“E Deus viu que tudo era bom” (Gn 1,10). Esta exclamação – a cada dia da criação, até a modelagem do ser humano à “imagem e semelhança” divina (Gn 1,26) – faz do cosmos, da Terra e suas criaturas um hino vivente à glória de Deus. Mais que evidência do passado, o Livro das Origens é maquete do futuro, projetado por Deus para realizar-se em beleza e bondade, justiça e paz. Toda a humanidade partilha a condição adâmica de ser, ao mesmo tempo, filho da Terra e filho do Céu; finito aberto ao Infinito; sujeito aberto ao Outro; criador com o Criador; hermeneuta do Absoluto que se diz na luz dos astros, na força do vento, no esplendor do fogo, na potência das marés, no ciclo da lua, no devir das estações, no benefício das colheitas e, sobretudo, na face do próximo, seu semelhante.
Herdeira das Escrituras, iluminada pelo Paráclito e atenta aos sinais dos tempos, a comunidade cristã soube ler no universo a “palavra divina” inscrita pelo Verbo. Paulo admite a revelação do Criador mediante as criaturas (Rm 1,19-20), como tinha advertido Ben Sirac (Sab 13,5). A tradição patrística posterior reconheceu a sacramentalidade do universo, em cujo tempo e espaço se desenrola a Historia Salutis decretada pelo Pai, consumada pelo Filho e presidida pelo Espírito Santo. Da natureza a Igreja colhe os dons excelentes do trigo, da videira, das águas, da oliveira, do fogo e do labor das abelhas para celebrar este mysterion, como canta o precônio pascal. No período medieval, Hidegarda de Bingen descreve as propriedades terapêuticas da subtilitas naturae em sua obra Physica (1150) e trata densamente da harmonia celeste, dos elementos naturais e da condição humana no mundo em seu admirável Liber divinorum operum (1174); pouco depois Hérade de Landsberg conclui o Hortus delitiarum, compêndio sobre a Trindade, a humanidade e a criação (1185); Francisco de Assis compõe o Cantico di Frate Sole (1224) e Boaventura diz ter encontrado vestigia Dei nas criaturas (1259).
Chega a Modernidade, com seu impulso científico-tecnológico-industrial. As teorias da evolução, da relatividade e da psicanálise ganham espaço; impera a razão instrumental; a comunicação avança; a medicina progride; a humanidade chega mesmo a sonhar com a panacéia. Disto advêm desenvolvimento e crise, com as vantagens e desvantagens da crescente globalização. Eclodem os problemas ambientais; apregoa-se o câmbio de paradigmas; as ciências da Natureza e do Homem elevam a voz. Deste turbilhão emergem personagens como Teilhard de Chardin, com suas obras científico-crísticas Le milieu divin (1927) e Le phénomène humain (1930), publicados após sua morte, na Páscoa de 1955.
Entre as décadas Cinqüenta e Setenta a comunidade cristã se debruça sobre a agenda social, política e cultural da humanidade. Discernem-se os novos sinais dos tempos; admite-se a legítima autonomia das realidades terrenas; emergem as teologias do político (J.B. Metz), da esperança (J. Moltmann) e da libertação (G. Gutiérrez); projeta-se o diálogo com as religiões e as ciências, a política e a cultura. Foi também o período do Concílio Vaticano II, que desencadeou o aggiornamento teológico, moral, litúrgico e pastoral da Igreja.
O cenário cultural e eclesial se enriquece, ainda, com o diálogo entre fé e razão (K. Rahner), dogmática e estética (H.U. von Balthasar), teologia e fenomenologia religiosa (P. Tillich), ontologia e cosmologia (A.N. Whitehead), mística e física (F. Capra). É o momento propício para se reelaborar a Teologia da Criação com novos aportes exegéticos e fôlego interdisciplinar. Vários autores e centros de saber, de trajetória remota ou recente, se somam na tarefa! Os temas ecológicos passam a integrar a Teologia Moral (B. Haering, E. López Azpitarte) e a Teologia Sistemática (J. Moltmann, García Rubio, L. Boff). Os ecos alcançam a Espiritualidade e a Evangelização, com alusões crescentes por parte do magistério eclesial (Octogesima adveniens, Sollicitudo rei socialis, Centesimus annus, Documento de Aparecida). Teologia e Ecologia se fecundam e consolidam novas perspectivas da intelligentia fidei em prol da justiça, paz e integridade da criação.
Já é notório o esforço de releitura ecológica das fontes cristãs, na busca do sentido original de Bereshit (a gênese do mundo), em resposta às acusações de que o mandato bíblico de “dominai e multiplicai” teria causado, direta ou indiretamente, a exploração danosa da Natureza. Hoje muitos historiadores, antropólogos e pedagogos; biólogos, físicos e engenheiros; exegetas, teólogos e pastoralistas, unem suas competências para buscar soluções sustentáveis à crise ambiental.
Neste sentido, é forçoso citar o empenho ecumênico a respeito. Além das iniciativas locais de líderes e instituições (conselhos de Igrejas, programas ecumênicos pró-ecologia, simpósios, campanhas ecumênicas e centenas de publicações), destacam-se quatro eventos de porte internacional.
(1) Assembléia Ecumênica da Europa (Basiléia, 1989), com o tema “Justiça e Paz”. O evento fomentou uma Europa reconciliada cujos benefícios alcançassem as demais nações e o Planeta. Os participantes trataram de economia global, relação internacional Norte-Sul, ética e cristianismo. Dedicaram um grande volume de reflexão, avaliação e projeção à questão ambiental: ecologia e pneumatologia; justiça e paz com a criação; participação cristã na ecologia mundial. O Documento Final esboça uma nova Europa, com alcances econômicos, ecumênicos e ecológicos. O paradigma não se fixa em Bereshit (gênese do mundo), mas se afirma em Shalom – a plenitude de justiça e paz com a criação. Citam-se as ameaças ao meio-ambiente e as possibilidades de solução, que deverão irmanar igrejas, governos, cidadãos e instituições.
(2) Assembléia Ecumênica Mundial de Seul (Seul, 1990), com o tema “Justiça, Paz e Salvaguarda da Criação”. A agenda priorizou temas candentes e internacionais: ameaças à vida no Planeta; ecologia humana e ecologia ambiental; afirmação dos direitos dos povos, destacando o direito à terra, à qualidade de vida e à liberdade; solicitações recíprocas entre justiça, paz e ecologia. O paradigma novamente se projeta, indo de Bereshit (gênese do mundo) e Shalom (plenitude de justiça e paz com a criação) para firmar-se em Berith – a aliança solidária pela justiça, paz e salvaguarda da criação. A aliança entre Criador e criatura iluminou a reflexão teológica, ética, política e ecológica. Disto resultou um programa de ação, envolvendo as Igrejas signatárias num Ato de Aliança. Este programa tem inspirado várias iniciativas locais e internacionais, desde então. Inclui a globalização da solidariedade, a superação da fome e do racismo, a participação do poder popular na gestão política e ecológica, a superação da violência, a inclusão dos pobres, a solução para dívidas nacionais, a convivência étnica, o desarmamento mundial. Há termos de diálogo entre o Conselho Mundial de Igrejas, o Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente (UNEP) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO).
(3) Assembléia Ecumênica de Camberra (Camberra, 1991), com o tema “Vem, Espírito Santo, e renova toda a criação”. Com uma décolage pneumatológica, esta assembléia caminhou na trilha aberta pela anterior, de Seul. Fez-se um incrível aprofundamento da Teologia da Criação a partir das categorias judaicas e cristãs, com acento pneumatológico e trinitário. A reflexão trouxe à tona problemas complexos da condição humana no Planeta e acolheu no debate as mais recentes e promissoras intuições da Teologia bíblica, sistemática, moral e espiritual. Em Camberra a assembléia anterior conquistou um plus de qualidade, levando alguns pontos de Seul ao aprimoramento reflexivo e estratégico: cristãos do Extremo Oriente trouxeram sua contribuição, ampliando as perspectivas judaico-cristãs tradicionais; questionou-se o paradigma criacional antropocêntrico, sem renunciar à responsabilidade própria do ser humano na Terra; acentuou-se a conexão entre Igreja e mundo; projetou-se uma ética da economia e da ecologia e tratou-se de meios concretos de ação, ao alcance das Igrejas participantes. Estratégias eleitas: aquisição de poder de interferência em nível local (políticas de desenvolvimento); reforma da ordem econômica internacional; repensar a economia; aprimorar a estrutura de Direitos Humanos da ONU; fomentar a democracia e o bom governo; articular conscientização, educação e espiritualidade.
(4) Simpósio Internacional sobre as Religiões e a Água (Amazonas, 2005). Liderado pelo Patriarca ecumênico de Constantinopla, Sua Santidade Bartolomeu 1º. O evento reuniu líderes das grandes e pequenas religiões, em nível mundial e amazônico. Recebeu apoio do Conselho Mundial de Igrejas, do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, da Pontifícia Comissão de Justiça e Paz, de organismos da ONU e vários governos. O simpósio transcorreu em movimento, num barco-sede que navegou em águas amazônicas. A cada parada, um evento inter-religioso celebrava o tema, reunindo as religiões abraâmicas, os cultos ancestrais africanos e as religiões tradicionais indígenas. Participaram, lado a lado, teólogos, biólogos, políticos, ecologistas, bispos, pajés, xamãs, rabinos e imãs. Destacou-se o valor vital da água, sua gestão sustentável, as políticas ambientais e a ecologia humana. O evento confirmou a responsabilidade das religiões na educação ambiental e, sobretudo, preservação e gestão sustentável dos recursos hídricos.
Com tais considerações, chegamos ao horizonte inter-religioso. Nas paginas seguintes apresentamos as principais peças da cosmovisão religiosa do Hinduísmo, Budismo, Candomblé, Judaísmo e Islam. Nossa intenção é fornecer elementos em resposta às sete tarefas ecológicas das religiões – que apresentaremos no epílogo e que serão tema de um ensaio mais amplo, em elaboração.
Prof. Dr. Pe. Marcial Maçaneiro, SCJ
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