas do comércio de drogas, nova versão do tráfico humano que emprega crianças e adolescentes para correr os riscos da prisão e da morte.

Todos estes fatos podem ser lidos e sabidos como dados frios de uma engrenagem sem alma e de um mundo sem rumo. Quem vive em um país injusto como o nosso lida cotidianamente com crianças de rua, com pessoas marginalizadas e com filas de doentes nos postos de INSS. Além disso, a justiça funciona quase sempre contra os empobrecidos e só em casos raros alcança alguém da classe alta que pode pagar fiança e garantir advogados caros.

Há quem pense que a convivência permanente com tanta desgraça gere no ser humano uma espécie de insensibilidade como a de uma pessoa que conviveu tanto com um determinado vírus que acabou sendo vacinado/a. Na verdade, isso não é assim. Ninguém se torna mais capaz de sentir o sofrimento dos outros por saber menos ou por não ver as coisas que acontecem. Infelizmente, tanto no tempo em que os escravos eram oficialmente vendidos e comprados, até hoje em que mais de um bilhão de seres humanos vive em condições subhumanas, a imensa maioria das pessoas se preocupa em fazer algo para mudar esta situação. O que leva as pessoas à compaixão solidária é a opção de vida.

Uma espiritualidade ecumênica da paz e da justiça leva a pessoa a se deixar tocar por essa realidade, não apenas como um sentimento de pena diante do sofrimento eventual de alguém, mas como empatia de compaixão para com o outro, assim como pela convicção profunda de que o mundo não será sadio, enquanto toda e qualquer pessoa não for respeitada integralmente em sua dignidade humana. Quem foi tocado no íntimo pelo olhar de uma pessoa empobrecida ou explorada em seus direitos sabe que não se sai ileso deste encontro. É uma experiência que mexe tão profundamente com o mais íntimo do ser humano que, para muitos, pode ser um momento privilegiado de encontro com o Divino. Foi este encontro que levou o príncipe Sidartha Guatama a se transformar em Buda, assim como levou Jesus a ter suas entranhas movidas de amor uterino a ver as multidões abandonadas como "ovelhas sem pastor". Foi a partir deste encontro com o povo que ele testemunhou que o reinado divino está chegando ao mundo (Cf. Mc 6, 30- 34).

Ao falar desta solidariedade que transforma o mundo, assim se expressou sua santidade, o Dalai Lama: "A capacidade de empatia recíproca que todos possuímos deve ser desenvolvida. É o que, em tibetano, chamamos de shen dug ngal wa la mi so. É isso que provoca o sobressalto quando ouvimos um grito por socorro e é o que nos impede de fechar os olhos e ignorar a desgraça alheia".


* Monge beneditino e escritor

A Teologia da Libertação: Leonardo Boff e Frei Betto

Postado por Attman e Kamadon

Michael Löwy

Os cristãos comprometidos socialmente são um dos componentes mais ativos e importantes do movimento altermundista; particularmente, porém não somente na América Latina e especialmente no Brasil, país que acolheu as primeiras reuniões do Fórum Social Mundial (FSM). Um dos iniciadores do FSM, Chico Whitaker, membro da "Comissão Justiça e Paz" da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pertence a esta esfera de influência, o mesmo que o sacerdote belga François Houtart, amigo e professor de Camilo Torres, promotor da revista Alternatives Sud, fundador do "Centro Tricontinental" (CETRI) e uma das figuras intelectuais mais influentes do Fórum.
Podemos datar o nascimento dessa corrente, que poderíamos denominar como "cristianismo da libertação" no começo dos anos 60, quando a Juventude Universitária Católica brasileira (JUC), alimentada pela cultura católica francesa progressista (Emmanuel Mounier e a revista Esprit, o padre Lebret e o movimento "Economia y Humanismo", o Karl Marx do jesuíta J.Y. Calvez), formula por primeira vez, em nome do cristianismo, uma proposta radical de transformação social. Esse movimento se estende depois a outros países do continente e encontra, a partir dos anos 70, uma expressão cultural, política e espiritual na "Teologia da Libertação".


Os dois principias teólogos da libertação brasileiros, Leonardo Boff e Frei Betto, estão, portanto, entre os precursores e inspiradores do altermundismo; com seus escritos e suas palavras participam ativamente nas mobilizações do "movimento dos movimentos" e nos encontros do Fórum Social Mundial. Se sua influencia é muito significativa no Brasil, onde muitos militantes dos movimentos sociais, tais como sindicatos, MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e movimentos de mulheres provêm de comunidades eclesiais de base (CEBs) conhecidas na Teologia da Libertação, seus escritos também são muito conhecidos entre os cristãos de outros países, tanto da América Latina quando do resto do mundo.

Se houvesse que resumir a idéia central da Teologia da Libertação em uma só frase, seria "opção preferencial pelos pobres".

Qual é a novidade? Por ventura, a Igreja não esteve sempre, caritativamente, atenta ao sofrimento dos pobres? A diferença -capital- é que o cristianismo da libertação já não considera os pobres como simples objetos de ajuda, compaixão ou caridade, mas como protagonistas de sua própria história, artífices de sua própria libertação. O papel dos cristãos comprometidos socialmente é participar na "longa marcha" dos pobres rumo à "terra prometida" -a liberdade-, contribuindo para sua organização e emancipação sociais.

O conceito de "pobre" tem, obviamente, um profundo alcance religioso no cristianismo; porém, corresponde também a uma realidade social essencial no Brasil e na América Latina: a existência de uma imensa massa de despossuídos, tanto nas cidades quanto no campo, que não são todos proletários ou trabalhadores. Alguns sindicalistas cristãos latino-americanos falam de "pobretariado" para descrever essa classe de deserdados que não somente são vítimas da exploração, mas, sobretudo, são vítimas da exclusão social pura e simples.

O processo de radicalização das culturas católicas do Brasil e América Latina que desembocou na criação da Teologia da Libertação não vai desde a cúpula da Igreja para irrigar sua base, nem a base popular vai à cúpula (duas versões que se encontram nos discursos dos sociólogos ou historiadores do fenômeno); mas da periferia rumo ao centro. As categorias ou setores sociais do âmbito religioso que serão o motor da renovação são todos, de alguma forma, marginais ou periféricos com relação à instituição: movimentos, leigos da Igreja e seus capelães; expertos leigos, sacerdotes estrangeiros, ordens religiosas. Em alguns casos, o movimento alcança o "centro" e consegue influir nas Conferências Episcopais (particularmente no Brasil), em outros casos fica bloqueado nas "margens" da instituição.

A pesar de que existem divergências significativas entre os teólogos da libertação, na maioria de seus escritos encontramos repetidos os temas fundamentais que constituem uma saída radical da doutrina tradicional e estabelecida das Igrejas Católica e Protestante:

-Uma implacável acusação moral e social contra o capitalismo como sistema injusto e iníquo, como forma de pecado estrutural.
-O uso do instrumento marxista para compreender as causas da pobreza, as contradições do capitalismo e as formas da luta de classes.
-A opção preferencial a favor dos pobres e a solidariedade com sua luta de emancipação social.
-O desenvolvimento de comunidades cristãs de base entre os pobres como a nova forma da Igreja e como alternativa ao modo de vida individualista imposto pelo sistema capitalista.
-A luta contra a idolatria (não o ateísmo) como inimigo principal da religião, isto é, contra os novos ídolos da morte, adorados pelos novos faraós, pelos novos Césares e pelos novos Herodes: O consumismo, a riqueza, o poder, a segurança nacional, o Estado, os exércitos; em poucas palavras, "a civilização cristã ocidental".

Examinemos mais de perto os escritos de Leonardo Boff e de Frei Betto, cujas idéias contribuíram, sem dúvida, à formação da cultura político-religiosa do componente cristão do altermundismo.

O livro de Leonardo Boff -na época, membro da ordem franciscana,- Jesus Cristo libertador, (Petrópolis, Vozes, 1971), pode ser considerado como a primeira obra da Teologia da Libertação no Brasil. Essencialmente, trata-se de uma obra de exegese bíblica; porém um dos capítulos, possivelmente o mais inovador, intitulado "Cristologia desde América Latina", expressa o desejo de que a Igreja possa "participar de maneira crítica no arrranque global de libertação que a sociedade sul-americana conhece hoje". Segundo Boff, a hermenêutica bíblica de seu livro está inspirada pela realidade latino-americana, o que dá como resultado "a primazia do elemento antropológico sobre o eclesiástico, do utópico sobre o efetivo, do crítico sobre o dogmático, do social sobre o pessoal e da ortopráxis sobre a ortodoxia"; aqui se anunciam alguns dos temas fundamentais da Teologia da Libertação [1].

Personagem carismático, com uma cultura e uma criatividade enormes, ao mesmo tempo místico franciscano e combatente social, Boff converteu-se no principal representante brasileiro dessa nova corrente teológica. Em seu primeiro livro já encontramos referencias ao "Princípio Esperança", de Ernst Bloch, porém, progressivamente, no curso dos anos 70, os conceitos e temas marxistas cada vez mais aparecem em sua obra até converter-se em um dos componentes fundamentais de sua reflexão sobre as causas da pobreza e a prática da solidariedade com a luta dos pobres por sua libertação.

Rechaçando o argumento conservador que pretende julgar o marxismo pelas práticas históricas do chamado "socialismo real", Boff constata, não sem ironia, que o mesmo que o Cristianismo não se identifica com os mecanismos da Santa Inquisição, o marxismo não tem porque se equiparar aos "socialismos" existentes, que "não representam uma alternativa desejável por conta de sua tirania burocrática e pelo sufocamento das liberdades individuais". O ideal socialista pode e deve assumir outras formas históricas [2]

Em 1981, Leonardo Boff publica o livro "Igreja, Carisma e Poder", uma reviravolta na história da Teologia da Libertação: por primeira vez desde a Reforma protestante, um sacerdote católico coloca em xeque, de maneira direta, a autoridade hierárquica da Igreja, seu estilo de poder romano-imperial, sua tradição de intolerância e dogmatismo -simbolizada durante vários séculos pela Inquisição, pela repressão de toda crítica vinda de baixo e o rechaço da liberdade de pensamento. Denuncia também a pretensão de infalibilidade da Igreja e o poder pessoal excessivo dos papas, que compara, não sem ironia, com o poder do secretário geral do Partido Comunista soviético.

Convocado pelo Vaticano em 1984 para um "colóquio" com a Santa Congregação para a Doutrina da Fé (antes, o Santo Ofício), dirigida pelo Cardenal Ratzinger, o teólogo brasileiro não abaixa a cabeça, nem nega retratar-se; permanece fiel a suas convicções e Roma o condena a um ano de "silencio obsequioso"; finalmente, frente à multiplicação dos protestos no Brasil e em outros lugares, a sansão foi reduzida em vários meses. Dez anos mais tarde, cansado do hostigamento, das proibições e das exclusões de Roma, Boff abandona a ordem dos franciscanos e a Igreja, sem, no entanto, abandonar sua atividade de teólogo católico.

A partir dos anos 90, interessa-se cada vez mais pelas questões ecológicas que aborda com o espírito de amor místico e franciscano pela natureza e com uma perspectiva de crítica radical do sistema capitalista. Será o objeto do livro Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, (S. Paulo, Ática, 1995) e escreve inúmeros ensaios filosóficos, éticos e teológicos que abordam esta problemática. Segundo Leonardo Boff, o encontro entre a Teologia da Libertação e a ecologia é resultado de uma constatação: "A mesma lógica do sistema dominante de acumulação e da organização social que conduz à exploração dos trabalhadores, leva também à pilhagem de nações inteiras, e, finalmente, à degradação da natureza".

Portanto, a Teologia da Libertação aspira a uma ruptura com a lógica desse sistema, uma ruptura radical que aponta a "libertar os pobres, os oprimidos e os excluídos, as vítimas da voracidade da acumulação injustamente distribuída e libertar a Terra, essa grande vítima sacrificada pela pilhagem sistemática de seus recursos, que põe em risco o equilíbrio físico, químico e biológico do planeta como um todo". O paradigma opressão / libertação aplica-se, pois, para ambas: as classes dominadas e exploradas por um lado; e a Terra e suas espécies vivas, por outro [3].

Amigo próximo de Leonardo Boff (publicaram alguns livros juntos), Frei Betto é, sem dúvida, um dos mais importantes teólogos da libertação do Brasil e da América Latina e um dos principais animadores das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica (JEC) no início dos anos 60, Carlos Alberto Libânio Christo (seu nome verdadeiro) começou sua educação espiritual e política com Santiago Maritain, Emmanuel Mounier, o padre Lebret e o grande intelectual católico brasileiro Alceu Amoroso Lima, porém, durante sua atividade militante na União Nacional dos Estudantes (UNE), descobriu O Manifesto Comunista e A Ideologia Alemã. Quando entrou como noviço na ordem dos dominicanos, em 1965, naquela época um dos principias focos de elaboração de uma interpretação liberacionista do cristianismo, já havia tomado firmemente a resolução de consagrar-se à luta da revolução brasileira [4].

Impressionado com a pobreza do mundo e pela ditadura militar estabelecida em 1964, incorpora-se a uma rede de dominicanos que simpatizam ativamente com a resistência armada contra o regime. Quando a repressão se intensificou, em 1969, socorreu a inúmeros revolucionários, ajudando-os a esconder-se ou a cruzar a fronteira para o Uruguai ou para a Argentina. Essa atividade custou-lhe cinco anos de prisão, de 1969 a 1973.

Em um livro fascinante publicado no Brasil e reeditado mais de dez vezes, Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella (Río de Janeiro, Ed. Bertrand, 1987), traça o retrato do dirigente do principal grupo revolucionário armado, assassinado pela polícia em 1969, bem como o de seus amigos dominicanos presos nas rodas da repressão e destroçados pela tortura. O último capítulo está consagrado à trágica figura de Frei Tito de Alencar, tão cruelmente torturado pela polícia brasileira que jamais recobrou seu equilíbrio psíquico: libertado da prisão e exilado na França, sofreu uma aguda mania de perseguição e cometeu suicídio em 1974.

As Cartas da Prisão de Betto, publicadas em 1977, mostram seu interesse pelo pensamento de Marx, a quem designava, para burlar a censura política, "o filósofo alemão". Em uma carta de outubro de 1971 a uma amiga, abadesa beneditina, observava: "a teoria econômico-social do filósofo alemão não teria existido sem as escandalosas contradições sociais provocadas pelo liberalismo econômico, que o conduziram a percebê-las, analisá-las e estabelecer princípios capazes de sobrepô-los" [5].

Depois de sua libertação da prisão, em 1973, Frei Betto consagrou-se à organização das comunidades de base. Durante os anos seguintes publicou vários folhetos que, em linguagem simples e inteligível, explicavam o sentido da Teologia da Libertação e o papel das CEBs. Logo, converteu-se em um dos principais dirigentes dos encontros intereclesiais nacionais, onde as CEBs de todas as regiões do Brasil intercambiam suas experiências sociais, políticas e religiosas. Em 1980 organizou o 4º Congresso internacional dos Teólogos do Terceiro Mundo.

Desde 1979 Betto é responsável pela Pastoral Operária de São Bernardo do Campo, cidade industrial do subúrbio de São Paulo, onde nasceu o novo sindicalismo brasileiro. Sem vincular-se a nenhuma organização política, não escondia suas simpatias pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Após a vitória eleitoral do candidato do PT, Luis Inácio Lula da Silva, em 2001, foi designado pelo novo presidente para dirigir o Programa "Fome Zero"; no entanto, descontente com a orientação econômica do governo, prisioneiro dos paradigmas neoliberais, demitiu-se de seu posto dois anos depois.

Enquanto alguns teólogos tentam reduzir o marxismo a uma "mediação sócio-analítica", Betto defende, em seu ensaio de 1986, Cristianismo e Marxismo, uma interpretação muito mais ampla da teoria marxista que inclui a ética e a utopia: "o marxismo é, sobretudo, uma teoria da práxis revolucionária (...). A prática revolucionária sobrepõe-se ao conceito e não se esgota na análise estritamente científica porque, necessariamente, inclui dimensões éticas, místicas e utópicas (...). Sem essa relação dialética teoria-práxis, o marxismo se esclerosa e se transforma em ortodoxia acadêmica perigosamente manipulável pelos que controlam os mecanismos do poder". Esta última frase é, sem dúvida, uma referencia crítica a URSS e aos países do socialismo real que constituem, em sua maneira de ver, uma experiência deformada por sua "ótica objetivista", sua "tendência economicista" e, sobretudo, por sua "metafísica do Estado".

Betto e Boff, como a imensa maioria dos teólogos da libertação, não aceitam a redução, tipicamente liberal, da religião a um "assunto privado" do indivíduo. Para eles, a religião é um assunto eminentemente público, social e político. Essa atitude não é necessariamente uma oposição à laicidade; de fato, o cristianismo da libertação situa-se nas antípodas do conservadorismo clerical:

-Predicando a separação total entre a Igreja e o Estado e a ruptura da cumplicidade tradicional entre o clero e os poderosos.
-Negando a idéia de um partido ou um sindicato católico e reconhecendo a necessária autonomia dos movimentos políticos e sociais populares.
-Rechaçando toda idéia de regresso ao "catolicismo político" pré-crítico e sua ilusão de uma "nova cristandade".
-Favorecendo a participação dos cristãos nos movimentos ou partidos populares seculares.

Para a Teologia da Libertação não existe contradição entre essa exigência de democracia moderna e secular e o compromisso dos cristãos no âmbito político. Trata-se de dois enfoques diferentes da relação entre religião e política: desde o ponto de vista institucional é imprescindível que prevaleça a separação e a autonomia; porém, no âmbito ético-político o imperativo essencial é o compromisso.

Levando em consideração essa orientação eminentemente prática e combativa, não é de se estranhar que muitos dos dirigentes e ativistas dos movimentos sociais mais importantes dos últimos anos -desde 1990-, fossem formados na América Latina segundo as idéias da Teologia da libertação. Podemos dar como exemplo o MST, um dos movimentos mais impressionantes da história contemporânea do Brasil, por sua capacidade de mobilização, seu radicalismo, sua influência política e sua popularidade (além de ser uma das principais forças da organização do Fórum Social Mundial). A imensa maioria dos dirigentes ou ativistas do MST procedem das CEBs ou da Pastoral da Terra: sua formação religiosa, moral, social e, em certa medida, política, efetuou-se nas filas da "Igreja dos pobres". No entanto, desde sua origem, nos anos 70, o MST optou por ser um movimento leigo, secular e autônomo e independente com relação á Igreja. A imensa maioria de seus militantes é católica; porém, também há evangélicos e não crentes (poucos). A doutrina (socialista!) e a cultura do MST não fazem referência ao cristianismo; porém, podemos dizer que o estilo de militância, a fé na causa e a disposição ao sacrifício de seus membros, muitos têm sido vítimas de assassinatos e até de matanças coletivas durante os últimos anos, têm, provavelmente, fontes religiosas.

As correntes e os militantes cristãos que participam no movimento altermundista são muito diversos -ONGs, militantes dos sindicatos e partidos de esquerda, estruturas próximas à Igreja- e não partilham das mesmas escolhas políticas. Porém, a imensa maioria se reconhece nas grandes linhas da Teologia da Libertação, tal como a formularam Leonardo Boff, Frei Betto, Clodovis Boff, Hugo Assmann, Dom Tomás Balduino, Dom Helder Camara, Dom Pedro Casaldáliga, e tantos outros conhecidos e menos conhecidos, e partilham sua crítica ética e social do capitalismo e seu compromisso pela libertação dos pobres.

Missa de Cura e Libertação???

Postado por Attman e Kamadon

Pe. José Ionilton Lisboa de Oliveira, SDV

Esta pergunta tem me levado a refletir muito nos últimos tempos. Por isto resolvi colocar por escrito o que penso sobre o tema, a fim de provocar uma conversa e ajudar no encaminhamento de tomada de posição da Igreja no Brasil.
Tenho afirmado a quem me fala destas "missas de cura e de libertação" que elas não existem, pois na verdade toda missa, toda Eucaristia é curadora, é libertadora, afinal de contas Jesus, o Libertador, está presente, vivo, ressuscitado em todas as celebrações da Eucaristia, onde quer que ela seja celebrada, debaixo de uma árvore, numa simples capela em uma favela ou na Catedral de São Pedro em Roma. Nem tão pouco Jesus se faz mais presente e cura, liberta, de modo especial quando o presidente da celebração é este ou aquele padre. Todos os padres são iguais no "produzir" sacramentalmente o Cristo presente na Eucaristia. Aprendi da Igreja, quando estudei Teologia, que não existe diferença entre uma Eucaristia e outra. Será que a doutrina da Igreja sobre a Eucaristia mudou e eu não me atualizei? Creio que não mudou! Sendo assim, afirmo com muita convicção que padres que celebram e promovem as "missas de cura e libertação", não estão, infelizmente, agindo biblicamente, teologicamente, eclesialmente e liturgicamente corretos.


Os textos bíblicos que falam da instituição da Eucaristia não falam de que uma Eucaristia seria de cura e libertação e outra não. Simplesmente Jesus disse: "Tomem e comam, isto é o meu corpo. Bebam dele todos, pois isto é o meu sangue" (Mt 26, 26-28). Jesus não fez distinção de quem estaria presidindo a celebração da Eucaristia e Jesus não falou de que a Eucaristia iria ser celebrada em algum lugar especial para curar as pessoas. Jesus apenas disse: "Façam isto em memória de mim" (Lc 22, 19). Então, por que alguns padres e bispos inventaram a "missa de cura e libertação"?

Isto na verdade não existe, podemos afirmar que se trata de uma forma de exploração da fé do povo, especialmente dos que sofrem. Faz-me lembrar o episódio do Templo de Jerusalém: Jesus fazendo um chicote e expulsando os vendilhões (cf. Jo 2,14-17). Jesus disse: "Tirem isto daqui!" (v. 16). Podemos imaginar Jesus dizendo a quem anda usando a Eucaristia para promover as "missas de cura e libertação": "Parem de enganar o povo!" E tome chicote!

O Concílio Vaticano II assim nos fala sobre a Eucaristia: "O nosso Salvador instituiu na última ceia, na noite em que foi entregue, o sacrifício eucarístico do seu corpo e do seu sangue para perpetuar no decorrer dos séculos, até ele voltar, o sacrifício da cruz, e para confiar assim à Igreja, sua esposa amada, o memorial da sua morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da glória futura" (Sacrosanctum Concilium, 47). O Concílio fala de que a Eucaristia perpetua o sacrifício da cruz, portanto, da doação da vida de Jesus por nós. E não fala de celebração onde curas irão ocorrer. O Concílio fala, também, da Eucaristia como sinal de unidade, o que entra em contradição com o que vem se propagando de que Jesus vem curar e libertar em algumas missas e em outras não, rompendo assim com a unidade e universalidade da presença de Cristo na Igreja, onde quer que ela esteja. Estas "missas de cura e libertação" criam divisão entre nós: uns padres são privilegiados por Cristo, com curas nas missas e outros padres são menosprezados, já que em suas missas Cristo não cura. Eu fico com a doutrina do Concílio Vaticano II e não com a invencionice de alguns irmãos presbíteros.

O Direito Canônico quando legisla sobre a Eucaristia não fala de "missa de cura e libertação" e nem de diferença entre um lugar e outro e nem fala da existência de graduação entre os presbíteros que presidem a Eucaristia, onde Jesus estaria curando em algumas celebrações da Eucaristia e em outras não (cf. Cânones 897 a 958). Assim está escrito no Cânon 899: "A celebração eucarística é a ação do próprio Cristo e da Igreja, na qual, pelo ministério do sacerdote, o Cristo Senhor, presente sob as espécies de pão e vinho, se oferece a Deus Pai e se dá como alimento espiritual aos fiéis unidos à sua oblação". Quero ressaltar a afirmativa "ação do próprio Cristo". Seja onde for e seja quem for o presidente, a celebração da Eucaristia é "ação do próprio Cristo". Se é assim, porque uma missa será de "cura e libertação" e outra não? Haverá dois Cristos? Um que cura e outro não? Outra afirmativa do Cânon 899 é que o Cristo "se oferece a Deus Pai e se dá como alimento espiritual aos fiéis". O Cânon não fala de que quem frequenta uma "missa de cura e libertação" receberá uma graça especial de Cristo. O Cânon fala de "alimento espiritual aos fiéis". "Alimento" e não cura. "Aos fiéis" e não para alguns fiéis privilegiados que frequentam uma "missa de cura e libertação". "Aos fiéis", significa dizer todos os fiéis. Lembro-me aqui das palavras de Pedro: "Estou compreendendo que Deus não faz diferença entre as pessoas" (At 10, 34). Se Deus não faz, somos nós a Igreja, ou melhor, alguns padres que vão fazer? Falar de que Jesus cura em uma determinada missa e em outra não, não é fazer diferença entre as pessoas? Eu prefiro ficar com Pedro: "Estou compreendendo que Deus não faz diferença entre as pessoas".

Curar é ação divina. Deus cura sempre. Cura ordinariamente pelo uso da medicina e cura extraordinariamente, no que chamamos de milagre. O milagre vem da fé da pessoa e do poder e do querer de Deus, assim nos ensina Jesus: "Vocês acreditam que eu possa fazer isso? Eles responderam: ‘Sim, Senhor’. Então Jesus tocou os olhos deles, dizendo: ‘Que aconteça conforme vocês acreditaram’ E os olhos deles se abriram" (Mt 9, 28-29). Outro texto: "Jesus ficou admirado e disse aos que o seguiam: ‘Eu garanto a vocês: nunca encontrei uma fé igual a essa em ninguém de Israel!’. (...) Então Jesus disse ao oficial: ‘Vá, e seja feito conforme você acreditou’" (Mt 8, 10.13). Poderíamos citar tantas outras passagens dos evangelhos, mas estas duas citações bastam para confirmar que o milagre depende tão somente da fé da pessoa que pede a graça especial e de Deus que aceita realizar o que a pessoa crente pede, independente do lugar e de ter ou não algum intermediário. Creio que seja uma ofensa a Deus, é usar o nome d’Ele em vão (cf. Ex 20, 7), determinar que um milagre somente acontece se a pessoa for participar de uma "missa de cura e libertação", celebrada em um determinado lugar e por um determinado presbítero.

Chego mesmo a pensar que este tipo de celebração é uma forma de mentir e enganar o povo, transferindo para o nível do milagre, aquilo que deveria ser conquista da cidadania, tornando-se uma fuga do compromisso social da fé. Jesus nos ensina: "Vocês é que têm de lhes dar de comer" (Mc 6, 37). Não devemos transferir para Deus o que podemos e devemos fazer. Tiago nos alerta: "Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo" (1, 27). Religião verdadeira é aquela que serve e liberta aos pobres e não aquela que explora e engana aos pobres; religião verdadeira é aquela que se mantém "livre da corrupção do mundo" e não aquela que usa das mesmas artimanhas do mundo para garantir a conquista de mais um fiel para a Igreja. Faz-me lembrar o ensinamento da CNBB nas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2008-2010 no nº 178: "O compromisso social tem sua raiz na própria fé; deve ser manifestado por toda a comunidade cristã, e não apenas por algum grupo ou pastoral social; uma comunidade insensível às necessidades dos irmãos e à luta para vencer as injustiças celebra indignamente a liturgia". Existe algum compromisso social de luta para vencer as injustiças nas celebrações das "missas de cura e libertação"? Se sim, qual, como e onde? Se não, celebra-se "indignamente a liturgia". Palavras da CNBB!

Nas "Orientações pastorais sobre a Renovação Carismática Católica" é dito que se devia evitar "alimentar um clima de exaltação da emoção e do sentimento, que enfatiza apenas a dimensão subjetiva da experiência de fé" (Documentos da CNBB 53, nº 49). E diz também: "A fé não pode ser reduzida a uma busca de satisfação de exigências íntimas e de resposta às necessidades imediatas"(nº 47). Mais uma recomendação: "Ao implorar a cura, nos encontros da RCC ou em outras celebrações, não se adote qualquer atitude que possa resvalar para um espírito milagreiro e mágico, estranho à prática da Igreja Católica" (nº 59). Nas chamadas "missas de cura e libertação" estão acontecendo tudo isto: exaltação da emoção e do sentimento, ênfase na dimensão subjetiva da fé, satisfação de exigências íntimas, respostas às necessidades imediatas, espírito milagreiro e mágico. Tudo que a CNBB recomendou evitar, está acontecendo nas "missas de cura e libertação". E aí? Ninguém vai tomar nenhuma providência? A CNBB vai ficar desmoralizada, vai perder sua força como orientadora da ação evangelizadora na Igreja do Brasil? Cada movimento, cada pastoral, cada presbítero, cada bispo, cada consagrado, cada leigo vai fazer o que quer e como quer? Vamos sepultar de vez as diretrizes e orientações da CNBB?

Recentemente uma Religiosa me dizia que o pároco da cidade onde ela mora, apoiado pelo bispo, resolveu celebrar esta "missa de cura e libertação". Questionado por ela, justificou tal tipo de celebração dizendo que por meio das "missas de cura e libertação" as pessoas, em busca de milagres, viriam à Igreja e poderiam assim ouvir a Palavra de Deus e serem catequizadas. Eu disse à Irmã: será? E repito: será que quem vai a estas "missas de cura e libertação", ouve mesmo aquilo que a Igreja tem a dizer, ou vão apenas porque esperam receber um milagre?

Finalizo perguntando: onde é que estes meus irmãos na fé e no ministério ordenado se fundamentam para celebrar e apoiar estas "missas de cura e libertação" em suas paróquias e dioceses?

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O fim da era dos movimentos sociais brasileiros - Rudá Ricci *

Postado por Attman e Kamadon

1. Começando pelo início: o conceito

O conceito é conhecido. E surgiu a partir de uma leitura conservadora e perplexa da emergência do mundo urbano-industrial, pela pena de Lorenz Von Stein, em 1840. Este autor defendia a necessidade de uma ciência da sociedade que se dedicasse ao estudo dos movimentos sociais, em especial, ao estudo do movimento operário francês e do socialismo. O tema surge no bojo de um processo de estranhamento das instituições públicas e de alguns segmentos urbanos frente ao acelerado processo de industrialização da Europa, principalmente na França e Rússia. Perplexidade que acabou por definir um olhar sobre os movimentos sociais: movimentos que reagiam ao sentimento de marginalização (Barrington Moore Júnior chegou a elaborar um livro denominado Utopia que procurou definir motivações populares para várias revoluções a partir deste sentimento de marginalização e injustiça) ou mesmo práticas corporativas, muitas vezes fundadas no clientelismo. Desta ultima vertente, alguns autores denominaram vários movimentos sociais contemporâneos de metacorporativistas. Philippe Schmitter distinguiu corporativismo de Estado (cujas associações de interesse são dependentes do Estado e por ele penetradas) de corporativismo societário (cujas associações são autônomas e penetram no Estado). Maria Hermínia Tavares de Almeida sugeriu que tais organizações corporativas seriam instrumentos de intermediação de interesses em lugar de representações, na medida em que expressam interesses próprios e desempenham papel ativo na definição dos interesses de seus membros, assumindo o que a autora denomina de governo privado. Todo este debate para entendermos que, aos poucos, as práticas dos movimentos sociais, principalmente os brasileiros, foram se alterando dos anos 80 para cá. Nasceram dentro da descrição clássica da sociologia, como mobilizações não institucionalizadas de segmentos sociais que buscavam direitos. Mas foram se institucionalizando, tornando-se organizações hierarquizadas, com fontes de financiamento sustentáveis, com corpo diretivo e administrativo estáveis, participantes (indiretos ou não) de esferas de elaboração de políticas públicas, no interior do Estado.

Maria da Glória Gohn escreveu o que foi possivelmente o estudo mais exaustivo publicado no Brasil sobre as várias teorias de movimentos sociais, o livro Teoria dos Movimentos Sociais: Paradigmas Clássicos e Contemporâneos. Neste livro, cuja primeira edição data de 1997 (e sua 7ª edição foi publicada em 2007), a autora distinguiu as teorias européias das norte-americanas. Desde o início, sugeriu que a produção brasileira sobre o tema foi mais empírica-descritiva que analítica, em virtude da importação estandartizada dos conceitos produzidos no exterior. Os norte-americanos, fortemente influenciados pelo funcionalismo de Parsons, focariam as análises nas escolhas racionais e mobilização de recursos, nos ciclos de protestos. A Escola de Chicago dobraria sua atenção sobre a disfunção da ordem, retomando o conceito de anomia, elaborado por Émile Durkheim. Os europeus focariam, segundo a autora, na identidade coletiva, no projeto e cultura política. Estariam mais vinculados às abordagens neomarxistas ou vinculados aos conceitos de novos atores e direitos sociais (que daria emergência ao conceito de "novos movimentos sociais", muito empregado no Brasil nos anos 90).
Mas destaca, em todas vertentes, um consenso: movimentos sociais são fluídos, formados a partir de espaços não consolidados das estruturas e organizações sociais.

Ocorre que nos anos 90 este conceito entrou em declínio nos estudos acadêmicos. Mas permaneceu como nomenclatura de muitas forças sociais, em especial, as vinculadas aos movimentos sociais dos anos 80. O conceito de sociedade civil vai substituindo a centralidade em vários estudos e investigações sociais. No Brasil a mudança parece fazer ainda mais sentido porque muitos movimentos sociais se institucionalizaram. Basta uma breve olhada sobre as coletâneas que foram publicadas recentemente. Leonardo Avritzer organizou uma coletânea sobre "A Participação em São Paulo", procurando analisar vários aspectos da cultura associativa da maior cidade do país. Muitos autores (onde me incluo) publicaram nesta coletânea estudos que revelam uma forte institucionalização e segmentação política e social nas experiências associativas. Evelina Dagnino, em outra coletânea ("Democracia, Sociedade Civil e Participação") dedica parte significativa dos estudos para avaliar justamente o processo de institucionalização da participação da sociedade civil nas experiências de gestão participativa (como orçamento participativo). Mesmo na América Latina, vários estudos (como o de Christian Adel Mirza, "Movimientos sociales y sistemas políticos en América Latina, publicado pela Clacso), relacionam nitidamente o antes conceito de movimentos sociais (não institucionalizado) a partir do Estado e instituições políticas dos países do continente.

Ainda que a partir desta brevíssima exposição, fica a dúvida estampada a partir até mesmo da literatura especializada: a Era dos Movimentos Sociais teria terminado? A fragmentação social em curso e a ampliação (ao menos formal) da participação da sociedade civil em esferas públicas (no interior do aparelho de Estado, em especial no Brasil) teriam reformatado o que antes denominávamos de movimentos sociais?



2. Movimentos sociais brasileiros como representação ou parte integrante de anéis burocráticos de elaboração de políticas públicas?

Entramos, assim, no tema deste artigo: poderíamos, ainda, utilizar tecnicamente o conceito de movimentos sociais para descrever organizações sociais, pastorais sociais, ONGs, entidades que adotam como principal espaço de atuação as arenas de elaboração de políticas públicas de Estado?

Em vários ensaios e artigos venho destacando a emergência de uma nova rede de gestão de políticas sociais institucionalizadas que são os conselhos de gestão pública (totalizando 30 mil em todo país) . Segundo o IBGE, 75% dos municípios brasileiros adotam alguma modalidade de participação da sociedade civil na determinação de prioridades orçamentárias na área social. Quem se dedica à implantação de sistemas de controle social sobre políticas públicas, formação de lideranças sociais para compreensão do orçamento público e monitoramento de resultados das políticas sociais ou descentralização administrativa voltada para a participação da sociedade civil na gestão pública sabe que a demanda para estes serviços vem aumentando exponencialmente em todo país. Motivados ou premidos pelas exigências constitucionais, pelos convênios com órgãos federais (dados importantes fornecidos pelo IBGE revelam que governadores e ministérios lideram a criação de conselhos de gestão pública paritários, muito acima das ações de prefeitos brasileiros) e do Ministério Público, os prefeitos de todo país institucionalizam (e, muitas vezes, as traduzem ou interpretam a partir de seu ideário peculiar) vários mecanismos de gestão participativa na deliberação de suas políticas locais. Se localidades rurais, conselhos de desenvolvimento rural sustentável ou de meio ambiente ou de bacias hidrográficas pululam. Se localidades urbanas, conselhos de saúde, assistência social e direitos da criança e adolescente proliferam. E onde estariam os movimentos sociais, que antes exigiam inclusão social e fim da marginalização política? Estão todos nesses conselhos e novas estruturas de gestão pública.

Ao ingressarem no mundo e lógica do Estado, poderiam construir uma nova institucionalidade pública. Já existiam experiências nesse sentido, como a gestão de reassentamentos rurais em casos de construção de hidrelétricas, gestão autônoma desses empreendimentos a partir do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB). Mas parece que tais experiências se diluíram. Movimentos sociais foram engolidos pela agenda de Estado. E por sua lógica burocratizada.

A multiplicação das conferências municipais, estaduais e federais que ocorreram sob a gestão Lula não alteraram o processo de elaboração das políticas públicas do país e nem mesmo foram incorporadas às peças orçamentárias da maioria dos entes federativos. Não alteramos a lógica de funcionamento e de execução orçamentária efetivamente. O aumento da participação da sociedade civil na gestão pública também não ensejou qualquer mudança na estrutura burocrática altamente verticalizada e especializada do Estado brasileiro, em todas suas três esferas executivas.

Enfim, o ideário anti-institucionalista dos movimentos sociais brasileiros dos anos 80 converteu-se rapidamente em ideário do Estado que atacavam. Talvez, por inconsistência teórica e programática, pautados pela mera negação ou sentimento de injustiça. Mas, talvez, por excesso de partidarização de todos movimentos sociais. Nos anos 80, não por coincidência, Frei Betto sugeria que sindicatos, partidos e organizações de base eram ferramentas de um todo, que denominava de movimento popular. Tal concepção fomentou a criação da ANAMPOS, organização nacional que articulava sindicatos de oposição à estrutura oficial do sindicalismo nacional e movimentos sociais. Com a criação da CUT, em 1983, a ANAMPOS foi minguando. E com a conversão da CUT à conquista da estrutura sindical oficial que criticava (confederações nacionais e federações estaduais), em meados dos anos 90, a ANAMPOS se tornou anacrônica. O mundo sindical achou seu caminho alternativo ao ideário dos movimentos sociais. E os próprios movimentos sociais? Também alteraram seu ideário, uma década depois.

Nos anos 90, articularam fóruns e redes e se atiraram na tarefa de formalizar as estruturas de gestão pública participativa conquistadas na Constituição de 1988. Mas, a partir das estruturas criadas e com a eleição de Lula (o ícone do ideário dos anos 80) suas lideranças subsumiram á lógica do Estado. E não conseguiram mais se livrar dela. Basta analisarmos as pautas das conferências nacionais de direitos. São, com raríssimas exceções, a agenda definido a partir do governo federal.

Compreendo que esta é o cenário montado para o drama que desenrola nos últimos dias sobre o futuro do MST. Evidentemente, a organização popular mais poderosa do país, a única que ainda consegue gerar mobilizações sociais de massa, está se isolando á passos largos. Se isola a partir do governo que ajudou a desenhar, mesmo que apenas no seu esboço mais geral. E se isola porque seu aliados de antes estão imergido na agenda do Estado.


* Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa

O fim da era dos movimentos sociais brasileiros - Rudá Ricci *

1. Começando pelo início: o conceito

O conceito é conhecido. E surgiu a partir de uma leitura conservadora e perplexa da emergência do mundo urbano-industrial, pela pena de Lorenz Von Stein, em 1840. Este autor defendia a necessidade de uma ciência da sociedade que se dedicasse ao estudo dos movimentos sociais, em especial, ao estudo do movimento operário francês e do socialismo. O tema surge no bojo de um processo de estranhamento das instituições públicas e de alguns segmentos urbanos frente ao acelerado processo de industrialização da Europa, principalmente na França e Rússia. Perplexidade que acabou por definir um olhar sobre os movimentos sociais: movimentos que reagiam ao sentimento de marginalização (Barrington Moore Júnior chegou a elaborar um livro denominado Utopia que procurou definir motivações populares para várias revoluções a partir deste sentimento de marginalização e injustiça) ou mesmo práticas corporativas, muitas vezes fundadas no clientelismo. Desta ultima vertente, alguns autores denominaram vários movimentos sociais contemporâneos de metacorporativistas. Philippe Schmitter distinguiu corporativismo de Estado (cujas associações de interesse são dependentes do Estado e por ele penetradas) de corporativismo societário (cujas associações são autônomas e penetram no Estado). Maria Hermínia Tavares de Almeida sugeriu que tais organizações corporativas seriam instrumentos de intermediação de interesses em lugar de representações, na medida em que expressam interesses próprios e desempenham papel ativo na definição dos interesses de seus membros, assumindo o que a autora denomina de governo privado. Todo este debate para entendermos que, aos poucos, as práticas dos movimentos sociais, principalmente os brasileiros, foram se alterando dos anos 80 para cá. Nasceram dentro da descrição clássica da sociologia, como mobilizações não institucionalizadas de segmentos sociais que buscavam direitos. Mas foram se institucionalizando, tornando-se organizações hierarquizadas, com fontes de financiamento sustentáveis, com corpo diretivo e administrativo estáveis, participantes (indiretos ou não) de esferas de elaboração de políticas públicas, no interior do Estado.

Maria da Glória Gohn escreveu o que foi possivelmente o estudo mais exaustivo publicado no Brasil sobre as várias teorias de movimentos sociais, o livro Teoria dos Movimentos Sociais: Paradigmas Clássicos e Contemporâneos. Neste livro, cuja primeira edição data de 1997 (e sua 7ª edição foi publicada em 2007), a autora distinguiu as teorias européias das norte-americanas. Desde o início, sugeriu que a produção brasileira sobre o tema foi mais empírica-descritiva que analítica, em virtude da importação estandartizada dos conceitos produzidos no exterior. Os norte-americanos, fortemente influenciados pelo funcionalismo de Parsons, focariam as análises nas escolhas racionais e mobilização de recursos, nos ciclos de protestos. A Escola de Chicago dobraria sua atenção sobre a disfunção da ordem, retomando o conceito de anomia, elaborado por Émile Durkheim. Os europeus focariam, segundo a autora, na identidade coletiva, no projeto e cultura política. Estariam mais vinculados às abordagens neomarxistas ou vinculados aos conceitos de novos atores e direitos sociais (que daria emergência ao conceito de "novos movimentos sociais", muito empregado no Brasil nos anos 90).
Mas destaca, em todas vertentes, um consenso: movimentos sociais são fluídos, formados a partir de espaços não consolidados das estruturas e organizações sociais.

Ocorre que nos anos 90 este conceito entrou em declínio nos estudos acadêmicos. Mas permaneceu como nomenclatura de muitas forças sociais, em especial, as vinculadas aos movimentos sociais dos anos 80. O conceito de sociedade civil vai substituindo a centralidade em vários estudos e investigações sociais. No Brasil a mudança parece fazer ainda mais sentido porque muitos movimentos sociais se institucionalizaram. Basta uma breve olhada sobre as coletâneas que foram publicadas recentemente. Leonardo Avritzer organizou uma coletânea sobre "A Participação em São Paulo", procurando analisar vários aspectos da cultura associativa da maior cidade do país. Muitos autores (onde me incluo) publicaram nesta coletânea estudos que revelam uma forte institucionalização e segmentação política e social nas experiências associativas. Evelina Dagnino, em outra coletânea ("Democracia, Sociedade Civil e Participação") dedica parte significativa dos estudos para avaliar justamente o processo de institucionalização da participação da sociedade civil nas experiências de gestão participativa (como orçamento participativo). Mesmo na América Latina, vários estudos (como o de Christian Adel Mirza, "Movimientos sociales y sistemas políticos en América Latina, publicado pela Clacso), relacionam nitidamente o antes conceito de movimentos sociais (não institucionalizado) a partir do Estado e instituições políticas dos países do continente.

Ainda que a partir desta brevíssima exposição, fica a dúvida estampada a partir até mesmo da literatura especializada: a Era dos Movimentos Sociais teria terminado? A fragmentação social em curso e a ampliação (ao menos formal) da participação da sociedade civil em esferas públicas (no interior do aparelho de Estado, em especial no Brasil) teriam reformatado o que antes denominávamos de movimentos sociais?



2. Movimentos sociais brasileiros como representação ou parte integrante de anéis burocráticos de elaboração de políticas públicas?

Entramos, assim, no tema deste artigo: poderíamos, ainda, utilizar tecnicamente o conceito de movimentos sociais para descrever organizações sociais, pastorais sociais, ONGs, entidades que adotam como principal espaço de atuação as arenas de elaboração de políticas públicas de Estado?

Em vários ensaios e artigos venho destacando a emergência de uma nova rede de gestão de políticas sociais institucionalizadas que são os conselhos de gestão pública (totalizando 30 mil em todo país) . Segundo o IBGE, 75% dos municípios brasileiros adotam alguma modalidade de participação da sociedade civil na determinação de prioridades orçamentárias na área social. Quem se dedica à implantação de sistemas de controle social sobre políticas públicas, formação de lideranças sociais para compreensão do orçamento público e monitoramento de resultados das políticas sociais ou descentralização administrativa voltada para a participação da sociedade civil na gestão pública sabe que a demanda para estes serviços vem aumentando exponencialmente em todo país. Motivados ou premidos pelas exigências constitucionais, pelos convênios com órgãos federais (dados importantes fornecidos pelo IBGE revelam que governadores e ministérios lideram a criação de conselhos de gestão pública paritários, muito acima das ações de prefeitos brasileiros) e do Ministério Público, os prefeitos de todo país institucionalizam (e, muitas vezes, as traduzem ou interpretam a partir de seu ideário peculiar) vários mecanismos de gestão participativa na deliberação de suas políticas locais. Se localidades rurais, conselhos de desenvolvimento rural sustentável ou de meio ambiente ou de bacias hidrográficas pululam. Se localidades urbanas, conselhos de saúde, assistência social e direitos da criança e adolescente proliferam. E onde estariam os movimentos sociais, que antes exigiam inclusão social e fim da marginalização política? Estão todos nesses conselhos e novas estruturas de gestão pública.

Ao ingressarem no mundo e lógica do Estado, poderiam construir uma nova institucionalidade pública. Já existiam experiências nesse sentido, como a gestão de reassentamentos rurais em casos de construção de hidrelétricas, gestão autônoma desses empreendimentos a partir do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB). Mas parece que tais experiências se diluíram. Movimentos sociais foram engolidos pela agenda de Estado. E por sua lógica burocratizada.

A multiplicação das conferências municipais, estaduais e federais que ocorreram sob a gestão Lula não alteraram o processo de elaboração das políticas públicas do país e nem mesmo foram incorporadas às peças orçamentárias da maioria dos entes federativos. Não alteramos a lógica de funcionamento e de execução orçamentária efetivamente. O aumento da participação da sociedade civil na gestão pública também não ensejou qualquer mudança na estrutura burocrática altamente verticalizada e especializada do Estado brasileiro, em todas suas três esferas executivas.

Enfim, o ideário anti-institucionalista dos movimentos sociais brasileiros dos anos 80 converteu-se rapidamente em ideário do Estado que atacavam. Talvez, por inconsistência teórica e programática, pautados pela mera negação ou sentimento de injustiça. Mas, talvez, por excesso de partidarização de todos movimentos sociais. Nos anos 80, não por coincidência, Frei Betto sugeria que sindicatos, partidos e organizações de base eram ferramentas de um todo, que denominava de movimento popular. Tal concepção fomentou a criação da ANAMPOS, organização nacional que articulava sindicatos de oposição à estrutura oficial do sindicalismo nacional e movimentos sociais. Com a criação da CUT, em 1983, a ANAMPOS foi minguando. E com a conversão da CUT à conquista da estrutura sindical oficial que criticava (confederações nacionais e federações estaduais), em meados dos anos 90, a ANAMPOS se tornou anacrônica. O mundo sindical achou seu caminho alternativo ao ideário dos movimentos sociais. E os próprios movimentos sociais? Também alteraram seu ideário, uma década depois.

Nos anos 90, articularam fóruns e redes e se atiraram na tarefa de formalizar as estruturas de gestão pública participativa conquistadas na Constituição de 1988. Mas, a partir das estruturas criadas e com a eleição de Lula (o ícone do ideário dos anos 80) suas lideranças subsumiram á lógica do Estado. E não conseguiram mais se livrar dela. Basta analisarmos as pautas das conferências nacionais de direitos. São, com raríssimas exceções, a agenda definido a partir do governo federal.

Compreendo que esta é o cenário montado para o drama que desenrola nos últimos dias sobre o futuro do MST. Evidentemente, a organização popular mais poderosa do país, a única que ainda consegue gerar mobilizações sociais de massa, está se isolando á passos largos. Se isola a partir do governo que ajudou a desenhar, mesmo que apenas no seu esboço mais geral. E se isola porque seu aliados de antes estão imergido na agenda do Estado.


* Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A Terra que precisa de um Homem

Postado por Kamadon e Attman

Uma mulher veio visitar sua irmã mais nova que vivia no campo; a primeira estava casada com um
mercador da cidade, a outra com um camponês da aldeia; quando estavam a tomar o chá, começou a mais
velha a gabar a vida da cidade, dizendo que se vivia por lá com todo o conforto, que toda a gente andava
bem arranjada, que as filhas tinham vestidos lindíssimos, que se bebiam e comiam coisas magníficas e
que se ia ao teatro, a passeios e a festas. A irmã mais nova, um pouco despeitada, mostrou todos os
nconvenientes da vida do comércio e exaltou as vantagens da existência dos camponeses.
- Não trocaria a minha vida pela vossa; é certo que vivemos com alguma rudeza, mas, pelo menos, não
estamos sempre ansiosos; vocês vivem com mais conforto e mais elegância, mas ganham muitas vezes
mais do que precisam e estão sempre em riscos de perder tudo; lá diz o ditado: «Estão juntos na merca o
ganho e a perca»; quem está rico num dia pode, no dia seguinte, andar a pedir pão pelas portas; a nossa
vida é mais segura; se não é farta é, pelo menos, comprida; nunca seremos ricos, mas sempre teremos
bastante que comer.
A irmã mais velha replicou com zombaria:
- Bastante? Sim, bastante, se vocês se contentarem com a vida dos porcos e das vitelas. Que sabem vocês
de elegância e de boas maneiras? Por mais que o teu marido trabalhe como um escravo, vocês hão-de
morrer como têm vivido - num monte de estrume; e os vossos filhos na mesma.
Bem, e depois? - retorquiu-lhe a outra. - Não nego que o nosso trabalho seja rude e grosseiro; mas em
compensação é seguro e não precisamos de nos curvar diante de ninguém; vocês, na cidade, vivem
rodeados de tentações; hoje tudo corre bem, mas amanhã o Diabo pode tentar o teu marido com a bebida,
o jogo ou as mulheres - e lá se vai tudo. Bem sabes que é o que sucede muitas vezes.
Pahóm, o dono da casa, estava deitado à lareira e escutava a conversa das mulheres.
- «É realmente assim - pensava ele -. Os lavradores ocupados desde meninos no amanho da terra não têm
empo para pensar em tolices; só o que nos consome é não termos terra bastante; se tivesse toda a terra
que quero, nem o Diabo seria capaz de meter-me medo.»
As mulheres acabaram o chá, palraram ainda um bocado de vestidos, depois arrumaram a louça e
deitaram-se a dormir. Mas o Diabo tinha estado sentado num desvão da lareira e tinha ouvido tudo o que
se dissera; ficara contentíssimo quando vira que a mulher do camponês arrastara o marido para a
gabarolice e quando percebera que o homem pensava que, se tivesse terra à vontade, não temeria o
Diabo.
- «Muito bem! - pensou o Diabo. Vamos lutar um com o outro; dou-te toda a terra que quiseres e há-de
ser por essa terra que te hei-de apanhar.»
II
Perto da aldeia vivia uma senhora, pequena proprietária, que possuía um terreno de cerca de 120
desiatines(1). Tinha mantido sempre com os camponeses excelentes relações, até o dia em que tomou
como feitor um antigo soldado que se pôs a multar toda a gente. Por mais cuidado que Pahóm tivesse, ora
um cavalo lhe fugia para os campos de aveia da senhora, ora uma vaca ia para os jardins, ora as vitelas andavam pelos prados; e a multa lá vinha.
Pahóm pagava, resmungava e, irritado, tratava mal a família; todo o Verão, o camponês teve conflitos
com o feitor e só o alegrou a chegada do Inverno em que o gado tinha de ir para o estábulo; dava-lhe a
ração de má vontade, mas ao menos estava livre de sustos. Durante o Inverno, correu que a senhora ia
vender as terras e que o estalajadeiro se preparava para lhas comprar; toda a aldeia ficou alarmada.
- Bem - pensavam os camponeses - se o estalajadeiro comprar as terras, as multas serão mais fortes
ainda; o caso é sério.
Foram então, em nome da Comuna, pedir à senhora que não vendesse as terras ao estalajadeiro, porque
estavam dispostos a pagar-lhe melhor; a senhora concordou e os camponeses reuniram-se para que o
campo fosse comprado por todos e cultivado por todos; houve duas assembleias, mas o Diabo semeava a
discórdia e não chegaram a nenhuma combinação; cada um compraria a terra que pudesse; a senhora
acedeu de novo.
Pahóm ouviu dizer que um seu vizinho ia comprar 20 desiatines e que a proprietária receberia metade em
dinheiro e esperaria um ano pela outra metade; sentiu inveja e pensou:
- «Ora vejam isto; vão comprar toda a terra e eu não apanho nenhuma.» Falou depois à mulher:
- Toda a gente está a comprar terras; vamos nós comprar também uns 10 desiatines; a vida assim é
impossível; o feitor mata-nos com multas.
A mulher concordou e consideraram sobre a maneira de realizar o seu desejo; tinham uns cem rublos de
parte; venderam um potro e metade das abelhas, meteram um filho a jornaleiro, recebendo a soldada
adiantada, e pediram emprestado a um cunhado o que faltava para perfazer metade da quantia necessária.
Feito isto, escolheu Pahóm um campo de uns quinze desiatines, com um pouco de bosque, e foi ter com a
senhora para tratarem do negócio; chegaram a acordo e o camponês pagou adiantada uma certa quantia;
depois foram à cidade e assinaram a escritura em que ficava estabelecido pagar ele logo metade da
quantia e entregar o resto dentro de dois anos.
Agora tinha Pahóm terra sua; pediu sementes emprestadas, semeou-as na terra que comprara; como a
colheita foi boa, pôde, dentro de um ano, pagar ao cunhado e à senhora; tornou-se assim proprietário,
lavrando e semeando a sua terra, fazendo feno na sua terra, abatendo as suas árvores, alimentando o seu
gado nos seus pastos. Sentia-se cheio de contentamento quando ia lavrar ou olhava para os trigais ou para
os prados; a erva que ali crescia e as flores que ali desabrochavam pareciam-lhe diferentes de todas as
outras; a princípio parecera-lhe que a sua terra era igual a qualquer outra; agora, porém, via-a totalmente
diversa.

III
O contentamento de Pahóm teria sido completo se os vizinhos não lhe atravessassem as searas e os
prados; falou-lhes muito delicadamente, mas os homens continuaram; umas vezes eram os pastores da
comuna que deixavam ir as vacas para as suas pastagens, outras vezes os cavalos que se soltavam à noite
e lhe iam para as searas. Pahóm enxotava-os, perdoava aos donos e, durante muito tempo, não fez queixa
de ninguém; por fim, perdeu a paciência e queixou-se ao tribunal; bem sabia que era a falta de terra dos
camponeses e não qualquer má intenção que os fazia proceder daquele modo, mas pensava: «Se não tomo cuidado, dão-me cabo de tudo; tenho que lhes dar uma lição.»
Foi o que fez: deu-lhes uma lição, depois segunda, e dois ou três camponeses foram multados; ao fim de
certo tempo, os vizinhos tinham-lhe raiva e era de propósito que lhe metiam o gado pelas terras; houve
mesmo um que, uma noite, lhe cortou cinco limoeiros para lhes tirar a casca; Pahóm passou pelo bosque
e viu umas coisas brancas: aproximou-se e deu com os troncos sem casca estendidos no chão; quase ao
lado estavam os cepos; Pahóm, furioso, pensou: «Já bastaria para mal que este patife tivesse cortado uma
árvore aqui e além; mas foi logo uma fila inteira; ah! se o apanho!...»
Pôs-se a ver quem poderia ter sido; finalmente, disse consigo: «Deve ter sido o Simão; ninguém mais ia
fazer uma coisa destas.» Deu uma volta pelas propriedades de Simão, mas nada viu e só arranjou a
zangar-se com o vizinho; tinha, no entanto, a certeza que era ele e apresentou queixa; Simão foi
chamado, julgado e absolvido porque não havia provas; Pahóm ficou ainda mais furioso e voltou-se
contra os juizes:
- A gatunagem unta-vos as mãos; se aqui houvesse vergonha, não iam os ladrões em paz.
As zangas com os juizes e com os vizinhos trouxeram como resultado ameaças de lhe queimarem a casa;
Pahóm tinha mais terra do que dantes, mas vivia muito pior. E foi por esta altura que se levantou o rumor
de que muita gente ia sair da terra. «Por mim, não tenho que me mexer - pensou Pahóm -. Mas se os
outros se fossem embora, haveria mais terra para nós; havia de comprá-la e de arredondar a minha
propriedadezinha; então é que era viver à farta; assim, ainda estou muito apertado.»
Estava um dia Pahóm sentado em casa quando calhou de entrar um camponês que ia de viagem; deu-lhe
licença para passar ali a noite e, à ceia, puseram-se de conversa; Pahóm perguntou-lhe donde vinha e o
forasteiro respondeu que de além-Volga, onde tinha estado a trabalhar; depois disse o homem que havia
muita gente que se estava a fixar por aqueles lados, mesmo lavradores da sua aldeia; tinham entrado na
comuna e obtinham setenta e cinco desiatines; a terra era tão boa que o centeio crescia à altura de um
cavalo e era tão basto que com meia dúzia de foiçadas se fazia um feixe; havia um camponês que tinha
chegado de mãos a abanar e possuía agora seis cavalos e duas vacas.
O peito de Pahóm inflamava-se de cobiça: «Para que hei-de eu continuar neste buraco se noutra parte se
pode viver tão bem? Vou vender tudo e, com o dinheiro, vou começar a vida de novo; aqui há muita
gente e sempre sarilhos; mas, primeiro, vou eu mesmo saber as coisas ao certo.»
Pelos princípios do Verão, preparou-se e partiu; desceu o Volga de vapor até Samara, depois andou a pé
noventa léguas; por fim chegou; era exactamente o que o forasteiro tinha dito; os camponeses tinham
imensa terra: cada homem possuía os setenta e cinco desiatines que a comuna lhe dera e, se tivesse
dinheiro, podia comprar as terras que quisesse, a três rublos o desiatine. Informado de tudo o que queria
saber, voltou Pahóm a casa no Outono e começou a vender o que lhe pertencia; vendeu a terra com lucro,
vendeu a casa e o gado, saiu da comuna; esperou pela Primavera e largou com a família para os novos
campos.
IV
Logo que chegaram à nova residência, pediu Pahóm que o admitissem na comuna de uma grande aldeia;
tratou com os dirigentes e deram-lhe os documentos necessários; depois, concederam-lhe cinco talhões
de terra para ele e para o filho, isto é, trezentos e setenta e cinco desiatines em campos diferentes, além do direito aos pastos comuns. Pahóm construiu as casas precisas e comprou gado; só de terra da comuna
tinha ele três vezes mais do que dantes e toda ela era excelente para trigo; estava incomparavelmente
melhor, com terra de cultivo e de pastagem, e podia ter as cabeças de gado que quisesse.
A principio, enquanto durou o trabalho de se estabelecer, tudo satisfazia Pahóm, mas, quando se
habituou, começou a pensar que ainda não tinha bastante terra; no primeiro ano, semeou trigo na terra da
comuna e obteve boa colheita; queria continuar a semear trigo, mas a terra não chegava e a que já tinha
não servia porque, naquela região, era costume semear o trigo em terra virgem, durante um ou dois anos,
depois deixar o campo de pousio, até se cobrir de novo de ervas de prado. Havia muitos que desejavam
estas terras e não havia bastantes para todos, o que provocava conflitos; os mais ricos queriam-nas para
semear trigo e os que eram pobres para as alugar a negociantes, de modo a terem dinheiro para pagar os
impostos. Pahóm queria semear mais trigo e tomou uma terra de renda por um ano; semeou muito, teve
boa colheita, mas a terra era longe da aldeia e o trigo tinha de ir de carro umas três léguas. Certo tempo
depois, notou Pahóm que alguns camponeses viviam em herdades não comunais e enriqueciam; pensou
consigo: «Se eu pudesse comprar terra livre e arranjar casa, então é que as coisas me haviam de correr
bem.»
A questão de comprar terra livre preocupava-o sempre; mas continuou durante três anos a arrendar
campos e a cultivar trigo; os anos foram bons, as colheitas excelentes, começou a pôr dinheiro de lado.
Podia ter continuado a viver assim, mas sentia-se cansado de ter que arrendar terras de outros todos os
anos e ainda por cima disputando-as; mal aparecia uma terra boa todos os camponeses se precipitavam
para a tomarem, de modo que, ou se andava ligeiro, ou se ficava sem nada. Ao terceiro ano, aconteceu
que ele e um negociante arrendaram juntos a uns camponeses uma pastagem: já a tinham amanhado
quando se levantou qualquer disputa, os camponeses foram para o tribunal e todo o trabalho se perdeu.
«Se fosse terra minha - pensou Pahóm - já eu era independente e não me via metido nestas maçadas.»
E começou a procurar terra de compra; encontrou um camponês que tinha adquirido uns quinhentos
desiatines mas que, por causa de dificuldades, os queria vender barato; Pahóm regateou com o homem e
assentaram por fim num preço de 1 500 rublos, metade a pronto, a outra metade a pagar depois. Tinham
arrumado o negócio, quando se deteve em casa de Pahóm um comerciante que queria forragem para os
cavalos; tomou chá com Pahóm e travou-se conversa; o comerciante disse que voltava da terra dos
Baquires, que era muito longe, e onde tinha comprado cinco mil desiatines de terra por 1000 rublos.
Pahóm fez-lhe mais perguntas e o negociante respondeu:
- Basta fazer-nos amigos dos chefes. Dei-lhes coisa de cem rublos de vestidos de seda e de tapetes, além
duma caixa de chá, e mandei distribuir vinho por quem o quisesse; e arranjei a terra a cinco kopeks(2) o
desiatine.
E, mostrando a Pahóm as escrituras, acrescentou:
- A terra é perto dum rio e toda ela virgem.
Pahóm continuou a interrogá-lo e o homem respondeu:
- Há por lá mais terra do que aquela que se poderia percorrer num ano de marcha; e toda ela pertence aos
Baquires. São como cordeirinhos e arranja-se a terra que se quer, quase de graça.
- «Bem - pensou Pahóm - para que hei-de eu, com os meus mil rublos, arranjar só os quinhentos
desiatines e aguentar ainda por cima com uma dívida? Na outra terra compro eu dez vezes mais, e pelo mesmo dinheiro.»
V
Perguntou Pahóm de que maneira havia de ir lá ter e, logo que o negociante o deixou, preparou-se para
empreender a viagem; ficou a mulher a tomar conta da casa e ele partiu com o criado; pararam numa
cidade e compraram uma caixa de chá, vinho e outros presentes, conforme o conselho do negociante.
Foram andando sempre até que, já percorridas mais de noventa léguas, chegaram ao lugar em que os
Baquires tinham levantado as suas tendas; era exactamente como o homem tinha dito: viviam nas
estepes, junto dum rio, em tendas de feltro; não lavravam a terra, nem comiam pão: o gado e os cavalos
andavam em rebanhos pelos pastos da estepe; os potros estavam peados atrás das tendas e duas vezes por
dia lhes levavam as éguas; ordenhavam-nas e do leite faziam kumiss(3); eram as mulheres quem
preparavam o kumiss e faziam queijo; quanto aos homens, passavam o seu tempo a beber kumiss e chá, a
comer carneiro e a tocar gaitas-de-foles; eram gordanchudos e prazenteiros, e, durante todo o Verão, nem
pensavam em trabalhar; eram ignorantes de todo, não sabiam falar russo, mas eram de boa qualidade.
Mal viram Pahóm, saíram das tendas e juntaram-se à volta do visitante; apareceu um intérprete e Pahóm
disse-lhes que tinha vindo à procura de terra; os Baquires, segundo parecia, ficaram muito contentes;
levaram Pahóm para uma das melhores tendas onde o fizeram sentar numas almofadas de pernas postas
num tapete, sentando-se eles também à volta; deram-lhe chá e kumiss, mataram um carneiro para a
refeição; Pahóm tirou os presentes do carro, distribuiu-os pelos Baquires e dividiu também o chá; os
Baquires ficaram encantados; conversaram muito uns com os outros e depois disseram ao intérprete que
traduzisse:
- O que eles estão a dizer é que gostaram de ti e que é nosso costume fazermos tudo o que podemos para
agradar aos hóspedes e lhes pagar os presentes; tu deste presentes: tens que dizer agora que te agrada
mais de tudo o que possuímos, para que to entreguemos.
- O que me agrada mais - respondeu Pahóm - é a vossa terra. A nossa está cheia de gente e os campos já
não dão; vocês têm muita e boa; nunca vi coisa assim.
O intérprete traduziu. Os Baquires falaram um bocado, sem que Pahóm compreendesse o que diziam;
mas percebeu que estavam muito divertidos e viu que gritavam e se riam; depois calaram-se e olharam
para Pahóm, enquanto o intérprete dizia:
- O que eles me mandam dizer é que, em troca dos teus presentes, te darão a terra que quiseres; é só
apontá-la a dedo.
Os Baquires puseram-se outra vez a falar e discutiram; Pahóm perguntou o motivo da discussão e o
intérprete respondeu que uns eram de opinião que não deviam resolver nada na ausência do chefe e
outros que não havia necessidade de esperarem que voltasse.
VI
Enquanto os Baquires discutiam, entrou um homem com um barrete de pele de raposa; todos se
levantaram em silêncio e o intérprete disse:
- É o chefe! Pahóm foi logo buscar o melhor vestuário e cinco libras de chá e ofereceu tudo ao chefe; o chefe aceitou,
sentou-se no lugar de honra e os Baquires começaram a contar-lhe qualquer coisa; o chefe escutou,
depois fez um sinal com a cabeça para que se calassem e, dirigindo-se a Pahóm, disse-lhe em russo:
- Está bem. Escolhe a terra que queres; há bastante por aí.
-«A que eu quiser ?- pensou Pahóm - Como é isso possível? Tenho que fazer uma escritura para que não
voltem com a palavra atrás.» Depois disse alto:
- Muito obrigado pelas suas boas palavras: os senhores têm muita terra, e eu só quero uma parte; mas que
seja bem minha; podiam talvez medi-la e entregá-la. Há morrer e viver... Os senhores, que são bons,
dão-ma, mas os vossos filhos poderiam querer tirar-ma.
- Tens razão - disse o chefe -; vamos doar-te a terra.
- Soube que esteve cá um negociante - continuou Pahóm - e que os senhores lhe deram umas terras, com
uns papéis assinados... Era assim que eu gostava.
O chefe compreendeu:
- Bem, isso é fácil; temos aí um escrivão e podemos ir à cidade para ficar tudo em ordem.
- E o preço? - perguntou Pahóm.
- O nosso preço é sempre o mesmo: mil rublos por dia.
- Por dia? Que medida é essa? Quantos desiatines?
- Não sabemos; vendemos terra a dia; fica a pertencer-te toda a terra a que puderes dar volta, a pé, num
dia; e são mil rublos por dia.
Pahóm ficou surpreendido.
- Mas num dia pode-se andar muito!...
O chefe riu-se:
- Pois será toda tua! Com uma condição: se não voltares no mesmo dia ao ponto donde partiste, perdes o
dinheiro.
- Mas como hei-de eu marcar o caminho?
- Vamos ao sítio que te agradar e ali ficamos. Tu começas a andar com uma pá; onde achares necessário
fazes um sinal; a cada volta cavas um buraco e empilhas os torrões; depois nós vamos com um arado de
buraco a buraco. Podes dar a volta que quiseres, mas antes do sol-posto tens que voltar; toda a terra que
rodeares será tua.
Pahóm ficou contentíssimo e decidiu-se partir na manhã seguinte; falaram ainda um bocado, depois
beberam mais kumiss, comeram mais carneiro, tomaram mais chá; em seguida, caiu a noite; deram a
Pahóm uma cama de penas e os Baquires dispersaram-se, depois de terem combinado reunir-se ao
romper da madrugada e cavalgar antes que o Sol nascesse.

VII
Pahóm estava deitado, mas não podia dormir, a pensar na terra.
«Que bom bocado vou marcar! - pensava ele. - Faço bem dez léguas por dia; os dias são compridos e,
dentro de dez léguas, quanta terra! Vendo a pior ou arrendo-a a camponeses e faço uma herdade na
melhor; compro duas juntas e arranjo dois jornaleiros; ponho aí sessenta desiatines a campo, o resto a
pastagens.
Ficou acordado toda a noite e só dormitou pela madrugada; mal fechava os olhos, teve um sonho; sonhou
que estava deitado na tenda e que ouvia fora uma espécie de cacarejo; pôs-se a pensar o que seria e
resolveu sair: viu então o chefe dos Baquires a rir-se como um doido, de mãos na barriga; Pahóm
aproximou-se e perguntou: «De que se está a rir?» Mas viu que já não era o chefe: era o negociante que
tinha ido a sua casa e lhe falara da terra. Ia Pahóm a perguntar-lhe: «Está aqui há muito?» quando viu que
já não era o negociante: era o camponês que regressava do Volga; nem era o camponês, era o próprio
Diabo, com cascos e cornos, sentado, a cacarejar: diante dele estava um homem descalço, deitado no
chão, só com umas calças e uma camisa; e Pahóm sonhou que olhava mais atentamente, para ver que
homem era aquele ali deitado e via que estava morto e que era ele próprio; acordou cheio de horror. «Que
coisas a gente vai sonhar» - pensou ele.
Olhou em volta e viu, pela abertura da tenda, que a manhã rompia. «É tempo de os ir acordar; já
devíamos estar de abalada». Levantou-se, acordou o criado, que estava a dormir no carro, e mandou-o
aparelhar; depois foi chamar os Baquires:
- Vamos para a estepe medir a terra.
Os Baquires levantaram-se, juntaram-se e o chefe apareceu também; depois, beberam kumiss e
ofereceram chá a Pahóm, mas ele não quis esperar mais:
- Se querem ir, vamos; já é tempo.
VIII
Os Baquires aprontaram-se e partiram; uns iam a cavalo, outros de carro; Pahóm ia no seu carrinho, com
o criado e uma pá; quando chegaram à estepe, já se via no céu o rosado da aurora; subiram a um cabeço,
a que os Baquires chamavam shikhan, e, apeando-se dos carros e dos cavalos, juntaram-se num sítio. O
chefe veio ter com Pahóm e, estendendo o braço para a planície:
- Olha para isto - disse ele -, tudo o que vês é nosso; poderás ficar com o que quiseres.
Os olhos de Pahóm rebrilharam: era tudo terra virgem, plana como a palma da mão, negra como semente
de papoila; e as diferentes espécies de erva cresciam à altura do peito.
O chefe tirou o barrete de pele de raposa, colocou-o no chão e disse:
- O sinal é este; partes daqui e voltas aqui; é tua toda a terra a que deres volta.
Pahóm puxou do dinheiro e pô-lo no barrete; depois tirou o casaco e ficou em colete; desapertou o cinto
e ajustou-o logo por baixo do estômago, pôs um saquinho de pão ao peito, atou um cantil de água ao
cinto, puxou os canos das botas, pediu a pá ao criado e ficou pronto a largar; considerou por alguns momentos sobre o caminho que havia de tomar, mas era uma tentação por toda a parte.
- Não faz mal - concluiu -; vou para o nascente.
Voltou-se para leste, espreguiçou-se e esperou que o Sol aparecesse acima do horizonte.
- Não há tempo a perder - disse ele - e é melhor ir já pela fresquinha.
Mal apareceu o primeiro raio de sol, desceu Pahóm a colina, de pá ao ombro; nem ia devagar, nem
depressa; ao fim de um quilómetro, parou, fez um buraco e pôs os torrões uns sobre os outros; depois
continuou e, como ia aquecendo, apressou o passo; ao fim de um certo tempo, fez outra cova. Pahóm
olhou para trás: a colina estava distintamente iluminada pelo Sol e viam-se os Baquires e os aros
cintilantes das rodas; Pahóm calculou que teria andado uma légua; como o calor apertava, tirou o colete,
pô-lo ao ombro e continuou a caminhar; estava quente a valer: olhou para o Sol e viu que eram horas de
pensar no almoço.
- A primeira tirada está feita; mas posso ainda fazer mais três, porque é cedo para voltar; o que tenho é de
tirar as botas.
Sentou-se, descalçou as botas, pendurou-as ao cinto e continuou; agora, andava à vontade. «Mais uma
leguazita - pensou ele -; depois volto para a esquerda; este bocado é tão bom que era uma pena perdê-lo;
quanto mais se anda, melhor a terra parece.» Avançou a direito durante algum tempo e, quando olhou à
volta, viu que a colina mal se enxergava e que os Baquires pareciam formiguinhas; e havia qualquer
coisa que brilhava.
- Já andei bastante para este lado - pensou Pahóm -, é tempo de voltar; e já estou a suar e com sede.
Parou, cavou um grande buraco e amontoou os torrões; depois, desatou o cantil, sorveu um gole e voltou
à esquerda; foi andando, andando sempre; a erva era alta, o sol quentíssimo. Começou a sentir-se
cansado: olhou para o Sol e viu que era meio-dia.
- Bem, vou descansar um bocado.
Sentou-se, comeu um naco de pão, bebeu uma pinga de água; mas não se deitou, com medo de
adormecer; depois de estar sentado uns momentos, levantou-se e continuou. A princípio, andava bem: a
comida tinha-lhe dado forças; mas o calor aumentava, sentia sono; apesar de tudo, continuava, e repetia
consigo:
- Um dia de dor, uma vida de amor.
Andou muito tempo na mesma direcção e estava para rodar à esquerda, quando viu um sítio húmido:
«Era uma pena deixar isto; o linho deve dar-se bem aqui.» Deu uma volta, cavou um buraco e olhou para
a colina; com o calor, o ar tremia e a colina tremia também, mal se vendo os Baquires.
«Os outros lados ficaram muito grandes; tenho que fazer este mais curto.» E pôs-se a andar mais
depressa. Olhou para o Sol: estava quase a meio caminho do horizonte e não tinha ainda andado três
quilómetros do lado novo; e ainda lhe faltavam três léguas para a colina.
- «Bem - pensou ele - não me fica a terra quadrada, mas agora tenho que ir a direito; podia ir longe de
mais e assim já tenho terra bastante.» Abriu um buraco a toda a pressa e partiu em direcção à colina.

IX
Ia sempre a direito, mas caminhava com dificuldade. Estava tonto de calor, tinha os pés cortados e
moídos e as pernas a fraquejarem; estava ansioso por descansar, mas era impossível fazê-lo se queria
chegar antes do sol-posto; o Sol não espera por ninguém e cada vez ia mais baixo.
- Justos céus! Oxalá não tenha querido de mais! E se chego tarde?
Olhou para a colina e para o Sol; Pahóm estava ainda longe do seu objectivo e o Sol perto do horizonte.
Continuou a andar; era custoso a valer, mas cada vez andava mais depressa; estugou o passo, mas estava
longe ainda; começou a correr, atirou fora o casaco, as botas, o cantil e o barrete e ficou só com a pá, a
que se apoiava, de quando em quando.
- Santo Deus! Abarquei de mais e perdi tudo; já não chego antes de o Sol se pôr.
O medo cortava-lhe a respiração; Pahóm continuava a correr, mas a transpiração colava-lhe ao corpo as
calças e a camisa; tinha a boca seca e o peito arquejava como um fole de ferreiro; o coração batia que
nem um martelo e as pernas quase nem pareciam dele; Pahóm sentia-se aterrorizado à ideia de morrer de
fadiga. Apesar do medo da morte, não podia parar. «Se depois de ter corrido tudo isto, parasse agora,
chamavam-me doido». E corria mais e mais e já estava mais próximo e já ouvia os Baquires a gritar; os
gritos mais lhe faziam pulsar o coração; reuniu as últimas forças e deu mais uma carreira. O Sol estava já
perto do horizonte e, envolvido na névoa, parecia enorme e vermelho como sangue. Ia-se a pôr, o Sol!
Estava já muito baixo, mas ele também estava perto da meta; podia ver os Baquires na colina, a agitarem
os braços, para que se apressasse; podia ver o barrete no chão com o dinheiro em cima e o chefe, sentado,
e de mãos nas ilhargas. Pahóm lembrou-se do sonho.
- Tenho terra bastante, mas permitirá Deus que eu viva nela? Perdi a vida, perdi a vida! Já não chego
àquele lugar.
Pahóm olhou para o Sol que já tinha atingido o horizonte: um lado já tinha desaparecido; com a força que
lhe restava atirou-se para a frente, com o corpo tão inclinado que as pernas mal podiam conservar o
equilíbrio; ao chegar à colina, tudo escureceu: o Sol pusera-se; deu um grito: «Tudo em vão!» e ia parar,
quando ouviu os brados dos Baquires e se lembrou de que eles ainda viam o Sol, lá de cima do outeiro;
tomou um hausto de ar e trepou pela colina; ainda havia luz: no cimo lá estava o barrete e o chefe a
rir-se, de mãos na barriga; outra vez Pahóm lembrou o sonho; soltou um grito, as pernas falharam-lhe e
foi com as mãos que agarrou o barrete.
- Grande homem, grande homem! - gritou o chefe. - A terra que ele ganhou!
O criado de Pahóm veio a correr e tentou levantá-lo, mas viu que o sangue lhe corria da boca. Pahóm
morrera!
Os Baquires davam estalos com a língua, para mostrar a pena que sentiam. O criado pegou na pá, fez
uma cova em que coubesse Pahóm e meteu-o dentro; sete palmos de terra: não precisava de mais.



FIM

domingo, 11 de outubro de 2009

Entrevista com um muçulmano brasileiro

Enviado por Kamadon e Attman:


Entrevista especial com Ahmad Ali



Naturalizado brasileiro, o palestino nascido em Asira Eshamaleya e fundador da Mesquita de Porto Alegre, Ahmad Ali vive no Brasil desde 1955 e afirma amar e defender a sua religião. Para ele, o Islamismo tem o projeto mais completo para a paz da humanidade, pois "o próprio profeta Mohamed buscou o entendimento entre todas as religiões existentes em sua época, na Arábia, e deu a liberdade para cada comunidade e para cada povo seguir a sua religião".

Ahmad Ali, que estará presente no IHU, nesta sexta-feira, 14, para o segundo encontro do programa Religiões do Mundo, sobre Islamismo, reconhece, nesta entrevista que concedeu à IHU On-Line por telefone, porém, que hoje é necessário diferenciar entre o Islã e os muçulmanos, "lamentavelmente". "Já temos muçulmanos 'picaretas' e oportunistas o bastante", afirma. Mas defende que os muçulmanos, em sua história, mostraram "que são gente de paz, sempre reconhecendo os direitos dos outros". Nesse sentido, ressalta o valor do Alcorão, "que recomenda a igualdade racial e da humanidade e a liberdade do ser humano".


Com formação em Direito e advocacia, Ahmad Ali é fundador da Mesquita de Porto Alegre e da Sociedade Islâmica de Porto Alegre. Também é diretor-fundador do Centro Cultural Islâmico do Rio Grande do Sul. Militante da causa palestina desde 1948, sua atuação também abrange outras áreas. Foi idealizador e fundador do Grupo de Diálogo Inter-Religioso de Porto Alegre, fundado em 1996, sendo um dos pioneiros no mundo. Além disso, é um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores no Rio Grande do Sul e ministra cursos e palestras sobre Islamismo e o povo palestino em diversas universidades do Estado.

O encontro sobre Islamismo, do programa Religiões do Mundo, com a presença de Ahmad Ali, ocorre nesta sexta-feira, 14 de agosto, das 16h às 18h, na sala 1G119, na Unisinos. Veja aqui mais detalhes.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Nesta sexta, o senhor estará presente no IHU para debater o papel do Islamismo na sociedade de hoje e a construção de uma possível ética mundial que perpassa todas elas. O senhor acha que é possível chegar a esse consenso entre as religiões?


Ahmad Ali - Se todas as religiões querem construir um caminho para a solução pacífica, para encontrar a paz, elas têm condições, já que as religiões têm milênios de anos e começaram a fazer política desde aquele tempo até o presente momento. O caminho delas, neste momento, é dialogar e encontrar soluções que estão em suas próprias mãos.

IHU On-Line - Que aspectos principais o senhor destacaria que caracterizam o Islamismo?

Ahmad Ali - O Islamismo, através de sua mensagem divina, falou em busca da paz. Isso está escrito letra por letra. Muitos muçulmanos diferem da religião islâmica, mas não dá para acusar nenhuma religião de violenta e massacrar o ser humano. A responsabilidade é do ser humano, e não da religião. O Islamismo acredita num ser maior, que é Deus, que para nós é Alá. Somos diferentes das demais religiões porque identificamos Deus como ser superior. O islamismo implanta, fortalece e se baseia nas suas mensagens divinas para encontrar o mais importante: valorizar o ser humano. A religião islâmica é uma coisa, enquanto o mundo, o povo islâmico é diferente.

IHU On-Line - Quem é Maomé para um muçulmano de hoje?

Ahmad Ali - Para nós, Mohamed foi quem recebeu as mensagens divinas pelo anjo Gabriel. As mensagens divinas são as palavras de Deus que estão escritas no Alcorão Sagrado. Para nós, Mohamed é um profeta e foi quem implantou a verdadeira mensagem divina para toda a humanidade. Essa é a diferença entre o Islamismo e as demais religiões. Porque o Judaísmo e o Cristianismo receberam a mensagem divina de Moisés, e Moisés vem diretamente só para o Judaísmo e o Cristianismo. Mohamed veio para toda a humanidade.

IHU On-Line - Que aspectos da vida de Mohamed são fundamentais para um fiel do século 21?

Ahmad Ali - O mais importante neste momento é que muitos muçulmanos continuam acreditando na mensagem divina conforme ela é. Mohamed recomendou a todos os muçulmanos, todos os religiosos e lideranças religiosas que busquem o mais importante: o conhecimento, a ciência, o progresso e a paz para toda a humanidade. Essa é a mais importante mensagem divina de Mohamed para o século XXI. Queremos a paz, queremos o progresso, queremos a humanidade toda em busca do mais importante: a fraternidade entre todas as nações e todos os povos, sejam eles cristãos, judeus, budistas ou hinduístas, pois queremos que todos eles convivam pacificamente ou que busquem aqueles que venham ao encontro de um dos anseios da humanidade, que é paz.

IHU On-Line - Como o Islamismo interpreta os grandes desafios da humanidade de hoje, as crises econômica, política, ambiental etc., a partir do Alcorão?

Ahmad Ali - Não podemos negar nunca que o Judaísmo é a primeira mensagem divina que veio. Em seguida, veio o Cristianismo, e ele tem as suas bases também na religião judaica. Agora, as bases do Islamismo vêm diretamente das mensagens divinas de Deus ao anjo Gabriel, que foram transmitidas a Mohamed. A diferença é que as mensagens divinas islâmicas são totalmente diferentes das mensagens divinas de judeus e de cristãos. Hoje em dia, o Islamismo busca o mais importante, que é a solução pacífica e o diálogo. A religião islâmica deve ser diferenciada dos muçulmanos, pois os países islâmicos, atualmente, enfrentam uma grande dificuldade para sobreviver, com a violência e a discriminação, sem qualquer perspectiva para os muçulmanos. O mais importante para os muçulmanos é viver em paz. O povo muçulmano, neste momento, busca a sua liberdade, sem violência e sem agressão. Queremos viver em paz. Os países islâmicos, neste momento, enfrentam agressões, perseguições e ignorância, mas a religião islâmica tem como bandeira mais importante a paz, a bandeira de entendimento entre todos os povos.

IHU On-Line - Que possíveis respostas esse livro sagrado pode oferecer?

Ahmad Ali - O Alcorão oferece todo o futuro do ser humano. O conteúdo do Alcorão Sagrado recomenda a construção de um futuro. Ele demonstra que temos que trabalhar hoje para colher amanhã. Não podemos ficar patinando atrás de falsos religiosos que recomendam X e Y, totalmente diferente do Alcorão Sagrado, que recomenda a igualdade racial e da humanidade e a liberdade do ser humano.

IHU On-Line - Vivemos em um país em que o respeito à liberdade religiosa é relativamente grande. Por isso, às vezes somos surpreendidos pelas disputas religiosas em outros países. Qual a sua opinião sobre a divisão existente entre sunitas e xiitas?

Ahmad Ali - O Islamismo busca a paz e vai mostrar para o mundo a verdadeira justiça. Condeno totalmente qualquer diferença. Se sou muçulmano e sou sunita, sou, porém, um muçulmano que acredita na valorização do ser humano. Acho que tanto sunitas quanto xiitas têm o direito de pensar diferente, pois as grandes diferenças entre eles são os conflitos. Mas eles estão desmoralizando o Islã e a caminhada do povo islâmico em busca de unidade, da liberdade. Um deve reconhecer o direito do outro, e não pode impor que o outro deva ser sunita ou xiita. Todos temos o direito de pensar diferente. Mas o mais importante é que eles sigam as palavras escritas no Alcorão Sagrado. E eu duvido que eles, até hoje, as estejam seguindo.

IHU On-Line - Hans Küng, idealizador do projeto de ética mundial, de onde surgiram os filmes do programa "Religiões do Mundo", defende que só haverá paz no mundo se houver paz entre as religiões. Que contribuições o Islamismo apresenta para que essa paz entre as religiões seja possível?

Ahmad Ali - O Islamismo tem o projeto mais completo para a paz da humanidade. O próprio profeta Mohamed buscou o entendimento entre todas as religiões existentes naquela época, na Arábia - havia o Cristianismo e o Judaísmo - e deu a liberdade para cada comunidade e para cada povo seguir a sua religião. Os judeus tinham a sua própria justiça separada, os cristãos tinham a própria justiça, o Islamismo também. E para não discriminar, se algum judeu ou cristão cometesse algum ato violento ou de discriminação, quem julgava não era muçulmano. Então, juízes judeus julgavam os judeus, quem julgava os cristãos eram juízes cristãos. Essa é a mensagem de Mohamed. Quando os muçulmanos ocuparam a Península Ibérica mostraram que são gente de paz, sempre reconhecendo os direitos dos outros. E, depois, quando os muçulmanos ocuparam Jerusalém, nosso segundo profeta deu garantias completas para todos os povos residentes na cidade de Jerusalém.

IHU On-Line - Mais especificamente, como é ser muçulmano no Brasil, terra de liberdade de costumes e de sincretismo religioso?

Ahmad Ali - Depende de cada muçulmano, porque nem todos os muçulmanos são iguais. Eu me considero convivendo em um país que deve respeitar seus costumes, a liberdade, e reconhecer o direito de cada um decidir o que fazer e o que não fazer, a partir do momento em que ele cumpre integralmente a constituição brasileira. Nós, muçulmanos, temos a obrigação de respeitar a constituição do Estado brasileiro conforme ela é. Não podemos nos impor diante de um país que tem quase 200 milhões de habitantes, com uma minoria islâmica. Temos que nos adaptar com a realidade das nossas comunidades, nossa cultura, educação e nossas tradições.

IHU On-Line - Uma pergunta mais pessoal: o que é o Islamismo para o senhor?

Ahmad Ali - O muçulmano é um ser humano igual ao outros, mas me refiro àquele verdadeiro crente, porque já temos muçulmanos "picaretas" o bastante. Temos muitos muçulmanos oportunistas. O verdadeiro muçulmano é aquele que olha para todos os lados e enxerga todos com igualdade e não pode discriminar X ou Y, se é muçulmano ou não, se é negro ou branco, amarelo ou vermelho. Esse é o verdadeiro muçulmano. Os muçulmanos têm seus defeitos. Estamos vivendo em países islâmicos que têm muita violência, não temos paz e liberdade em nenhum país. Ditaduras oportunistas exploram o homem muçulmano. Mas estamos falando sobre o Islã, e este eu respeito. Os muçulmanos, lamentavelmente, deixam a desejar.

IHU On-Line - Qual a sua história pessoal como fiel muçulmano?

Ahmad Ali - Sou palestino. Vim para o Brasil em 1955. Eu amo e defendo minha religião. A religião islâmica quer, antes de mais nada, mostrar ao mundo que a religião tem que estabelecer as bases da verdade, da seriedade, da educação, da tradição dentro dos países que são 90% muçulmanos, que sofrem, todos os dias, perseguição, violência, restrição da liberdade. Todos os meus cinco filhos seguem a religião islâmica, mas todos com uma visão diferente de muitos muçulmanos. Nós trabalhamos e buscamos as raízes da nossa educação, da nossa cultura no próprio Alcorão Sagrado, na própria religião islâmica. Não queremos ser melhores do que ninguém. Temos que mostrar que somos melhores se temos justiça, liberdade, senão temos violência, perseguição e ditaduras, que eu condeno totalmente.