domingo, 15 de novembro de 2009

A queda de dois muros - o muro de Berlim e agora o muro do dinheiro

Postado por Attman e Kamadon

Selvino Heck

9 de novembro de 1989. Nos últimos dias, jornais, noticiosos e imprensa perguntam pessoas do povo e personalidades sobre onde estavam nesta data. Não lembro exatamente o que eu fazia. Mas, em início de outubro de 1989, dias antes, terminara a Constituinte do Rio Grande do Sul, quando eu e outros três bravos companheiros deputados estaduais votamos contra a nova Constituição estadual, embora a assinássemos. E estávamos às vésperas do primeiro turno da primeira eleição para presidente depois de décadas de ditadura, que então acontecia em 15 de novembro, e eu era o Coordenador Geral da campanha Lula no Rio Grande do Sul.
A preocupação geral era levar Lula ao segundo turno. Num Estado de larga tradição trabalhista, a cada nova pesquisa eleitoral os votos de Lula minguavam e os de Leonel Brizola, ex-governador, ex-comandante do Movimento da Legalidade em 1961, cresciam geometricamente, o que poderia levá-lo para o segundo turno contra Collor. Os resultados no Rio Grande do Sul tendiam a ser determinantes. (Lula acabou tendo cerca de 6% dos votos no Rio Grande, foi para o segundo turno, Brizola mais de 60%, convertidos quase integralmente para Lula na etapa final de dezembro, não suficientes, porém, para derrotar Collor).
A queda do Muro de Berlim, portanto, no plano imediato e diário, não estava no centro das atenções e preocupações, embora todos acompanhássemos os acontecimentos e as informações. Mas do ponto de vista histórico, olhando para trás 20 anos depois, é possível dar-se conta e dimensionar seu grande significado.
Mesmo quem não comungava do marxismo ortodoxo ou quem tinha profundas críticas ao socialismo real, como era o caso da maioria das lideranças e militantes dos movimentos sociais e do Partido dos Trabalhadores e dos lutadores e lutadoras da causa da transformação econômico-social, o horizonte de todos e todas era o socialismo. O mundo estava dividido em dois blocos. As referências e análises levavam em conta, eram feitas e agia-se a partir desta divisão. De alguma maneira, o socialismo do Leste pairava no ar e servia de bússola.
A partir de 9 de novembro de 1989, não existiam mais dois blocos dividindo política e ideologicamente o mundo. Para muitos e muitas, na prática, era quase como se o sonho de mudança e de socialismo tivesse acabado. Como escreve Emir Sader, "terminou a etapa da bipolaridade e o socialismo desapareceu da agenda mundial como atualidade histórica" (A Esquerda depois do Muro). Na feliz expressão do professor de filosofia Ernildo Stein, ficamos todos e todas ‘orfãos da utopia’.
O capitalismo, que passara por sucessivas crises, aproveitou a oportunidade histórica. "Havia pelo menos 15 anos que um pensamento econômico e político desafiava, com crescente êxito, a economia e a política agonizantes do comunismo. Por isso, quando ruíram as ditaduras comunistas, o ‘neoliberalismo’ apareceu como a grande alternativa" (Nossos muros caíram, Renato Janine Ribeiro, Valor Econômico,, Caderno E &, 23.10.09, p. 24).
No Brasil, dou-me conta e consigo avaliar melhor hoje, além do medo criado na população caso houvesse uma eventual vitória de Lula - o comunismo está chegando, quem tem duas casas vai ter que entregar uma, etc. -, além das manobras da mídia conservadora - Míriam Cordeiro e o último debate na Globo -, a vitória de Collor tornou-se possível e mais fácil. Afinal, o Muro de Berlim caíra, o projeto socialista fracassara. Por que um operário metalúrgico ganharia as eleições no Brasil com ideário próximo ao Leste europeu, quando o resto do mundo o rejeitara e o catalogara como ditadura, falta de liberdade, ausência de desenvolvimento econômico, opressão, etc.? Por que instaurar no Brasil o que acabara no resto do mundo? Esse foi o clima criado e o tom da campanha eleitoral de Collor.
O fim da ditadura militar, as Diretas-Já, a Constituinte e suas mobilizações, a ascensão das lutas de massa, através de movimentos sociais de articulação nacional, indicavam, na sua continuidade e por lógica, a vitória de Lula, a libertação, a democracia conquistada, os direitos do povo trabalhador, um governo democrático-popular.
A queda do Muro de Berlim interrompeu tudo isso e "o neoliberalismo tornou-se dominante não apenas como política de governo, mas como modelo hegemônico, como valores, como forma de vida. O individualismo possessivo, o mercado, o egoísmo, o consumismo, os shopping centers, as grandes marcas, as empresas como símbolo do dinamismo econômico, entre outros valores, passaram a constituir o novo modelo econômico" (Emir Sader, a Esquerda depois do Muro).
Um sonho morreu, pelo menos na forma como se estabeleceu historicamente, em especial nos países do Leste europeu. O pensamento e os valores neoliberais tornaram-se hegemônicos mundialmente, como talvez nunca acontecera com nenhum pensamento e ideologia em outro momento da história.
Outubro de 2009, 20 anos depois, cai outro muro. "Para retomar uma expressão freqüente na França entreguerras, foi o ‘mur d’argent’, o muro do dinheiro (neoliberal)" (Renato Janine Ribeiro). Para os lutadores e os que sonham com a transformação econômico-social-cultural, acabou um pesadelo, o do capitalismo neoliberal, antes de desgraçar definitivamente o mundo, jogar grande parte da população mundial do planeta na fome e no desemprego, acabar com o ar respirável e poluir irreversivelmente o meio ambiente e a atmosfera.
A crise econômica, também social, ambiental e de paradigmas, que atravessa o mundo desde 2008, é reflexo do muro da desigualdade, o muro da injustiça, o muro do pensamento único, da ditadura do capital, do lucro e do consumo sem freios nem medidas instalado no mundo a partir de 1989. Com gravíssimas conseqüências para o povo trabalhador, para os pobres, para a vida e sobrevivência da terra.
Ao contrário, porém, do que aconteceu com a queda do Muro de Berlim, quando o capitalismo aproveitou a oportunidade e semeou o modelo neoliberal, desta vez não há um projeto alternativo que possa ser apresentado e implementado. "O espantoso é que, desta vez, ninguém estava preparado para colher os frutos dessa nova queda. A direita e o capital conseguiram triunfar, com a queda do comunismo, em 1989. Mas em 2008, com a exceção da pequena Islândia, a crise não levou nenhum país para a esquerda" (Renato Janine Ribeiro).
Há, é verdade, ensaios com os governos democráticos, populares e progressistas eleitos nos últimos anos na América Latina. Com diferenças entre si, são novidade e procuram implementar formas alternativas de desenvolvimento e um novo projeto de sociedade.
O Fórum Social Mundial, que vai comemorar 10 anos em Porto Alegre em janeiro de 2010 (informações: www.fsm10.org), proclama que ‘um outro mundo é possível’, sem adiantar, porém, como será e de que forma pode-se construí-lo.
Há muitas iniciativas, experiências e esforços da sociedade civil em buscar caminhos novos e alternativos - economia solidária, grupos cooperativados de geração de trabalho e renda, conselhos de participação popular, Orçamento Participativo, etc. -, que superem tanto os equívocos e desvios do socialismo real derrubados pelo Muro de Berlim quanto os perigos do neoliberalismo predador assinalados pela queda do muro do dinheiro.
O caminho é longo e não é fácil. Mas antes que seja tarde, de preferência de baixo para cima, é preciso trilhá-lo no rumo da democracia, da igualdade, da justiça social, da liberdade. Em vez de novos muros a serem derrubados, um novo sonho, ou um outro mundo possível, é necessário e urgente. Deles não se pode desistir.

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