quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Sartre proibido proibir

Capítulo 1 - Foto 3 x 4 do nascimento do século
Foi quase um aborto o nascimento deste nosso século. Uma infinidade de conflitos regionais culminou com a explosão de um novo modo de fazer guerra: a 1ª Guerra Mundial, iniciada em 1914. Nunca tantos mortos (20 milhões de soldados e civis, por bombardeios, massacres, fome ou epidemias), nunca tanta sofisticação de gases asfixiantes, metralhadoras, balas explosivas, canhões e tanques.
Em 1917 estourou a Revolução Russa, prenúncio de uma nova sociedade, radicalmente diversa da capitalista, também com milhões de mortos, deportados e mutilados.
Em 1929 a quebra da Bolsa de Valores de Nova York carregou e cores sombrias esse cenário, causando desemprego em massa, fome, extorsões e contrabandos, além de pressões econômicas das nações ricas sobre os países pobres.
Mal refeito da 1ª Guerra e dos abalos da economia, o mundo se envolveu, em 1939, numa 2ª Guerra Mundial, ainda mais destruidora e cruelmente sofisticada. Os tiros dos campos de batalha terminaram em 1945, mas o conflito ainda permaneceu aberto, pulsante como uma chaga viva.
Não contentes com os 45 milhões de motos, os interesses das nações e de sues dirigentes inauguraram a guerra fria. O clima da guerra fria se caracterizou pelo medo generalizado diante da constante ameaça de uma guerra nuclear, acusações mútuas entre americanos e soviéticos, espionagem e contra-espionagem, perseguições ideológicas e censura às artes e ao pensamento. Mas não pense você que isto foi o fim do mundo.
Em meio aos gritos de dor, debaixo dos bombardeios e contando com recursos de milhões de dólares, a ciência e a tecnologia se desenvolveram espantosamente. Dia e noite trabalhavam para (além de artefatos bélicos) produzir invenções que trouxessem benefícios para a humanidade.
Muita guerra, muita tecnologia: cadê o homem?
O que o homem não conseguiu nos 100 mil anos de sua existência sobre a Terra, alguns países da Europa e os EUA conseguiram nos primeiros 50 anos do século XX. Máquinas novas, cidades de concreto, TV, vacinas, automóvel, avião, foguete, domínio da energia atômica, informática...
No entanto o homem científico e a sociedade tecnológica não cumpriram uma promessa esperada: a melhoria da vida humana.
E sabe por quê? Porque junto com o conhecimento exato produzido pela ciência - quase urna deusa - veio um monte de bugigangas tecnológicas, que tinham por trás um projeto de dominação política e econômica. As guerras foram uma forma de reforçar essa dominação.
Afinal se percebeu que as certezas da ciência não serviam em nada à causa de uma sociedade mais humana. Os homens da década de 50 não poderiam pensar de outro modo:
"Que sujeito é este que domina as distâncias e se comunica em segundos e tem poder de explodir várias vezes este planeta e, contudo, não se conhece?".
Então tornou-se clara a mentira da promessa feita por Augusto Comte (1798-1857) de que uma era da ciência corresponderia a um grande avanço e ao amadurecimento definitivo da humanidade.
"Ordem e progresso!" foi a proclamação de um Comte cheio de esperança. Mas que nada! Ordem: em que direção? Progresso: para quantos? O mundo (salvo umas privilegiadas exceções que tentavam impor-se como regras) caminhava para o caos, para o agravamento da dominação e do extermínio.
Poucas nações, poucos grupos dominavam quase toda a riqueza, os bens culturais e o poder político do mundo. Após as duas guerras mundiais, a fé do homem em si mesmo e na sua obra era decepcionante! A guerra destruira em pouco tempo agrupamentos humanos, realizações materiais e tesouros de arte que demoraram séculos para se constituir.
Inverter a História
Alto lá! Os jovens e os pensadores dos anos 50 precisavam achar a ponta desse emaranhado, para ajudar a mudar o curso dessa história. Ao verem a triste situação do mundo e de si mesmos, eles se perguntavam: tanta busca, tanto sonho, tanto amor, tanto trabalho, para NADA?
Onde está o bem? Qual é a linha que o separa do mal? Haverá uma saída para evitar que esta aventura de viver não termine na morte com nossas próprias unhas?
Onde está a verdade: na ciência? no ser humano?
Uma certeza: a ciência não responde a tudo. Ela não é tão autônoma corno aparentava, mas está amarrada a um projeto de sociedade. Há de se buscar na Filosofia um conjunto coerente de resposta,, para o dilema de viver.
A Filosofia apareceu como uma nova paixão capaz de indicar novos caminhos. A, sabedoria dos jovens pensadores angustiados percebia que a vida é incerta, é ambígua. Nada é como nos ensinavam os velhos filmes de caubói, em que o chapéu do herói metido em brigas jamais cai, seu revólver jamais descarrega e ele sempre acaba dando um beijo (cinematográfico...) em sua noiva.
Hollywood punha divisórias na tela: de um lado ficava o índio, sempre traidor e ignorante; do outro, o branco, doce conquistador (de mulheres e terras alheias), acompanhado de crianças lourinhas e música romântica. O bem e a mentira eram claramente separados. O progresso sempre estava ao lado da ciência. enquanto outras dimensões humanas eram classificadas de bruxaria, e por isso olhadas com surpresa.
Não é isso que acontece na vida real.
Dentro de cada indivíduo e na trama da sociedade, a realidade é ambígua: o bem e o mal andam de mãos dadas, misturam-se. Ora odiamos, ora amamos. O mesmo bandido que rouba latifundiários tem bons sentimentos com as crianças, e o justiceiro louro, montado em seu cavalo idem, pode ser mesquinho com seus pais e ter medo de quarto escuro.
Quem está com a verdade? Quem está com a mentira?(O que você acha?)
O gosto pela evidência e o sentido da ambigüidade
A realidade humana é cheia de contradições: a própria vida está cheinha de morte, e seus poros transpiram dores:
"A hora do encontro é também despedida
chegar e partir são dois lados da mesma viagem
o trem que chega é o mesmo trem da partida
a plataforma desta estação e' a vida. " Milton Nascimento
Apenas um bisturi mental é capaz de separar a verdade da falsidade ou o belo do feio. Essa cirurgia é feita utilizando-se o pensamento. Cada um de nós pode entender com clareza o que é bem e o que é mal. Só que isso não basta. Viver é diferente de entender!
Na primeira metade do nosso século, os filósofos ainda estavam preocupados em separar o certo do errado, em classificar quem era sujeito e quem era objeto: "Há diferença entre o eu que pensa e as coisas exteriores ao pensamento?". Esses pensadores foram atraídos pela clareza e buscaram iluminar a existência humana.
Mas logo a existência se manifestou escorregadia: ela escapa de cada rede que a razão lança sobre ela para capturá-la e estudá-la.
Enterrado nos escombros de um mundo que desabou, para o angustiado homem do pós-guerra desvendar a vida humana transformou-se num questão de sobrevivência. É por isso que os existencialistas, filósofos por excelência dos anos 50, se definiram como aqueles que têm "o gosto pela evidência e o senso da ambigüidade". Daqui para frente vamos falar de um homem assim: angustiado. Nele você certamente encontrará muito do conhecimento de cada um de nós, do nosso tempo e do nosso mundo.
Os existencialistas foram muitos e de várias tendências. Alguns são considerados precursores: Kierkegaard, Nietzsche e Husserl. Eles forneceram muitos dos fundamentos teóricos de Sartre. Outros combateram na França pelos ideais existencialistas juntamente com Sartre. São eles: Emmanuel Mounier, Gabriel Marcel, Albert Camus, Simone de Beauvoir e vários outros..
Não há propriamente o existencialismo, como se fosse uma escola filosófica definida. É mais correto falar-se em "clima existencialista" já que cada pensador dessa corrente tem uma abordagem original. Mas há um núcleo de preocupações e temas fundamentais, comuns à maioria dos existencialistas:
- a razão humana é impotente para resolver todo, os problemas da existência;
- o homem está sempre se fazendo e refazendo;
- o ser humano é frágil;
- a realidade nos aliena, nos toma estranhos a nós mesmos;
- a morte é urna presença constante na vida;
- não se pode fugir da solidão;
- a existência é um mistério;
- o Nada provoca o ser humano a avançar.

Antes de serem uma filosofia do mundo, ou das coisas, as idéias existencialistas pretendem ser uma filosofia do homem. Não são reflexão de um homem perfeitamente organizado, ideal, passível de ser analisado e compreendido. Trata-se de uma filosofia de um homem misterioso, surpreendente, dilacerado por contradições insolúveis.
Vamos Refletir
1. Quais os grandes dilemas humanos de nossa década, em nosso país e no mundo todo?
2. Quais os dilemas do jovem brasileiro atual?
(Reflita individualmente e, em seguida, discuta as questões acima com o grupo de trabalho)
3. No texto do filósofo Roger Garaudy (anexo), identifique as preocupações destacadas neste capítulo.
4. No texto Moral da ambigüidade (anexo), de Simone de Beauvoir - companheira de toda a vida de Sartre -, você tem um bom exemplo da vertente feminina do existencialismo, numa reflexão sobre a fase que você está vivendo.
Propostas de Atividade
Fazer uma pesquisa, ou entrevista com cientistas, sobre os tipos de problema
que a ciência resolve e tipos que não soluciona.
Anexos
1. Perspectivas
Roger Garaudy "A humanidade inteira, se continuar a viver, não será simplesmente porque nasceu, mas porque terá decidido prolongar sua vida. Não mais existe espécie humana. A comunidade que se fez guardiã da bomba atômica está acima do reino natural, porque é responsável por sua vida e por sua morte; a cada dia, a cada minuto, será preciso que consinta em viver. Eis o que experimentamos hoje, na angústia. Nosso mundo é uno. Mas é um mundo dilacerado. Este mundo é uno porque o desenvolvimento da técnica e da produção engendrou um mercado mundial, a economia de um mundo fechado no qual o destino de cada homem depende de fato Econômica, política, moralmente, do de todos os outros.
Política, moralmente, a vida cotidiana de cada homem sofre a ressaca das mais longínquas: na Bolsa de Nova York, uma manifestação em Tóquio, um plano econômico em Moscou, uma revolta na África ou na Ásia. As crises tornaram-se mundiais, as guerras também.
Mas esta interdependência universal não é uma solidariedade universal. Está feita de contradições e conflitos. A universalidade só se exprime concretamente porque, doravante, todas as lutas se desenvolvem em escala planetária: as lutas de classe, as lutas nacionais, as lutas ideológicas.
Nenhum conflito tem caráter regional. Nenhuma responsabilidade tem caráter limitado. Nenhuma liberdade é solitária. De direito, estamos todos implicados na grande contestação do mundo. A história o quis assim. Estamos aí e não podemos fazer de outro modo. A responsabilidade é pessoal, ninguém pode furtar-se a ela."
( Perspectivas do homem. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 5)
2. Moral da ambigüidade
Simone de Beauvoir
(Para a criança) "as invenções humanas - as palavras, os costumes, os valores - são fatos consumados inelutáveis como o céu e as árvores, ou seja, o mundo em que vive é o mundo do sério, já que o específico do espírito de seriedade é considerar os valores como coisas estabelecidas. (... ) o mundo verdadeiro é o dos adultos, onde não lhe é permitido senão respeitar e obedecer. Ingenuamente vítima da "miragem do para-outro, crê no ser dos seus pais, dos seus professores: considera-os como as divindades que estes procuram vãmente ser e cuja aparência se comprazem em imitar diante de olhos ingênuos. As recompensas, as punições, os prêmios, as palavras de elogio ou de censura insuflam na criança a convicção de que existe um bem, um mal, fins em si, como custe um sol e uma lua. (... ) E é nisto que a condição da criança (ainda que possa ser, em outros aspectos, infeliz) é metafisicamente privilegiada: a criança escapa normalmente à angústia da liberdade; pode ser, a depender de sua vontade, indócil, preguiçosa; seus caprichos e suas faltas dizem respeito somente a ela, não pesam sobre a terra, não poderiam perturbar a ordem serena de um mundo que existia antes dela, sem ela, no qual está em segurança por sua própria insignificância; pode fazer impunemente tudo o que lhe agradar, sabe que nada acontecerá por causa disso, tudo já está dado; seus atos não comprometem nada, nem mesmo a si própria.
(...) é muito raro que o mundo infantil se mantenha além da adolescência. Desde a infância, já suas falhas se revelam; no espanto, na revolta, no desrespeito, a criança pouco a pouco se interroga: por que é preciso agir assim? A quem isto é útil? E, se ou agisse de outra forma, que aconteceria? ( ) E quando chega à idade da adolescência, todo seu universo se põe a vacilar, porque percebe as contradições que os adultos opõem uns aos outros, bem como suas hesitações, suas fraquezas. Os homens cessam de lhe aparecer como deuses, e, ao mesmo tempo, o adolescente descobre o caráter humano das realidades que o cercam: a linguagem, os costumes, a moral, os valores têm sua fonte nessas criaturas incertas; chegou o momento em que será chamado a participar também dessa operação; seus atos pesam sobre a terra tanto quanto os dos outros homens, ser-lhe-á preciso escolher decidir. Compreende-se que tenha dificuldade em viver esse momento de sua história e reside nisso, sem dúvida, a causa mais profunda da crise da adolescência: é que o indivíduo deve, enfim, assumir a sua subjetividade. De certa forma, o desabamento do mundo sério é urna libertação. Irresponsável, a criança se sentia também sem defesa em face das potências obscuras que dirigiam o curso das coisas. Mas, qualquer que seja a alegria dessa libertação, não é sem uma grande confusão que o adolescente encontra-se jogado num mundo que não é mais completamente feito, mas a fazer, dono de uma liberdade que nada mais prende, abandonado, injustificado. Em face dessa situação nova, que pode ele fazer? É nesse momento que se decide; se a história, que se pode chamar natural, de um indivíduo - sensualidade, seus complexos afetivos etc. - depende sobretudo de sua infância, é a adolescência que surge como o momento da escolha moral: então, a liberdade se revela e é preciso decidir que atitude tomar diante dela.( ... ) A infelicidade que vem ao homem do fato de ele Ter sido uma criança consiste, pois, em que sua liberdade lhe foi inicialmente ocultada e em que ele guardará toda sua vida a nostalgia do tempo em que ignorava as exigências dela".
Capítulo 2 - Sartre entra em cena
Jean-Paul Sartre sempre me fascinou pela sua paixão tranqüila e insensata pelo viver. Ele reuniu em si princípios de vida que quase nunca andam juntos... ao menos na figura de um filósofo. Sartre foi um soldado e um pensador
corajoso; foi um boêmio por princípio de prazer e de liberdade; foi uni assíduo de panfletos e barricadas; literato explosivo e professor sutil e extasiante, desde os 26 anos.
Nascido em Paris em 1905, de saúde frágil, filho de família burguesa, jamais imaginaria que, como membro da Resistência Francesa, viria a combater violentamente a ocupação nazista da França, entre 1940 e 1944. Durante a 2ª Guerra Mundial, serviu no exército como meteorologista na região de Lorena, entre 1940 e 1941. Feito prisioneiro, ficou na cidade alemã de Tréves, onde Karl Marx nasceu. Fugiu de lá utilizando-se de documentos falsos.
Nosso filósofo também esteve na linha de frente dos mais importantes acontecimentos políticos da França, nos últimos 30 anos. Defendeu a libertação da Argélia, então uma colônia francesa, que só se tornou independente em 1962, após violenta guerra que durou 8 anos.
Em maio de 1968 o velho professor, aos 63 anos, junto com seus alunos, empilhou os paralelepípedos tirados das ruas de Paris para construir as "barricadas do desejo", símbolo de um movimento estudantil que pretendia revolucionar todos os aspectos da vida do país.
Mas foi através de sua permanente dedicação à literatura que Sartre pretendeu atingir três objetivos principais na vida: realizar sua paixão pela arte, comunicar-se com os homens e mulheres de seu tempo, virar as estruturas deste mundo de cabeça para baixo.
Para ele, literatura não era um luxo, nem uma diversão, mas uma arma política, uma armadilha Para colher coisas vivas:
Por ter descoberto o mundo através da linguagem tomei durante muito tempo a linguagem pelo mundo. Existir era possuir uma marca registrada, alguma porta nas tábuas infinitas do Verbo, gravar nelas seres novos - foi a minha mais tenaz ilusão -, colher as coisas vivas nas armadilhas das frases.
A partir de 1940 Sartre retomou as aulas que havia iniciado em 1931 e largado várias vezes para continuar seus estudos. Nesse tempo, começou a escrever suas obras mais marcantes.
Ele organizou grupos clandestinos, dedicados a atividades literárias, jornalísticas e teatrais. Fundou o grupo "Socialismo e Liberdade", integrando o Comitê Nacional dos Escritores, colaborou nas Publicações clandestinas O Combate e Cartas Francesas. Sob sua liderança, foi fundada em 1944 a revista de maior importância das últimas décadas na França: Tempos Modernos.
A obra literária, teatral, jornalística e filosófica de Sartre fez dele o mais importante escritor francês deste século.
Aos saltos
Não se pense que Sartre viveu como alguém que cumpre um horário rígido. Sua trajetória não foi certinha, mas realizou-se aos saltos. Ele mesmo confessou que era um jovem burguês, brioso, espirituoso, anarquista, sutil, paradoxal, mas que não parecia partilhar dos sofrimentos dos homens.
Enfim, um jovem classe-média, talvez parecido com você. Sartre se dedicou a ser um professor, brilhante e bem-falante, curtindo nas horas vagas suas aulas de boxe, o desenho animado, o cinema. Sobretudo, era fã apaixonado do jazz.
Mas a 2ª guerra Mundial (1939-1945) o empurrou violentamente para a idade da razão. Ele reconheceu que
Entre 1939 e 1945 não fazia política. Me ocupava de literatura, vivia com meus amigos, era feliz... Subitamente estourou a guerra e, aos poucos, sobretudo depois da derrota e da ocupação alemã, eu me senti completamente privado do mundo que eu acreditava ter diante de mim. Encontrei-me diante de mundo de miséria, de malefícios e desespero. Mas recusei esta possibilidade de desespero que era tão freqüente à minha volta e aliei-me a amigos que não se desesperaram, que pensavam no que era possível fazer, lutar por um futuro feliz, embora no momento parecesse não existir absolutamente qualquer possibilidade de existência para este futuro.
(O Testamento de Sartre. Porto Alegre. L& PM Editores, 1986, p. 62)
Obras
Em 1936 ele escreveu duas obras: A imaginação e Melancolia, que depois se intitularia A náusea. Nelas ele se definiu como pensador. Iniciou a produção de seu trabalho mais filosófico, até aquele momento, fazendo uma análise da imaginação.
Ao contrário das filosofias da época, que valorizavam o pensamento, a razão, ele refletia sobre um elemento aparentemente menos importante: justamente a imaginação. Nessa tarefa, ele adotou, à sua maneira, um método conhecido como Fenomenologia.
Mas o que é Fenomenologia? A grande ambição deste jovem filósofo era falar das coisas em estado puro, tais como as via e as tocava, sem serem "infeccionadas" pela cultura ou pelas interpretações dos outros. Isso era para ele a Filosofia. A Fenomenologia buscava a proeza de ultrapassar as dificuldades encontradas por outras filosofias, como o idealismo e o materialismo, na sua tentativa de explicar totalmente o mundo.
O idealismo ensina que as únicas coisas que existem são as idéias. Só as idéias têm a existência perfeita. Nosso corpo e apenas pálido e imperfeito conhecimento delas. Enfim, o real está na consciência e no pensamento de cada um.
Para o materialismo, ao contrário, o mundo econômico e social engloba toda a realidade, não existindo prioritariamente nada fora da economia e das organizações materiais de sociedade.
Husserl (1859-1938), pai da Fenomenologia, elimina a oposição entre consciência e matéria, dizendo que as idéias só existem porque são idéias de alguma coisa - "Toda consciência é consciência de alguma coisa". Não podendo ser separadas, elas constituem uma única coisa "o fenômeno".
Sartre se apaixonou pela Fenomenologia. Conseguiu uma bolsa de estudos e foi para a Alemanha estudá-la, entre 1933 e 1934. Neste período, testemunhou a ascensão de Hitler. Entre 1936 e 1938, foram publicados A Náusea e o Muro, que projetaram Sartre no mundo do drama literário. Com esses dois romances ele inaugurou uma forma de expressão do pensamento, utilizando-se de diários íntimos, romances e ensaios, em que as idéias filosóficas ganham corpo nos seus personagens. Esses personagens não deixavam de ser um eco da vida pessoal do próprio Sartre.
Em 1943 foi encenada em Paris a peça As moscas, baseada numa lenda grega. Nela Sartre apresenta arte aquilo que as nações invadidas, ou então violentadas por governos totalitários, têm de aprender a fazer. Dentro daquele momento histórico, com alemães nazistas e colaboracionistas (traidores) franceses rondando cada canto da vida da França, As moscas explodiu corno uma conclamação à resistência.
Fico a imaginar a emoção do público, dos atores e do próprio ator diante da ação dramática que se desenrola no palco, ameaçada por um permanente risco de ser reprimida. Em seu enredo, a peça fala de um comandante, Egisto, que tomava o poder na antiga Atenas com a ajuda de colaboracionistas, representados pelo personagem Clitemnestra. As moscas representam a praga do medo, que tomou conta dos franceses. Orestes, o líder da resistência, conclama à luta contra os invasores.
O Ser e o Nada, escrito em 1943, é seu mais importante trabalho especificamente filosófico. Nessa obra está o fundamento teórico para afirmações sartrianas que serão encontradas em todos os seus trabalhos políticos ou literários.
Eis algumas das principais obras de Sartre e as datas de publicação. Os títulos já são, por si, sugestivos:
- Os caminhos da liberdade: trilogia de romances publicada entre 1943 e 1949, de que constam A idade da razão, O sursis e Com a morte na alma.
- Mortos sem sepultura e A prostituta respeitosa, 1946
- As mãos sujas, 1948
- O diabo e o bom Deus, 1951
- A questão do método, 1956
- Crítica da razão dialética, 1969
- Os seqüestradores de Altona, 1969
- Sartre em cuba, 1961
- Situações V - o colonialismo e o neocolonialismo, 1964
- Situações VI e VII - os problemas do marxismo, 1964
- Existencialismo e Marxismo, 1957
- O idiota da família (1, 2,3), 1971 e 1972

É proibido proibir
Para mim, contudo, a mais importante das obras de Sartre foi seu gesto nas ruas de Paris, naquelas "barricadas do desejo". O grito de guerra dos estudantes era "É proibido proibir".
Eu lia com admiração os jornais de 1968, estampando a figura de Sartre caminhando à frente de passeatas, formando uma corrente com os estudantes, enfrentando a policia. Simbolicamente, ele enfrentava a violência policial e militar de todo o mundo.
De onde lhe nasceu essa capacidade de busca contínua de um destino renovado, para si e para a humanidade? Nunca dando respostas prontas, sempre sem fronteiras, sempre se projetando além de seus livros, de seus quartos de hotéis e de seus cafés, situados na boêmia Rive Gauche, o lado esquerdo do rio Sena.
Segundo o mesmo Sartre, essa busca contínua nasceu de sua falta de superego (a dimensão do psiquismo que rege os deveres, a idéia de bem e mal, enfim a moralidade. A formação do superego na criança, em nossa sociedade, é atribuída à influência da figura paterna).
É, esta forma que, com seu humor característico, o filósofo interpreta a morte de seu pai, ocorrida quando ele tinha dois anos:
Foi um mal? um bem? Não sei, mas subscrevo de bom grado o veredito (a meu respeito) de eminente psicanalista: não tenho superego. (Os pensadores. São Paulo, Abril, 1973, fascículo 68, p. 887)
Além desse fato na sua vida individual, Sartre viveu, dos 14 aos 40 anos, nada menos do que as duas guerras mundiais. Não seria de estranhar que dessas circunstâncias resultasse um intelectual inquieto e desenraizado que buscou, sem conseguir ir ao fim, as causas profundas daquela cultura. A tarefa era por demais ampla para um só homem. Além do mais, sua saúde fraca foi mais debilitada ainda pelo excesso de bebida e fumo. A perda quase total da visão, nos últimos anos, fez de sua companheira, Simone de Beauvoir, uma semi-escritora de suas obras. Foi Simone também que, mais tarde, leu diariamente os jornais para ele. Ela se constituiu numa espécie de olhos de seu mundo.
Mas a inquietação não parou por aí. Já em idade madura, Sartre quase foi preso por vender nas ruas de Paris jornais considerados subversivos, que defendiam uma revolução cultural, como a que era implantada na China por Mao-Tsé-Tung.
Fora com o Prêmio Nobel!
No auge de sua carreira, artista, literato e político de prestígio negou-se a receber o Prêmio Nobel de Literatura, que lhe foi atribuído em 1964. Receber essa honraria, para Sartre, significaria reconhecer a autoridade da Academia Real da Suécia, comissão julgadora do prêmio. E para onde iria sua liberdade, sua autonomia de criação?
A destruição produzida pela guerra impulsionou-o a "novos possíveis", a serem construídos sobre a paixão pela liberdade.
É assim que, por detrás de muitas das conquistas libertárias do homem ocidental de hoje, encontra-se o aval de Sartre. Mas não se deve esquecer, nessa movimentação, a participação de Simone de Beauvoir, sua companheira, e de inúmeros outros existencialistas.
E foi em meio a um turbilhão de novos valores e propostas que ele dizia com tranqüilidade:
Não cesso de me criar, sou doador e a doação. Se meu pai vivesse, eu conheceria meus direitos e meus deveres: ele está morto e eu os ignoro. Não tenho direitos, pois o amor me cumula; não tenho dever pois dou por amor?
Sem nenhum formalismo, Jean-Paul e Simone viveram juntos até a morte do filósofo, em maio de 1980. Nada de certidões ou contratos durante esses 56 anos de convivência: o único laço que os uniu foi a liberdade que se renovava a cada dia. Isto não quer dizer que ele não tivesse tido uma vida cercada de presenças femininas pelas quais nutria grande afeto e até relações íntimas.
Tão forte quanto seu amor pelas mulheres e pela vida, foi sua esperança, mesmo no bojo deste nosso planeta, cada dia mais miserável. Dois meses antes de sua morte, em sua última entrevista, Sartre disse que
o mundo parece feio, mau e sem esperança. Esse é o desespero tranqüilo de um velho que vai morrer ali dentro. Mas justamente eu resisto e eu sei que vou morrer na esperança. Mas esta esperança, é preciso construí-la.
(O testamento de Sartre. Porto Alegre, L& PM Editores, 1986, p.76)
Vamos Refletir
A seguir são apresentados estímulos para sua reflexão individual. Anote suas idéias. Em seguida, troque as anotações com seus colegas. Ao final do debate, a classe toda pode fazer uma síntese única:
a) "Uma coisa é viver, outra é pensar." (Comente.)
b) Dê exemplos do valor da imaginação e da importância da razão para solucionar os problemas da existência.
c) Debata as citações dos textos de Sartre apresentados ao longo deste capítulo.
d) Debata o poema Tabacaria (anexo), de Fernando Pessoa

Propostas de Atividade
1. Pesquisar material disponível (jornais, livros, filmes, músicas) sobre os movimentos estudantis de 1968 em várias partes do mundo.
2. Relacionar toda essa ebulição com a filosofia de Sartre
3. 3. Interpretar a música "É proibido proibir", de Caetano Veloso (anexa) a partir da temática deste capítulo.

Anexos
1. Tabacaria - Fernando Pessoa

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para urna rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr unidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer.
.............................................................
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
........................................................
(Fernando Pessoa. Obra poética, Rio de Janeiro, Cia. José Aguilar Editora, 1969, p. 362-3)
2. É proibido proibir - Caetano Veloso
A mãe da virgem diz que não
E o anúncio da televisão
E estava escrito no portão
E o maestro ergueu o dedo
E além da porta há o porteiro
eu digo não
eu digo não ao não
eu digo é proibido proibir
dê um beijo meu amor
Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estantes
As estátuas
As vidraças
Louças, livros, sim
E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo é proibido proibir
.Capítulo 3 - O que Sartre andou pensando?
(Do Livro "É proibido Proibir - Sartre", Fernando José de Almeida, FTD, 1988, pág. 29-54)
Reflexão antes de começar a leitura
I. Veja apenas os subtítulos existentes neste capítulo ("Será que eu existo?" etc.). Reflita sobre o significado que alguns deles podem ter para você. Escreva um texto de umas 15 linhas sobre o que os subtítulos lhe sugerem. Troque seu texto com o dos colegas, debata e produza uma síntese do grupo. Guarde-a.
Esta atividade funciona como uma "concentração" para iniciar a leitura e pode ser aplicada aos outros capítulos deste livro e de leituras semelhantes.
2. Depois que você estudar todo este capítulo, verifique a evolução ocorrida, retomando o texto que você havia produzido. A compreensão desta unidade pode ser trabalhada assim
a) ou você a lê e vai anotando numa folha as idéias principais e as que lhe são novas, para apresentá-las à classe e confrontá-las com as de seus colegas;
b) ou você faz uma leitura junto com a classe, acompanhando-a de comentários.
Em ambos os casos, você poderá ir formando um vocabulário com os termos filosóficos mais específicos. O professor poderá comentar os conceitos que você anotou e ir tirando as dúvidas.
Será que eu existo?
Sou um latino-americano entre 5 bilhões de habitantes de nosso ameaçado planeta - imenso paiol atômico. Sou classificado pelo número de minha Carteira de Identidade, filho de pais que eu não escolhi. Par os políticos ou um reles voto anônimo.
Serei eu apenas uma estatística que assiste à TV, consome e respira ? Serei, como dizia Roquentin, aquele personagem de Sartre, "um existente que nasce sem motivo, dura por fraqueza e morre por acaso"? Afinal quem sou eu? Quem é o ser humano?
Sei apenas que me recuso a ser olhado como mero objeto de estatísticas. Existo cheio de desejos, de medos, de sentimentos, de sonhos.
Pode ocorrer, no meio de uma festa, vendo tantas pessoas falando, bebendo, dançando, de eu me perceber mais só do que nunca. E pergunto: Quem sou eu? Será que eu existo? Os outros existem? olho minhas espinhas ou minhas rugas a consciência de que eu existo às vezes me assalta.
Diante da perda de um amigo num acidente estúpido, ou diante da notícia de jovens que se suicidam, sou empurrado Para encontrar-me comigo mesmo.
Estou aqui neste mundo. Eu existo.
Mas o que é existir?
É mais que o simples ser.
As pedras são, as flores são, as nuvens são. Elas têm ser.
Mas elas não sabem disso.
Não se aborrecem, não se alegra, não criticam o chefe,
Não têm dor-de-cotovelo.
Só o homem existe. Quer dizer: existir é ter consciência do próprio ser. Mas tomar consciência da própria existência é coisa rara. Em geral tenho espaço para consumir, tenho tempo para gostar daquilo que todos gostam...
O espanto de existir
Aqueles que descobrem o próprio existir são tomados de uma sensação de enorme e espantosa aventura. "Eu existo!", admiram-se. Mas como entro nesta aventura filosófica? Os gregos diziam que ela começa a partir da admiração e do espanto.
O existencialismo também partiu desse espanto e admiração para perceber e mergulhar na aventura do existir.
É bom explicar o que é "existir" num sentido filosófico.
O existir tem sua origem etimológica na palavra latina "ex-sistere", que quer dizer "estar em pé, fora de".
Isto é, poder observar o próprio ser como se estivesse fora dele.
Assim, pode-se dizer que só o homem existe, porque somente ele é capaz de distanciar-se de si mesmo e de seus atos para examiná-los, criticá-los ou valorizá-los.
É por isto que apenas os homens batem recordes. Os animais não superam suas marcas. Exatamente porque o atleta - que aqui comparamos ao ser humano - não se contenta com o que consegue é que ele sempre quer ir além do que já alcançou.
Quando ligamos a TV, quase sempre ouvimos que um recorde foi batido e vemos a alegria do atleta quando recebe o resultado. É a humanidade que existe nele que se supera a cada êxito. Esta é a posição do existir: sou assim, mas posso ser mais, ou de um outro jeito.
Mas meu questionar sobre mim e minha consciência não pára por aí. Vou mais longe.
O meu próprio ser: por que existe?
Por que, entre milhões de possibilidades de arranjos genéticos que fariam nascer irmãs ou irmãos meus, logo eu fui ser o escolhido ao fim dessa longa cadeia de acasos?
Que força, ou que jogo de azar, levou aquele espermatozóide - um entre milhões - a chegar milésimos de segundos na frente?
A mais ínfima diferença na série em que sou o ponto final: em vez de mim, ávido de ser eu, haveria apenas outro. Quanto a mim, seria apenas o nada, como se eu estivesse morto. (Foulquié, Pierre. O existencialismo. São Paulo, Difel, 1961, p. 42)
Cenas de violência que presencio na rua, a perda de companheiros queridos ou a traição de um amigo me empurram a pensar no meu existir. Por quê?
Quando me pergunto sobre meu existir, tomo consciência dele. É uma situação parecida com a daqueles momentos em que estou sozinho dentro de um elevador e me deparo com um enorme espelho. Ajeito meu cabelo, aprumo meus ombros... Eu ali, comigo mesmo, tendo de me olhar..
Mais ou menos raros, ocorrem em minha vida momentos fortes - doces ou violentos - doces ou violentos - em que tenho de me olhar de "corpo inteiro". Busco o sentido de tudo.
Penso em mim, nos meus projetos, no mundo que vai me fazendo, neste meu corpo que sou eu.
Pensar é importante. Mas não basta. O pensar não faz o existir. Os textos de Sartre trouxeram-me à memória algumas de minhas idéias de criança.
Morria de modo de que as coisas desaparecessem: acreditava que isto aconteceria se eu não pensasse mais nelas. Sumiria tudo do meu mundo: meus pais, minha cidade de Friburgo, minha escola, meu Fluminense.
Não é esta a visão existencialista. Meu pensar não dá o ser às coisas, mas as faz existirem com características boas, más, agradáveis ou inúteis. Eu as transformo em objetos para serem conhecidas, ou para serem motivo de agressão ou de construção. Misturando-me à realidade, eu mesmo passo a me reconhecer como útil, agradável, triste ou falso.
Essência ou existência. O que é isto?
Aristóteles, filósofo grego que viveu no século 4 a . C., ensinou que a essência é aquilo que define ou fornece as características fundamentais de um ser. Dito de outro modo, essência é o que faz com que uma coisa seja o que é e não outra coisa qualquer.
Da essência não fazem parte qualidades acidentais. Por exemplo: o fato de a caneta ser azul ou verde, pequena ou grande, cara ou barata não diz respeito á sua essência.
O fato de ser um instrumento usado para escrever, ser à tinta e de formato adaptável à mão humana é que dita a essência da caneta.
Vamos ver como isto acontece ao ser humano, segundo a corrente aristotélica e segundo o existencialismo.
Para muitos pensadores aristotélicos, o homem tem uma essência - animal racional - que pertence a toda a humanidade e pode ou não ter existência individual.
Já os existencialistas afirmam que a essência humana não existe nas idéias nem é dada gratuitamente ao homem. A essência humana é construída por cada um de nós no próprio existir.
Quando penso em minha vida, vejo que há mil direções para se seguir. À medida que vou existindo, decido-me por um caminho. Ando nele. Com meu caminhar, abro a trilha. Sou como o trator, que faz seu caminho enquanto avança, mais do que o automóvel, que só corre por estradas que foram feitas por outros.
O homem é um ser apenas possível. Existo à media que transformo esse possível em real. Esta passagem do possível para o real é a vida. E mais que a passagem, é o modo como o faço.
"- Que profissão seguir nesta sociedade tão complicada?"
Meus pais me pressionam para profissões rentáveis e que dêem nome e status. Vibro com arte, música. Acho que tenho compromissos para fazer desta sociedade, louca e injusta, algo mais humano. Mas isto não dá dinheiro nem aprovação dentro da "boa sociedade". Como sobreviver dignamente e ser coerente com o que eu sinto e penso?
Os alunos da escola em que eu trabalho sempre trazem questões desse tipo. Provavelmente elas apareceram também para você.
Depois de muita conversa, alguns estudos e bastante reflexão ,a gente tem chegado á seguinte conclusão: mais importante do que a profissão escolhida é amaneira como cada um de nós escolhe vivê-la.
Essa maneira aparece seja no empenho com que nos preparamos para exercer essa profissão, seja na dimensão de arte e beleza ou no conteúdo político que pretendemos dar a ela.
O mundo da justiça ou da verdade, da liberdade ou da democracia, quem vai construir nesta profissão é cada um de nós. Temos o poder de escolher livremente nosso modo de ser profissional. Disto não podemos abrir mão!
O que vimos que ocorre na escolha de um projeto profissional, segundo Sartre, também se aplica à destinação de um significado para a vida toda.
Mas este existir, escolhido e criado - ou a passagem do possível à realidade -, é feito usando-se a liberdade. Está nas mãos de cada um. É seu privilégio.
Isto não quer dizer que todos tenhamos uma existência autêntica só pelo fato de sermos homens.
Ser autêntico é sempre buscar a identidade entre nossos valores e nossa atividade: é fazer aquilo em que acreditamos.
É no processo livre de escolha, a cada dia, de nossa essência que construímos a existência humana. Escolhemos a nossa essência o procedermos á escolha do personagem que pretendemos ser.
Essa escolha serve para nós, mas serve sobretudo para a humanidade toda. Deixamos nossa marca na história de toda a humanidade mesmo quadro fazemos um ato bem no fundo da nossa morada interior.
Escolho por todo o mundo
Os existencialistas forma particularmente sensíveis à questão da angústia humana. Seus romances batem e rebatem nesse tema.
Eles destacam que ficamos cada dia mais angustiados quando aceitamos o fato de que pertence a cada um a liberdade de construir, pedra a pedra, a essência do próprio edifício. Toda a responsabilidade será minha pelo êxito ou pelo fracasso desta minha cosntrução. Exclusivamente minha.
Aí está a angústia que sentimos por nossas vidas, tantas vezes absurdas e marcadas para a morte.
As experiências vividas por Sartre durante as duas guerras mundiais, as perdas, as dores, as destruições, as incertezas, certamente terão contribuído para a formação da sua filosofia explicativa As conseqüências das guerra, das traições, do colaboracionismo de alguns franceses com os alemães invasores, da resistência de mulheres e crianças, das torturas, da vitória, vão também fazê-lo sentir vivamente a questão da responsabilidade. Você, eu, cada um de nós contribui para os problemas da sociedade e para sua solução.
Você já imaginou se cada um dos proprietários de automóveis de uma cidade grande como São Paulo ou Rio resolvesse, ao mesmo tempo, sair de carro? Ninguém sairia. Não há suficientes metros quadrados de ruas para comportar tantos automóveis.
Moral da história: os interesses individuais devem responder ao interesse do conjunto. Daí que ser responsável é ter de responder ao conjunto da sociedade pelas próprias ações.
Essa responsabilidade não advém do fato de termos de responder a um Deus pelos nossos atos, mas de termos de responder perante a valores que nós mesmos construímos. E responder a todos os homens:
Se o homem não é, mas se faz, e se, em se fazendo, assume a responsabilidade por toda a espécie humana, se não há valor ou moral dados a priori, mas se, em cada caso, precisamos resolver sozinhos, sem ponto de apoio e, no entanto, para todos, como haveríamos de não sentir ansiedade quando temos de agir? (Sartre, J. P. O existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d, p. 221)
Tal responsabilidade está apoiada na própria escolha que o homem faz, não do seu ser, mas da sua maneira de ser. A atitude que cada um assume em face daquilo que ele é contribui para a própria transformação.
Essa idéia é tão poderosa que Sartre afirma que nós temos condições até de interferir em nosso passado. Os dias que já vivi não são imutáveis, nem fixos. Posso fazer, através de minha atitude, com que o passado mude de significado. Passado feliz ou triste, saudoso ou melancólico, é meu "projeto" futuro que vai determinar se foi bem ou mal sucedido.
"Tudo é bom quando acaba bem", ensina o povo.
O significado de cada ato meu é dado por uma decisão consciente e livre, toda minha.
Aqui Sartre combate duramente Freud (aquele que - dizem explica tudo). O Pai da Psicanálise coloca no passado uma força tão poderosa quanto um destino. Segundo ele, nossa história psicológica anterior determina nosso presente a ponto de não podermos escapar dele: sobretudo de nossos traumas de origem sexual. Sartre não concorda com Freud e diz que o ser humano pode reconstruir o próprio passado e dar-lhe um novo significado.
Se sou estudante numa certa escola, sou eu que escolho como serei estudante nela. Poderá ser algo intolerável, humilhante, carregado de responsabilidade, objeto de orgulho ou justificativa para meus fracassos. Digo-me então: "Minha vida é infeliz, ou realizada, por causa de meus pais, ou dos professores bons que não tive, ou pela frieza de meus amigos, pelo amor que me envolveu...".
Freqüentemente esqueço que eu mesmo escolhi livremente construir os amores, esquecer-me dos amigos ou curtir meus pais. Mas o mais saboroso, e quase fantástico, desta aventura humana é que cada um vai fazendo sua libertação ao longo deste caminhar. E não só a sua vida, mas de toda a humanidade, pois, com sua vida, está construindo sua essência humana:
Queremos a liberdade pela liberdade através de cada circunstância em particular E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros e que a liberdade dos outros depende da nossa (..) (Sartre, J. P. O existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d, p. 260)
O homem é um ser que não pode querer senão a sua liberdade e que reconhece também que não pode querer senão a liberdade dos outros.
Daí que ninguém é livre sozinho...
O outro e minha identidade
Quem de nós, quando criança, ou nos momentos de decepção cm este mundo cheio de loucuras, não desejou ser um náufrago, na solidão de uma ilha do Pacífico, tal como Robinson Crusoé?
O escritor Michel Tournier dá sua versão da vida solitária de Robinson sob a ótica existencialista. Coisa bonita! O pensamento sartriano sobre o Outro aparece muito claro num trecho do livro. Que "outro" é este? É aquele que se depara à minha frente, diferente de mim.
Lá pelas tantas, depois de viver muitos anos na ilha, Robinson esquece o que são os corpos dos outros seres humanos. Corpo da mulher, em especial.
Percebe, então, que estava perdendo a própria identidade. Esquecia-se de quem era. Sente nesse momento o desejo de ter relações íntimas com um outro diferente de si, no qual possa mergulhar e cujo interior possa conhecer. No outro, poderia se olhar e conhecer. Enfim, recuperar soa identidade.
O grande Outro, para Robinson, é aquela ilha, é a terra. Terra que veste o homem, que bebe seu sangue, come sua carne, mas que também o alimenta.
Robinson descobre a terra. Dorme com ela, amando-a sexualmente.
Dessa relação com a terra, desse abraço com as árvores, nasce uma flor até então inexistente na ilha. Ao vê-la, Robinson tira-a cuidadosamente da terra e vê, com espanto, que suas raízes têm forma de corpos humanos. Forma do seu corpo. Reconhece-se nas raízes. Essa flor o ajuda a entender quem é ele e o que é a ilha.
É apenas o outro que permite o conhecimento de mim e o sentido de minha Existência.
Lutando desesperadamente para encontrar sua identidade, Robinson - não convivendo com seres humanos - deve buscar no "outro", vegetal e telúrico, uma referência mínima, um espelho para seu eu.
O inferno são os outros?
Quando vou ao cinema, vejo filas, esbarro em pessoas que compram balas, que disputam lugares ou que riem na sessão que ainda não terminou. Todas elas são objetos para mim: filas, quantidades, multidão anônirna que ri, massa que briga por um lugar.
Só eu me sinto sujeito. Eu os meço, classifico, analiso.
Eu é que tenho projetos, tenho consciência. Não sou uma coisa entre as coisas.
Já sentado, esperando a próxima sessão de cinema, de repente meu olhar encontra um olhar que me observa (porque minha meia não combina com a minha roupa? Ou porque tenho uma mancha na camisa? Ou porque não sou bonito como o ator daquele fume?). Nesse momento, como por mágica, esse olhar me transforma num objeto.
Esse olhar me escapa. Pelo olhar, seu (sua) dono (a) se recusa a tornar-se objeto do meu olhar. É como um duelo.
Tomo, assim, consciência, pelo olhar do outro, de que ele é também consciência. Tal é o cerne da vergonha e do pudor: sinto-me olhado e considerado um objeto.
Apenas minha "casca", meu corpo é olhado e não o meu ser consciente, o meu universo interior.
É por isso que muitas meninas, mesmo que estejam vestidas dos pés ao alto do pescoço, se sentem desnudadas por um olhar que as enche de vergonha. Por outro lado, pode ser que, mesmo usando o biquíni mais sumário, a jovem se sinta perfeitamente dona de seu corpo conforme o tipo do olhar que se dirige a ela.
O olhar do outro me rouba o mundo que era meu e rouba a minha intimidade.
Olhar e amor
Essa "objetivação!" - o fato de tentar transformar o outro em objeto - que se faz com o olhar tende a ser uma característica de todas as relações efetivas.
Quantas vezes você já sentiu que sua relação mais complicada e conflituosa acontece exatamente com quem você mais gosta? Mas por que é complicada essa relação?
Você quer amar: aí dá presentes, faz poesia, sonha com a outra pessoa. Só que você vai agindo e pensando de tal forma que aos poucos ela se toma objeto para você.
Você quer ser amada: aí vem a sua vez de querer ser acarinhada, receber atenções, ser objeto de atenções.
Aí o nó do conflito entre duas pessoas. Ora uma, ora outra tende a ser transformada em objeto; ao mesmo tempo, nenhuma das duas quer e pode deixar de ser sujeito.
Você já deve estar com uma pergunta na ponta da língua: então não existe o amor?
Quase, diz Sartre.
Para ele, o ato de amor é uma tênue conquista, que se refaz a cada momento.
De um lado, o amor é uma história de respeito à liberdade do outro. De outro lado, é uma busca contínua de fazer respeitar a própria liberdade.
A relação entre pessoas que não consideram essas delicadezas leva Sartre a dizer, pela boca do personagem Garcin:
Vocês se lembram o enxofre, a fogueira, as grelhas.. do inferno? Ah! que brincadeira. Não há necessidade de grelhas: o inferno são os outros! (Foulquié, Pierre. O existencialismo. São Paulo, Difel, 1961, p. 42)
Contudo essa visão pessimista não representa o conjunto da obra do filósofo: foi uma fase.
Sartre percebe que querer ser amado é tentar assimilar a liberdade de outrem, sujeitando-a à própria liberdade. Mas, ao mesmo tempo, ninguém quer ser amado só porque um outro lhe fez um dia uma promessa: "Amo você porque me comprometi e não quero voltar atrás na minha palavra".
Do mesmo modo, ninguém admite ser verdadeira uma relação semelhante àquela que se teria com aquelas bonecas infláveis que aparecem no cinema. São usadas e depois vão para a caixa. Esvaziadas.
Todos queremos também o risco renovado da possibilidade de não ser amado. Nós somos assim mesmo. Gostamos do risco e da ambigüidade.
Tendemos a rejeitar aquele amor que admite ser sempre um objeto passivo para nós. Por isso ninguém constrói uma relação saudável com aquele amor que o quer seu escravo. Além de tudo, ficamos sempre no sobressalto de que esse amor pode também escapar de nós.
No amor é inevitável esse conflito entre a tendência de transformar o outro em objeto e a de se deixar ser objeto. Esse conflito é saudável, pois mantém o equilíbrio da relação afetiva.
O tropicalismo chega à França
Numa entrevista à TV, Caetano Veloso confessou que tinha dois desejos em sua infância lá em Santo Amaro da Purificação, interior da Bahia: o primeiro desejo era ser artista, pintor. O outro era ser pensador, "como aqueles existencialistas de Paris". Consciente ou não disso, é que Caetano foi uma das mais notáveis expressões do tropicalismo, espécie de existencialismo à brasileira
"Sem lenço, sem documento,
nada no bolso ou nas mãos,
eu quero seguir vivendo, amor! Eu vou!
Por que não?
Por que não?"
(música: "Alegria, alegria")
Assim como um mágico que tira tudo - suas ilusões, seus sonhos, sua vida - do vazio da cartola, também Sartre e os existencialistas partem do nada que é o homem para construir tudo: a trágica, bela, derrotada, sutil e absurda existência humana. Cada um de nós inicia essa aventura sem nenhum documento, sem nenhuma certeza de onde veio ou onde vai.
O nosso passado é nada, não temos lenço nem documento. Nosso destino é desconhecido mas queremos seguir dizendo: "Eu vou! Por que não""
Damo-nos conta de que há um nada em nosso interior. Esse nada é o futuro. O futuro aparece como uma série de ações possíveis em que um Eu (que ainda não é) deve decidir com autonomia.
Sartre formula seu conceito de liberdade mergulhado nesse sentimento de angústia advindo do "nada"' que é nossa existência. Torna-se apaixonado pela liberdade e vai fazer dela uma das bases de seu sistema filosófico. No entanto dá à liberdade um significado diferente do que habitualmente se dá à palavra.
1. Numa primeira e mais simples visão, uma pessoa é considerada livre à medida que pode alcançar seus objetivos sem encontrar obstáculos, ou com um mínimo de esforço. Se alguém encontra dificuldades, ou lhe falta capacidade, então não é tida como livre.
2. No sentido Político, a liberdade pode significar não encontrar obstáculos - legais ou policiais - à sua ação ou expressão.
3. Há muitos séculos, uma corrente do pensamento ocidental vem fundamentado seu conceito de liberdade em Deus.

Ao criar o homem, Deus faz um plano para a realização dessa criatura. Esse plano - de bondade, justiça, verdade... - pode ou não ser cumprido pelo homem. Na realização (ou não) desse plano está sua "autodeterminação'. Chama-se liberdade autodeterminação.
Ao criar o homem, Deus faz um plano para a realização dessa criatura. Esse plano - de bondade, justiça, verdade... - pode ou não ser cumprido pelo homem. Na realização (ou não) desse plano está sua "autodeterminação". Chama-se liberdade de autodeterminação.
É um outro modo de vê-la. Somos livres, mas para seguir um plano que nos foi dado por Deus. Sartre situou a liberdade num outro patamar.
O homem mata Deus e se condena... a ser livre!
O existencialismo ateu, defendido por Sartre, partirá de um pressuposto radicalmente contrário àquele que situa a liberdade como um espaço de "autodeterminação".
Não há mais a dependência de um sujeito com relação a um plano divino. Deus não existe para Sartre. Este é o seu fundamento:
Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele.
(Sartre, J. P. O existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d, p. 226)
Há uma agravante para a solidão de sua liberdade: é na realização da própria vida (existência) concreta, na sua história pessoal, que o homem constrói suas características, sua essência. É também nessa mesma história que cada um de nós as remodela, aperfeiçoa, cria...
Para nosso filósofo, a pessoa não tem nenhuma natureza humana que a revista de determinados valores e deva ser realizada. Não nascemos com uma receita de bolo embutida em nossa personalidade dizendo que ingredientes a compõem.
Sartre diz que, se Adão existisse, não teria uma natureza já dada, com essas ou aquelas caraterísticas. Se assim fosse, ele não teria nenhuma responsabilidade pelo seu ser. Nem mérito:
Para nós, pelo contrário, Adão não se define por uma essência, pois a essência é, para a realidade humana, posterior à existência (...)
Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo (...)
(Sartre, J. P. O existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d, p. 214)
Quando se diz que o homem está sujeito a determinismos, significa que se acredita que qualquer força, seja econômica, social, ou biológica, obrigam de tal forma que ele nada pode escolher por si mesmo e com liberdade.
No fundo, os defensores do determinismo afirmam que o homem é um prisioneiro de sua herança genética e um robô das pressões econômicas, que o levam a escolher a profissão, o amor, a amizade, o partido, ou uma viagem, sem nenhuma autonomia. Homens, em suas reações, seriam pouco diferentes de cobaias de laboratório.
Sartre propôs e defendeu a soberania da subjetividade humana, que permite ao homem escolher a cada passo o seu caminho.
O indivíduo é livre. Ele não apenas tem liberdade, mas é liberdade.
A inexistência de um Deus que vive a nos indicar caminhos e valores faz com que nada fora de nós legitime nosso comportamento.
Nós construímos tudo: até mesmo os nossos valores, regras e imposições..
Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores justificações ou desculpas (...) o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo é responsável por tudo quanto fizer... (J.-P. Sartre. O Existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d, p. 226)
Vamos Refletir
1. Comente em duplas, e depois com a classe toda, a seguinte proposição de Sartre, levantando situações concretas em que se aplique:
"A existência precede a essência"
2. O poema de Fernando Pessoa (anexo) reproduz muito bem o clima existencialista. Destaque os versos que explicitam o pensamento de Sartre,
3. No texto A República do Silêncio (anexo) destaque as idéias de Sartre sobre os temas:
• liberdade;
• responsabilidade;
• compromisso indivíduo-sociedade

4. Também anexos trechos de O existencialismo é um humanismo, de Sartre. Discuta estes textos, levante suas concordâncias e discordâncias.
5. Irmãos, de Luís Fernando Veríssimo (anexo), retrata bem a questão da gratuidade da nossa existência. Compare o texto com as idéias de Sartre.
Propostas de Atividade
I. Faça entrevista sobre a idéia de liberdade com três pessoas de grupos sociais e instrução diferentes. Veja com qual das quatro definições de liberdade apresentadas neste capítulo o entrevistado mais se identifica.
2. Em grupos, fazer pesquisa com poesias e músicas contemporâneas que apresentem e ilustrem as idéias existencialistas. As letras das músicas, por amplo, de Chico Buarque, Milton Nascimento, Ivan Lins e as poesias de Drummond,
Fernando Pessoa, Cecília Meirelles, Adelia Prado, João Cabral, Ferreira Gullar, entre outros, podem oferecer amplo material.
3. Uma boa idéia pode ser a apresentação de urna seleção de dos de músicas.
Anexos
Dizes-me: tu és mais alguma cousa
pedra ou uma planta.
Dizes-me: sente, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm idéias sobre o mundo?
Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente..
Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.
Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.
Se que a pedra é a real, e que a planta
Sei isto porque elas custem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.
Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,
Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, "é urna pedra"
Digo da planta, "é uma planta",
Digo de mim, "sou eu"
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?
Fernando Pessoa. Obra poética, Rio de Janeiro, Cia. José Aguilar Editora, 1969, p. 234.
2 A República do Silêncio

J.-P. Sartre
Nunca fomos tão livres como sob a ocupação alemã. Tínhamos perdido todos os direitos e, antes de todos os outros, o direito de falar; insultavam-nos na cara todos os dias e tínhamos de ficar calados; deportavam-nos em massa, como judeus, como prisioneiros políticos; em toda a parte, nas paredes, nos jornais, nos cinemas, reencontrávamos o imundo e desenxabido rosto que os opressores nos apresentavam de nós mesmos; por tudo isso, éramos livres.
Dado que o veneno nazi se infiltrava até no nosso pensamento, cada pensamento era uma conquista; dado que uma política prepotente procurava reduzir-nos ao silêncio, cada palavra se tornava preciosa como uma declaração de princípio dado que éramos perseguidos, cada um dos nossos gestos tinha o peso dum compromisso.
As circunstâncias tantas vezes atrozes do nosso combate punham-nos a viver, sem fingimento nem véus nem véus, a situação atormentada, insuportável, a que se chama condição humana. O exílio, o cativeiro e principalmente a morte, que é habilmente disfarçada nas épocas felizes, tornavam-se os objetos perpétuos das nossas preocupações, aprendíamos que não são acidentes inevitáveis, nem mesmo ameaças constantes, mas exteriores: era preciso ver nisso o nosso quinhão, o nosso destino, a origem profunda da nossa realidade de homens; em cada segundo vivíamos plenamente o sentido da pequenina frase banal: "todos os homens são mortais".
E a escolha, que cada um de nós fazia de si próprio, era autêntica, pois era em presença da morte, pois teria sempre podido exprimir-se sob a forma "Antes a morte do que...." E não me refiro aqui a essa elite que foram os
verdadeiros resistentes mas a todos os franceses que, em todas as horas do dia e da noite, durante quatro anos, disseram não.
A própria crueldade do inimigo levava-nos até extremos da nossa condição, obrigando-nos a fazer a nós próprios perguntas que são iludidas em tempos de paz: aqueles de nós - e que francês não esteve uma vez ou outra neste caso? - que conheciam alguns pormenores relativos à Resistência interrogavam-se angustiosamente: "Se me torturarem, agüentarei?".
Assim se punha o próprio problema da liberdade e estávamos à beira do conhecimento mais profundo que o homem pode ter de si próprio.
Porque o segredo dum homem não é o seu complexo de Édipo ou de inferioridade, é o próprio limite da sua liberdade, é o poder da resistência aos suplícios e à morte.
Aos que tiveram uma atividade clandestina, as circunstâncias da luta traziam uma experiência nova: não combatiam à luz do dia, como soldados; perseguidos na solidão, prisioneiros na solidão, era no abandono, na miséria mais completa, que resistiam às torturas: sós e nus diante de carrascos bem barbeados, bem alimentados, bem vestidos, que troçavam da carne miserável e a quem uma consciência satisfeita e um poderio social desmesurado davam todas as aparências de ter razão. Contudo, no mais profundo dessa solidão, eram os outros, todos os outros, todos os camaradas de que defendiam; uma só palavra era bastante Para causar dez, cem prisões. Essa responsabilidade total na solidão total não será o próprio desvendamento da nossa liberdade? Esse abandono, essa solidão e esse risco enorme eram os mesmos para todos, para os chefes e para os homens; para os que levavam mensagens de que desconheciam o conteúdo como para os que comandavam toda a Resistência, a mesma sanção: a prisão, a deportação, a morte.
Não há exército no mundo em que se encontre tal igualdade de riscos para o soldado e o generalíssimo.
E é por isso que a resistência foi uma verdadeira democracia: tanto para o soldado como para o chefe, o mesmo perigo, a mesma responsabilidade, a mesma absoluta liberdade na disciplina.
Assim, na sombra e no sangue, constituiu-se a mais forte das repúblicas.
Cada cidadão sabia que tinha obrigações para com todos e que não podia contar senão consigo próprio; ao abandono mais total, cada um deles estava ciente do seu papel histórico.
Cada um deles, contra os opressores, se propunha ser ele próprio, irremediavelmente, e, ao escolher-se a si próprio na sua liberdade, escolhia a liberdade de todos.
Essa República sem instituições, sem exército, sem política, era preciso que cada francês a conquistasse e a afirmasse em todos os instantes contra o nazismo.
Estamos agora à beira duma outra República: deseja-se que conserve á luz do dia as austeras virtudes da República do Silêncio e da Noite.
Situações III. Braga, Publicações Europa-América, 1971, p. 11-14
3. O existencialismo é um humanismo (trechos)
J.-P. Sartre
O existencialista, pelo contrário, pensa que é muito incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível; não pode existir já o bem a priori, visto não haver já uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir, já que precisamente estamos agora num plano em que há somente homens. Dostoiévski escreveu: "Se Deus não existisse, tudo seria permitido". Aí se situa o ponto de partida do existencialismo.
Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue.
Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade.
Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo é responsável por tudo quanto fizer. (...)
O existencialista não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a terra, e que o há de orientar; Porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como lhe aprouver. Pensa portanto que o
homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem. Disse Ponge num belo artigo: "O homem é o futuro do homem".
É perfeitamente exato. Somente, se se entende por isso que tal futuro está inscrito no céu, que Deus o vê, nesse caso é um erro, até porque nem isso seria um futuro. Mas se se entender por isso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem que o espera, então essa frase está certa. Mas em tal caso o homem está desamparado.
O quietismo é a atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer aquilo eu não posso fazer. A doutrina que vos apresento é justamente a oposta ao quietismo visto que ela declara: só há realidade na ação; e vai aliás mais longe, visto que acrescenta: o homem não é senão o seu projeto, só existe na medida em que se é portanto nada mais do que o conjunto dos seus atos, nada mais do que a sua vida.
De acordo com isto podemos compreender por que a nossa doutrina causa horror a um certo número de pessoas. Porque muitas vezes não têm senão uma única de suportar a sua miséria, isto é, pensar "as circunstâncias foram contra mim, eu muito mais do que aquilo que fui; é certo que não tive um grande amor, ou uma grande amizade, mas foi porque não encontrei um homem ou uma mulher que fossem dignos disso, não escrevi livros muito bons, mas foi porque não tive tempo livre para o fazer; não tive filhos a quem me dedicasse, mas foi porque não encontrei o homem com quem pudesse realizar a minha vida. Permaneceram, portanto, em mim e inteiramente viáveis, inúmeras disposições, inclinações, possibilidades que me dão um valor que da simples série dos meus atos se não pode deduzir".
Ora, na realidade, para o existencialista não há amor diferente daquele que se constrói; não há possibilidade de amor senão a que se manifesta no amor, não há gênio senão o que se exprime nas obras de arte; o gênio de Proust é a totalidade das obras de Proust; o gênio de Racine é a série das suas tragédias, e fora disso não há nada; por que atribuir a Racine a possibilidade de escrever uma nova tragédia, já que precisamente ele a não escreveu? Um homem embrenha-se na sua vida, desenha o seu retrato, e para lá desse retrato não há nada.
Que significa aqui o fato de a existência preceder a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, e que só depois se define.
O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza, visto que não há Deus para a conceber.
O homem é, não só como ele se concebe, mas como ele quer ser; como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência, o homem não é mais do que o que ele faz de si mesmo. Tal é o primeiro princípio do existencialismo.
É também a isto que chamamos subjetividade e pelo que somos censurados sob o mesmo nome. Mas que queremos dizer com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Pois o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem, antes de mais nada, se lança para um futuro, e que é consciente de se projetar no futuro.
O homem é, antes de mais nada, um projeto vivido subjetivamente, ao invés de ser um creme, qualquer coisa podre, ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada há no céu inteligível, e o homem será antes de tudo o que ele houver projetado ser. Não o que ele quiser ser. Pois o que vulgarmente entendemos por querer é uma decisão consciente que, para a maior parte de nós, é posterior ao que alguém fez de si mesmo. Posso querer aderir a um partido, escrever um livro, casar-me; tudo isso não é mais do que a manifestação duma escolha mais original, mais espontânea daquilo que se chama vontade.
Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem de posse do que ele é e atribuir-lhe a responsabilidade total por sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável por sua estrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens. Há dois sentidos para a palavra subjetivismo, e é com isso que jogam nossos adversários. Subjetivismo quer dizer, de um lado, escolha do sujeito individual por si próprio; e, por outro, impossibilidade do homem em superar a subjetividade humana. O segundo é que é o sentido profundo do existencialismo.
Quando dizemos que o homem se escolhe, queremos dizer que cada um de nós se escolhe; mas, com isso, também queremos dizer que, ao se escolher, ele escolhe todos os homens.
Com efeito, não existe um ato nosso que, ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser.
Escolher ser isto ou aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, pois nunca podemos escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos.
Se a existência, por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo em que construímos a nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve a humanidade.
O existencialismo é um Humanismo. Lisboa, Presença, s/d/, p. 241
4. Irmãos
Luís Fernando Veríssimo
- De vez em quando eu penso neles,
- Quem?
- Nos espermatozóides...
- De vez em quando você pensa nos seus espermatozóides?
- Nos meus não. Nos do meu pai.
- Você está bêbado.
- Na noite em que eu fui concebido - suponho que tenha sido um noite - eu era um entre milhões de espermatozóides, Mas só eu cheguei ao óvulo de mamãe. Ou será bilhões?
- Acho que é óvulo mesmo.
- Não. Os espermatozóides. É milhões ou bilhões?
- Ahn... Não sei.
- Não importa. Milhões, bilhões. Só eu me criei, entende? Por acaso. Isto é mais assombroso. A gratuidade da coisa. Havia milhões, bilhões de espermatozóide junto comigo e só eu, entende? Só eu fecundei o óvulo. Não é assombroso?
- É.
- Você acha mesmo?
- Acho.
- Podia ser qualquer um, mas fui eu. Por acaso.
- Amendoim?
- Hein? Obrigado. Agora, me diga. Por que eu? A gratuidade da coisa. Só eu fecundei o óvulo, virei feto, nasci, me criei e estou aqui, neste bar, de gravata, bebendo. Agora me diga, o que é isto?
- É como você diz. A gratuidade da coisa. Não, não. Isto que eu estou bebendo. É, ahn, uísque.
- Uísque. Pois então. Aí está.
- Ó Moacir, vê outro aqui. O rapaz está precisando.
- Um brinde!
- Um brinde.
- A eles!
- Quem?
- Aos espermatozóides que não chegaram ao óvulo de mamãe. Aos companheiros. Aos bravos que cumpriram sua missão e não viveram para comemorar. Aos que perderam a viagem. Aos meus irmãos!
- Aos meus irmãos!
- Meus irmãos. Você não estava lá.
- Aos seus irmãos!
- Aos milhões, bilhões que se sacrificaram para que eu pudesse viver.
- Salve.
- Agora me diga uma coisa.
- Duas. Digo duas.
- Cada espermatozóide é uma pessoa diferente, certo? Quer dizer. Em outras palavras. Se outro espermatozóide tivesse completado a viagem, não seria eu aqui. Ou seria?
- Depende.
- Não seria. Seria outra pessoa. Outro nariz, outras idéias. Talvez até torcesse pelo América. Uma mulher! Podia ser uma mulher. Certo?
- Não vamos exagerar..
- E outra coisa. O que passou, passou. Não pense mais nisso.
- Mas eu penso. De vez em quando eu penso. Os meus irmãos que não nasceram. Que nomes eles teriam? Eduardo, Gilson, Amaury, Jessica...
- Marco Antônio...
- Marco Antônio... Imagine, um deles podia ser o ponta-direita que o Brasil precisava em 74. Eu me sinto culpado. Você não se sente culpado?
- Bom, eu tenho 11 irmãos.
- Aí é diferente.
- Por quê?
- Não sei. Só sei que entre milhões, bilhões de espermatozóides, todos com os mesmos direitos, só eu me criei. Por acaso. Agora me diga, o que é isso?
- É uísque.
- Não. É a gratuidade da coisa.
- Não sei...
- Você está bêbado.
CAPÍTULO 4 - EXISTENCIALISMO X MARXISMO
(Do livro: "É proibido proibir - Sartre", Fernando José de Almeida, FTD, São Paulo, 1988, p. 55-65)
"A vida não começa com o primeiro salário”
Meu amigo Moumen, um argelino carismático e de barba negra que trabalha com exilados em Lyon não entendia por que a maioria dos franceses tanto teme os argelinos e o desemprego que causam. Dizia não saber também por que, quando faltava mão-de-obra desqualificada, seus compatriotas eram tão bem-vindos. Ironia pura. Ele bem sabia que era o colonialismo que tinha feito aquilo e continuava a fazer estragos, espalhando preconceitos e segregação.
Sartre foi dos primeiros franceses, lá em 1936, a combater violentamente, na própria França, o colonialismo francês.
Ele, que tanto combatera os invasores alemães no seu país, denunciou incansavelmente a ocupação que os franceses fizeram do Vietnã, da Indochina e da Argélia. Sartre esteve entre os primeiros a exigir a imediata independência dos povos dessas terras. Sua denúncia durou quase 20 anos (1945-1963), apontando o número de exilados, o racismo, os milhões de mortos, as torturas "praticas em nosso nome".
Na Argélia a exploração colonial é metódica e rigorosa; expulsos de suas terras, empurrados para os solos improdutivos, são obrigados a trabalhar em troca de salários irrisórios, o temor do desemprego desencoraja neles a revolta... (COLOMBEL, Jeannette. Sartre. Paris, Le Livre de Poche, 1985, p. 163, tomo 1)
Embora tenha terminado oficialmente, o colonialismo continua sendo um ciclo forte e infernal.
Sartre denunciava que dois terços da humanidade passavam fome, ou seja, não comiam senão micróbios, e que estes mesmos micróbios seriam mais tarde seus carrascos. Situação inaceitável. Nos quarteirões pobres e nas terras pobres do planeta, as crianças morrem por falta de higiene Ou por má distribuição da renda; isto é um absurdo e não se pode apontar um Deus surdo e cego como causa desses males, mas deve-se, diz Sartre, acusar os homens e as condições sociais.
Suas posições de filósofo-político o levaram também a ter uma espécie de compromisso e paixão pela classe operária. Escreveu sempre pensando nela. Escolheu-a como destinatária de seus romances e peças de teatro. O importante era denunciar os abusos, a podridão, a crise, da classe burguesa, causando-lhe irritação e inquietude. Ele define seu alinhamento ao lado dos operários dizendo que "não estamos mais com aqueles que querem possuir o mundo, mas com aqueles que o querem transformar".
Mas essa paixão não fazia dele um operário. Continuava um burguês nascido em Paris, que freqüentou os melhores colégios, comendo, bebendo em bares sofisticados e vivendo como um burguês.
A única saída que encontrou para ser coerente foi a dedicação à causa operaria através de seu compromisso como escritor. Sua literatura vai ser vista como forma de elevar-se acima das classes, fora da história, para denunciar assim as injustiças sociais e poder criticar até as organizações político-sociais dos próprios operários. Funcionário da humanidade, o empenho intelectual de Sartre vai poder ser uma atividade pedagógica superando a própria política de grupos. Assim ele fala da sua função como escritor:
Demiurgo destituído de interesses práticos imediatos, o escritor deve dirigir-se à comunidade inteira, deve revelar ao público as suas próprias necessidades, deve educar e congregar em conjunto burgueses de boa vontade, intelectuais, operários não comunistas. (SARTRE, J.-P. "Quest-ce que la litterature?", in Situations II, pp. 257 e 292)
Violência como libertação
A conclamação feita por Sartre aos oprimidos não se restringia a uma denúncia teórica ou poética. Às vezes ela se revestia com a marca da violência. Falando da libertação da Argélia, ele defendeu empenhadamente a luta armada... dos argelinos! A luta elevava a milhões os mortos do lado argelino e a dezenas de milhares os franceses, o que o obrigou a defender o valor da violência, se ela é libertadora:
As marcas da violência, nenhuma doçura as apagará: é apenas a violência que pode destruí- las. E o colonizado se cura da neurose colonialista caçando o colonizador pelas armas. Quando um camponês toma um fuzil, os velhos mitos empalidecem, as proibições uma a uma se transformam: a arma de um combatente é sua humanidade.
Porque neste primeiro momento da revolta é preciso matar: abater um europeu é dar dois golpes com uma s6 pedra, suprimir ao mo tempo um opressor e un oprimido. Resulta um homem morto e um homem livre: o sobrevivente, pela primeira vez, sente um solo nacional sob a planta de seus pés. (COLOMBEL, Jeannete. Sartre. Paris, Le Livre de Poche, 1985, p. 163, tomo 1) Como este pensador tão vibrante se coloca perante o pensamento marxista?
O marxismo, pois, permanece a filosofa do nosso tempo: é insuperável porque as circunstâncias que o engendraram não foram ainda superadas. Nossos pensamentos, quaisquer que sejam, não podem se formar senão sobre este humo... (Os pensadores. São Paulo, Abril, 1973, fascículo 68, p. 887) Ele revela que leu Marx na universidade aos 20 anos, tendo seu primeiro contato com os livros O capital e A ideologia alemã:
Eu compreendia tudo luminosamente e não compreendia absolutamente nada. Compreender é modificar-se, ir além de si mesmo: esta leitura não me modificava. Mas o que começava a me transformar, em contrapartida, era a realidade do marxismo, a grave presença, em meu horizonte, das massas operárias, corpo enorme e sombrio que viva o marxismo, que o praticava e que exercia à distância uma irresistível atração sobre os intelectuais pequeno-burgueses. (Os pensadores. São Paulo, Abril, 1973, fascículo 68, p. 887) A partir daí, um conhecimento mais maduro da filosofia de Marx levou-o a afirmar que estava convencido de que o materialismo histórico, defendido por Marx, "fornecia a única interpretação válida da história e de que o existencialismo permanecia a única abordagem concreta da realidade".
Mas Sartre se desencantou com o marxismo. Não pela sua teoria mas pela dificuldade de se tomar uma prática política coerente, devido dificuldade de o marxismo ser traduzido em ação.
Sartre e muitos existencialistas apoiaram durante os primeiros anos que se sucederam à 2ª Guerra as posições políticas da URSS. Puseram nos Partidos Comunistas as grandes esperanças de transformação da sociedade européia.
A segunda intervenção soviética na Hungria em 1956 e a existência de campos de concentração na URSS desencadearam em Sartre, as primeiras críticas aos modelos sociais que se apoiaram na teoria marxista. Sua história de aproximações e afastamentos frente ao Partido Comunista e ao marxismo foi uma marca de toda sua vida.
Os marxistas querem distância dele
A primeira rejeição foi feita pelos próprios marxistas que atribuíram a Jean-Paul Sartre uma filosofia que expressa a ideologia burguesa decadente.
Para marxistas, O existencialismo representava a sociedade burguesa que, privada de seus privilégios, destronada, sem futuro, sem justificativa, declara absurdos o mundo e a vida.
Este drama da náusea, do nada e do absurdo são frescuras daqueles que "vivem do trabalho alheio. Quem não vive de rendas, quem acorda de madrugada, luta para educar seus filhos e come de marmita tempo de sentir tal náusea existencial diziam os críticos de Sartre.
A grande crítica dos marxistas ao pensamento sartriano está no seu modo de dar importância ao ato livre do sujeito; à subjetividade que o permite agir, passando por cima das determinações do econômico e do material.
"Para um marxista a liberdade é uma possibilidade de ação e eficácia. Tudo tem de se transformar em ação para a mudança da sociedade.
Portanto o ideal comum do Partido é mais importante que as idéias pessoais, talvez meras divagações.
Por outro lado, a liberdade individual é tão fundamental para o existencialismo que Sartre chega a dizer que pouco importa fazer isto ou aquilo, tomar uma bebedeira sozinho ou ser líder de um povo: o principal é agir com liberdade.
O indivíduo não pode perder o espaço de sua realização máxima em nome de nenhuma causa ou bandeira política.
O que fez os teóricos marxistas terem tanta aversão ao pensamento de Sartre e de seus seguidores foi a paixão existencialista pela liberdade individual e sua mística da derrota. Eles curtem o absurdo, o nada, o vazio.
Se, por um lado, o culto ao subjetivismo (liberdade individual como alicerce central do projeto humano) motivou o rompimento do marxismo com o existencialismo, por outro a consideração contínua da possibilidade do revés e da derrota tomou definitivo esse rompimento.
O marxismo precisa crer na mística do êxito do proletariado e no triunfo das forças progressistas na história. A náusea, o absurdo, o nada não levam os partidos, as massas e o indivíduo a lugar nenhum.
Embora Sartre exaltasse o marxismo como a máxima teoria explicativa da história e como a filosofia do nosso tempo, ele apontava para erros fundamentais, seja no seu modo de ver a questão do indivíduo, seja na redução do espírito a matéria, ou ainda pelo fato de ter negado Deus e a metafísica de um modo superficial e ter apostado
apenas na determinação dos motivos econômicos, eliminando toda a subjetividade. Seus posicionamentos sobre o marxismo oscilaram entre a simpatia, a defesa e a aliança, passando em seguida a disputas, discordâncias ataques. Se marcarmos no calendário o ciclo dessas alterações veremos que as brigas/reconciliações variam de 6 em 6 anos! Curiosa coincidência!
Integrar as tensões
O que fica mais claro em todo este debate é a contínua tentativa de Sartre de integrar os dois sistemas. Ele tentou interpretar o marxismo segundo a ótica existencial. A economia política, a luta de classes e as complexas análises de estruturas de Marx passaram a ser consideradas temas secundários. Sartre buscou em Marx o tema da filosofia do homem, mas inserindo novos conceitos como o de "situação" e de "superação", para que o marxismo ganhasse estatuto de Filosofia. O que Sartre fez foi recuperar as categorias que já havia desenvolvido em O ser e o nada, apenas acrescentando a noção de situação e superação. Vejamos seu texto:
O homem define-se com base no seu projeto. Este ser material supera continuamente a condição que se encontra já feita, revela e determina sua própria situação, transcendendo-a para se objetar através do trabalho, da ação ou do gesto.. Esta relação imediata para além dos elementos dados e constituídos, com outro que não nós mesmos, esta perene produção de n6s mesmos através do trabalho e da práxis é a nossa estrutura própria: nada mais do que uma vontade, não é uma necessidade ou uma paixão, mas as nossas necessidades tais como nossas paixões, ou tal como o mais abstrato dos nossos pensamentos, participam da mesma estrutura: encontram-se sempre fora de si em direção a ... É a isto que nós chamamos existência e que entendemos, de fato, não como uma substância estável que repouse sobre si mesma, mas como um permanente desequilibro uma auto-erradicação de todo o corpo. Como esta tendência para a objetivação assume formas diversas conforme os indivíduos, e como nos projeta através de um campo de possibilidades, das quais realizamos umas mais do que as outras, designamo-la por escolha ou liberdade. (Os pensadores. São Paulo, Abril, 1973, fascículo 68, p. 887) Esta síntese dos princípios antropológicos de Sartre não encaminha seu pensar na direção do marxismo. Antes é uma retomada insistente e talvez disfarçada do existencialismo.
Vale aqui esclarecer os dois conceitos de "situação" e "superação" que são inovações do seu pensamento e representam mais uma tentativa para aproximá-lo do marxismo.
A situação limita a vida do indivíduo e nada mais é que a sociedade e suas normas. O homem freqüentemente dominado pela rotina nem a percebe, apenas a suporta.
Pelo caráter de ser situado, posso entender o homem como alguém que não escolhe seus pais, nem seu tempo, nem sua altura, nem sua pátria. Porém, pelo seu caráter de transcendente às circunstâncias concretas da vida, ele pode superá-las. Pela sua transcendência ou por sua capacidade de superação, ele pode "ir além"...
Assim, não escolhi meus pais (e de certa forma nem eles a mim), mas posso decidir sobre minha forma de relação com eles: afetiva, sincera, autoritária, omissa, descartável...
Se minha pátria é marcada pela corrupção, pela política da pobreza produzida, ou pelo desencanto, pelo meu projeto posso executar uma prática de vida individual (e mesmo social) que aponte Para outra direção. Isto é a superação, mesmo que eu não a realize integralmente.
A conclusão que tiro de tantas lutas, tantos conflitos, tanta participação e até tanta ambigüidade, é que Jean-Paul Sartre foi um homem de nossa época, Profundamente conhecedor de nossos descaminhos e de nossa vontade de buscar o sentido de tudo: a existência!
Vamos Refletir
1. Em que pontos Sartre e os marxistas têm suas principais: o semelhanças? discordâncias?
2. Comente a frase de Sartre:

O marxismo estacionou: precisamente porque esta filosofia quer transformar o mundo, porque visa tornar-se mundo da filosofia, porque é e quer ser prática, operou-se nela verdadeira cisão que jogou a teoria de um lado e a práxis do outro.
3. Anexo, você tem um exemplo das idéias políticas de Sartre, na última entrevista que deu antes de morrer. Levante suas concordâncias e discordâncias com o testo.
4. Em que situações atuais (política, literatura) está presente a disputa levada a efeito por Sartre e pelos marxistas?
Propostas de Atividade
1. Pesquise uma peça de teatro, um filme, livro ou novela de TV em que apareçam alguns temas que foram preocupação de Sartre.
2. Em grupos, montar atividades-síntese (jornais, teatro, vídeos etc) sobre o pensamento de Sartre.
Anexo
Nosso planeta é habitado hoje pelos pobres, de um lado - os extremamente pobres, que morrem de fome - e uma pequena porção de ricos, do outro - ricos que começam a se tornar menos ricos, mas que, ainda assim, ainda vivem muitíssimo bem.
Com essa terceira guerra mundial que pode estourara qualquer dia desses, comesse conjunto miserável que é o nosso planeta, o desespero recomeça a me tentar: a idéia que não acabaremos jamais com isso, que há finalidade, mas apenas pequenos fins pelos quais combatemos...
Fazemos pequenas revoluções, mas não existe um fim humano, não há algo que interesse ao homem, só há desordem.
Pode-se chegar a pensar assim.
É uma idéia que volta a nos tentar incessantemente, sobretudo quando já estamos velhos podemos pensar: "Pois é, em cinco anos, no máximo, estarei morto". Na verdade penso dez, mas poderão ser cinco. Em todo o caso, o mundo parece feio, mau e sem esperança. Esse seria o desespero de um velho que já morreu por dentro. Mas eu resisto, e sei que morrerei na esperança, dentro da esperança - mas essa esperança, teremos de fundá-la.
É preciso tentar explicar por que é que o mundo de agora, que é horrível, não passa de um momento no longo desenvolvimento histórico, e que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das revoluções e das insurreições - e como sinto, ainda, a esperança como minha concepção do futuro.
(O testamento de Sartre. Porto alegre, L&PM Editores, 1986, p. 63)
Capítulo 5 - você também pode fazer
A seguir, você vai se deparar com três textos que são verdadeiros desafios à sua criatividade.
Primeiro, um sonho. Ele concentra as idéias e o clima - psicológico e filosófico - do existencialismo.
Em seguida, são apresentadas duas reflexões de autores atuais que manifestam a presença, na sensibilidade moderna, dos temas e do clima existencialista.
Leia estas páginas coma tenção, procurando situar-se no ambiente. A seguir, com as idéias que lhe ocorrerem e com as intuições suscitadas, monte uma peça, faça uma música, escreva uma redação, faça cartazes, onde você dá seu "toque", sua interpretação da temática sartriana
Um sonho
Fernando José de Almeida
Não tenho certeza se a vida é um sonho ou se é outra coisa diferente. Há noites (ou serão dias?) em que ele aparece claríssimo para mim. É manhã brilhante e cheia de silêncio. Abro os olhos. Estranho. Sinto tudo balançar. o ruído cadenciado de ondas do mar me revela que estou dentro de um navio, no camarote de uma daquelas naus do século XVIII, que povoam os filmes de corsários, piratas e mocinhas de rodados vestidos. Invade-rne a sensação de retorno: a séculos passados, à minha adolescência, ou à minha origem mais íntima.
Subo para o convés. Sou cercado por um imenso silêncio, maior que o barulho calmo das ondas que batem a bombordo, muito maior que o ranger das cordas, das amarras e do que o panejar das velas.
O silêncio, sinto-o, parte de dentro de mim. Nada escuto a não ser o pulsar de minha solidão. Estou irremediavelmente ali, diante de um mundo que nada tem a ver comigo. Nada me é familiar, nem o mar com sua majestade quase aterrorizante, nem este navio com suas amarras, cordoalhas, velas, mastros. Nem a falta de horizontes.,,
Recupero-me do susto. Esfrego os olhos: não há terra e nada vejo em qualquer dos lados. Esta espécie de gelatina verde sobre a qual me situo, sinto-a como prolongamento de meus músculos, ainda moles de sono. São de gelatina os meus pensamentos,
Súbito, deparo-me com urna tarefa urgente. É o meu barco: nele vou traçar meu destino. Com ele vou conquistar meu porto. Com ele vou saborear cada gota do meu viver.
Sinto-me febril. Corro até a proa, pego no leme, subo até o topo do mastro, confiro a âncora, invado porões e paióis. Nada daquilo eu escolhi, nem seus apetrechos, nem seu porte, nem a cor do seu oceano, nem a profissão que de agora em diante será a minha. Sei apenas que tomar posse daquilo tudo e dar-lhe um rumo se impõe como uma tarefa só minha. Insubstituível. Angustiante. Sinto medo? Não sei. Acho que é um sentimento doloroso e nobre ao mesmo tempo. De agora em diante, tudo vai depender só de mim.
O timão gira desgovernadamente à direita e à esquerda. Procuro em toda parte. Onde haverá algum mapa ou roteiro que me indique rumos? Mas é inútil.
Acima de mim o céu de um sol que nasce manso e invejoso. Pra onde ir? Busco portos de mercadores, baías de bom abrigo, enseadas de praias longes e repletas de coqueiros sempre cheirando a trópicos? Não há regras. Nem mesmo jogos. Tudo precisa ser definido.
As coisas se aceleram. Crio portos que nunca vi. Pinto baías com cores imaginárias, águas verdes e riquezas prateadas e esmeraldas. Velocidade, rumo, pausas, riscos: eu os escolho. Ah! As emoções desta viagem! Serão elas intoleráveis! Humilhantes? Assombrosas? Objetos de orgulho? Tristes? Emocionantes? Ou amáveis?
Isto tudo eu é que escolho. Eu Próprio me defino, enquanto vou escolhendo a viagem. Não para decidir se ela existirá ou não (é inevitável que exista), mas para definir minha maneira de ser e de fazê-la.
Pssst. Ouço vozes, muitas vozes. Parece que vêm diretamente dos porões. Largo o barco à deriva. Corro até os Porões. Lá dentro, uma enorme confusão: caixas, tonéis, fardos, pilhas de sacos de todas as formas, livros e cores sombrias.
Ao fim de um longo corredor, no meio da Penumbra, vejo rostos. Encravados nesses rostos, olhos me transmitem ondas de sentimentos que tento, mas não consigo, dizer o que são. No entanto eu os sinto como se fossem meus.
Formas humanas são intraduzíveis, mas claras para mim, como o sol lá de fora.
Esses olhos me mostram quem eu sou. Vendo-me refletido neles, sinto-me existindo melhor: com mais nitidez. 'Vêem-me, logo existo', penso aliviado. Começo a entender melhor quem sou. Aqueles pequenos espelhos de seus rostos não são eu, mas me revelam meus ângulos brilhantes, obscuros, esfumaçados. O olhar dos outros começa a fazer parte de minha vida e de meu destino. Meu rumo já não será só meu. Responsável sou: por mim e pelo outro.
Na frente daqueles outros como eu, naquele navio que será o corpo de todos nós, começo a pensar em voz alta. 'Agora sou tão responsável por este navio como se o tivesse inventado e construído. Não pedi para estar aqui, nem mesmo para nascer não pedi para ter este sonho, mas vou sonhá-lo como se livremente o tivesse escolhido, até que se materialize em realidade'.
Voltei ao convés ainda aturdido pelas imagens, olhares e vozes do porão. Sinto o quanto aquelas vidas estão junto comigo. Estarão ainda presos? Estarão vivos, ou já se libertaram? Por que não sobem quando os chamo? O que os prende?
Agora preciso resolver sozinho, sem pontos de apoio, sem guias e, angustiantemente, em nome de todos.
Nuvens cercam uma parte do horizonte. A lua ainda marca um ponto no céu. O sol, mais alto, não me sorri tão clemente como antes.
Cada um de meus atos põe em jogo o universo, seu sentido e o lugar de nós nele. Senti um quase pavor. Mas como poderia deixar de senti-lo, se ninguém pode fazer os valores para mim, mas eu, mesmo é que os construo a cada ato autêntico de minha vida?
O barco todo, com suas velas e mastros, é sacudido por forte vento. Não sonho mais. Tudo balança. Seguro firme o timão. A viagem começou.
Meio suado, meio angustiado, acordo com sobressalto. Sento-me na cama. O chão é firme, mas sinto-me balançando. Um gosto estranho de sal marinho me vem à boca, amarga de medo, um gosto de orgulho e otimismo.
Livremente, construí o meu sonho.
O amor
Milan Kundera
Mas seria amor? Estava persuadido de que queria morrer ao lado dela e esse sentimento era claramente exagerado: estava vendo-a então pela segunda vez na vida! Não seria mais a reação histérica de um homem que, compreendendo em seu foro íntimo sua inaptidão para o amor, começa a representar para si próprio a comédia do amor? Ao mesmo tempo, seu subconsciente se mostrava tão covarde que escolhera para sua comédia essa modesta garçonete de província que não tinha praticamente possibilidade de entrar em sua vida.
Olhava os muros sujos do pátio e compreendia que não saberia se era histeria ou amor.
E, nessa situação em que um verdadeiro homem saberia agir imediatamente, ele se recriminava por negar assim ao mais belo instante de sua vida (está de joelhos à cabeceira da moça, convencido de não poder sobreviver à sua morte) a sua plena significação.
Torturava-se com recriminações, mas terminou por se convencer de que era no fundo normal que não soubesse o que queria: nunca se pode saber aquilo que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores.
Seria melhor ficar com Teresa ou continuar sozinho?
Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço.
No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.
Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist keinmat, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver nunca.
A insustentável leveza do ser
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 14.
A nossa liberdade
Dalmo de Abreu Dallari
A liberdade é fundamental para todas as pessoas. Por sua causa já houve lutas, guerras e mortes, porque todos precisam de liberdade e às vezes surgem homens que não querem que os outros sejam livres.
Mas o que é a liberdade? Como é que se pode saber se uma pessoa tem liberdade?
Ter liberdade é poder fazer as coisas que a gente acha boas e agradáveis. Ter liberdade é poder ficar junto das pessoas de quem a gente gosta. Ter liberdade é poder brincar, estudar, trabalhar, fazendo aquilo que nos deixa felizes. Ter liberdade é poder ir a todos os lugares que a gente acha bonitos, ou onde existam coisas que a gente quer ver ou fazer.
Ter liberdade é poder falar, cantar, sorrir, amar, sonhar, sem ter medo de sofrer um castigo.
Todos nós queremos ser livres e achamos importante a nossa liberdade.
E a liberdade dos outros? Não é justo pensar somente em nós, pois todas as pessoas precisam de liberdade.
Por isso devemos sempre lembrar dos outros, quando queremos fazer alguma coisa. É preciso verificar se o que nós queremos fazer não vai prejudicar alguém.
Mas também precisamos ver se existe alguém que deseja muito alguma coisa, ou que precisa fazer alguma coisa para ser feliz e que não pode fazer isso porque é pobre ou porque uma pessoa má está proibindo.
O mundo está cheio de gente que não pode escolher o lugar onde viver com a família, que não pode ter suas terras e sua casa e que não pode escolher seu trabalho. Existem milhões de crianças que não podem viver com os pais, que não podem escolher uma roupa ou um brinquedo, que não podem ir à escola, que se alimentam muito mal e às vezes até passam fome. Muita gente passa a vida inteira fazendo só o que os outros querem, sem poder fazer nada do que gostaria. Todas essas pessoas não são livres e por isso não são alegres nem são felizes. Isso não é justo e nós devemos sempre ajudar as outras pessoas a conseguirem sua libertação.
Às vezes existem pessoas que tiram a nossa liberdade, que nos obrigam a fazer só o que elas querem e dizem que fazem isso para nos proteger e nos ajudar. Nós não devemos concordar com isso, porque quando tiram a nossa liberdade tudo fica triste, as pessoas vivem contrariadas infelizes. Quando alguém quiser nos obrigar a aceitar uma ordem, nós devemos querer saber o motivo e devemos dar sempre nossa opinião. Desse modo nós podemos obedecer sem perder a liberdade.
A liberdade é muito importante para todas as pessoas, pois quem não a tem não pode ser feliz.
Se todas as pessoas defenderem a liberdade ela nunca vai acabar, as pessoas que hoje são tristes vão ficar alegres quando forem livres. E o inundo será muito melhor para todos.

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